Senador morto a facada é tema do novo livro de Pinheiro Machado

FRANCISCO RIBEIRO
Muita tinta já correu sobre a vida e a morte do senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), um dos maiores chefes políticos da República Velha.
Entrevistas, reportagens, biografias, ficção, pouco importa o gênero. O fato é que a principal pergunta continua sem resposta, cento e três anos após o assassinato do senador: quem foi o mandante do crime que chocou o Brasil e o Rio Grande?
O jornalista José Antônio Pinheiro Machado tem muitas semelhanças com o ilustre tio-bisavô, que é o personagem de seu novo livro.

Também é advogado, elegante no vestir, apreciador da boa literatura como atestam os onze mil volumes de sua biblioteca particular. E, principalmente, amante da boa comida e do bom vinho, prazer que o levou a trocar a redação de jornal  pelo estúdio de televisão, onde, como Anonymus Gourmet, executa receitas que já renderam vários livros de gastronomia .
Mas nem só de boa mesa vive o Anonymus Gourmet. De sua época de repórter, com passagem por grandes redações, manteve o faro e a curiosidade pelos grandes temas.
E foi na História do Brasil e do Rio Grande do Sul, mais particularmente na sua própria família, que Machado reencontrou o outro, o tio bisavô, uma lenda familiar, espelho de gerações nos quesitos de honra, valentia, senso de economia, valores em falta nestes dias em que o banditismo se confunde com a política.
Mas que, de certa forma, não são muito diferentes daqueles da  República Velha, também conhecida como a do Café (São Paulo) com leite (Minas Gerais) tempos igualmente ferozes e que levaram o senador  a prever a própria morte: “Matam-me pelas costas… Pena que não seja no senado, como Júlio César”, declarou, dois meses antes, ao jornalista João do Rio.
Pinheiro Machado foi esfaqueado pelas costas  no Hotel dos Estrangeiros, no Rio de Janeiro, então capital federal.
“Ah, canalha. Fui apunhalado pelas costas”, foram as palavras do senador. Ele morreu no dia 8 de setembro de 1915.

Seu assassino, Francisco Manso de Paiva Coimbra, gaúcho – desertor do exército, ex-cabo de polícia, e, na época, padeiro desempregado, disse que agiu por vontade própria.
Ninguém acreditou nisso e o principal suspeito foi o ex-presidente Nilo Peçanha, adversário político do senador, em cuja casa o assassino pernoitou na véspera do crime..
Mas nunca houve provas conclusivas. Manso Paiva cumpriu 20 dos trinta anos de prisão a que foi condenado. Solto, tentou vender sua história a diversas publicações, mas ninguém se interessou.
José Antônio Pinheiro Machado, o Anonymus, começou a prestar mais atenção no velho antepassado quando, em 1968, jovem militante estudantil, foi preso em São Paulo por participar do Congresso da UNE, em Ibiúna.
Ao declarar-se bisneto do senador, teve sua saída da prisão facilitada por uma casualidade que geralmente só encontramos em mitos.
Começou ali a idéia de uma biografia que só viria a concretizar-se meio século depois com o livro O senador acaba de morrer: a vida e o assassinato de um dos políticos mais importantes do Brasil (L&PM: 2018), que será lançado na próxima Feira do Livro de Porto Alegre.

Uma história shakespereana com uma tragicidade grega. Contudo, sendo o autor também o Anpnymus Gourmet, não faltam aspectos saborosos de um Rio de Janeiro Belle Époque. Assim, não faltam palacetes, como o do Morro da Graça, do senador, e comensais assíduos, como Ruy Barbosa,  vinhos franceses e charutos cubanos. A imagem de um senador que, apesar de  gaúcho, fazendeiro e tropeiro, vestia-se como um dândi, rigoroso em suas vestimentas mais íntimas, camiseta e cuecas de seda pura, pois, como antevia: “ se eu for assassinado tenho que estar dignamente vestido na hora da autópsia”. Uma história que José Antônio Pinheiro Machado partilha com os leitores nesta entrevista exclusiva para o JÁ.
JÁ: O senador Pinheiro Machado é antes de tudo um ídolo familiar, um espelho?
JAPM:  Me criei ouvindo histórias contadas pelo meu pai que também foi político, chegando a eleger-se deputado pelo Partido Comunista em 1946. Também o meu avô, que foi criado pelo senador quase como um filho, tendo o mandado inclusive para os Estados Unidos estudar Zootecnia. Meu avô, bancado por ele, ficou dois anos por la. Imagina fazer isso naquela época, começo do século XX. Era quase como ir a lua.   Ele era um cara muito rígido em matéria de dinheiro. Era fazendeiro e filho de um cara que também era um grande fazendeiro, muito rico. Era muito empreendedor.
JÁ: O sr começou a trabalhar no livro  em 2010?
JAPM: Sim, queria lançá-lo, a princípio, em 2015, ano do centenário de morte do senador. Deu muito trabalho. Pensei, no início em fazer de uma forma romanceada. Mas, como jornalista, profissão que exerci a partir dos 18 anos, percebi que a história real era muito rica, e resolvi simplificar, relatando os fatos. A primeira versão tinha cerca 700 páginas. Aí o Ivan, meu irmão e editor, disse que o primeiro obstáculo seria o tamanho, melhor seria fazer em dois volumes, e que sairia muito caro. Aí fiz esta segunda versão, quase 300 páginas. Acho que ficou no tamanho ideal.
JÁ: Mas a gênese do livro começa lá em 1968?
JAPM: Isso, imagina o período aqui no Brasil, uma situação muito difícil, ditadura, e ainda ser preso naquele encontro de estudantes.  Durante o interrogatório, o cara responsável, lá pelas tantas, começou a olhar a minha ficha e a ficar estranho ….. Gelei, pensei, nossa,  o cara descobriu  alguma coisa contra mim…. Aí,  disse: “ O que você é do falecido senador Pinheiro Machado?” Pensei e, menti, bisneto. Ai o cara me contou que o avô dele tinha sido motorista do senador, que, inclusive, tinha ajudado sua avó quando ela esteve doente. Enfim, percebi que havia um sentimento de gratidão. O fato é que acabei sendo liberado e voltei imediatamente para Porto Alegre. Ainda me arrepio quando vejo a emoção do meu pai quando cheguei em casa, maltrapilho.
: Há outras biografias do senador, o que acha delas?
 JAPM: Usei algumas delas como referência, roteiro. Gosto do livro do Sinval Medina, o romance A faca e o mandarim, no qual ele expõe semelhanças motivacionais entre o suicídio de Getúlio Vargas e o assassinato do senador. Também gosto da maneira que o Erico Verissimo trata dele em O tempo e o vento, no tomo O retrato Mas, na verdade, me impressionavam  mais as histórias, informações que ouvia em casa obtidas através do convívio intenso que tive com o meu pai e o meu avô. Sempre me chamou atenção o fato de que o senador, apesar de pertencer ao Partido Republicano Rio-Grandense, pra lá de conservador, era um homem muito avançado para a sua época. Ele apoiava, por exemplo, manifestações culturais populares, como o samba, algo que era muito malvisto pela elite da época. Enfim, quis retratar, em termos políticos, a grande figura que foi o senador.
JÁ: Advogado, político, fazendeiro, tropeiro, soldado na Guerra do Paraguai, comandante e general honorário na Revolução Federalista. Em quase 300 páginas o sr não cita nenhum defeito. Trata-se de uma ode ao senador?
JAPM: Não. Quem faz uma ode é o jornalista Gilberto Amado (primo do Jorge Amado), que era seu inimigo e depois passa a admirá-lo. O fato é que o senador pautou sua vida pela honra, pela retidão. Era um tempo de homens muito duros, mandões. Ele, por exemplo, sempre foi contra a prática da degola, efetuada por chimangos e maragatos contra os prisioneiros. Foi um grande defensor da República, do federalismo, dos interesses gaúchos, já que o estado, e a sua economia pastoril, era frágil diante do poder que tinham São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, aquela política do café com leite que os velhos barões achavam que duraria para sempre. Quis  revelar estes lados desconhecidos.
JÁ: O senador também era um bon vivant, não é?
JAPM: Sem dúvida. Era rico e gostava das coisas boas da vida. Vestia-se muito bem, apreciava bons vinhos, como o Chateau d’Yquem, destinado só aos connoisseurs, aqueles sabiam apreciar a boa bebida. Aos outros, que bebiam vinho como se fosse água, destinava aquilo que chamava de zurrapa. Também gostava de charutos cubanos da marca Partagás. O palacete do Morro das Graças, onde morava, reunia muitos comensais, entre eles Ruy Barbosa, fiel apreciador do doce batatas feito pela esposa, Benedita Brasilina, a Dona Nhanã, como era mais conhecida.
JÁ: E como um aristocrata do século XIX, não se negava a um duelo.
JAPM: Foi apenas um. Com o proprietário do Correio da Manhã, o jornalista Edmundo Bittencourt, também gaúcho. Bastou um tiro na nádega …. do jornalista, para que tudo se resolvesse.
JÁ: Mesmo sendo um grande chefe político na República Velha, por que ele nunca postulou sua candidatura a presidência da República?
JAPM: Era o sonho da vida dele, embora eu não tenha encontrado alguma prova, declaração oficial sobre isso. O que sei sobre isso é das conversas que tive com o meu avô, que era de 1892  e, que, portanto, conviveu com o senador até os 23 anos de idade. Ele contava que no final do governo Hermes da Fonseca, que ele ajudara a eleger, seria o candidato a sucessor. Não foi e a eleição de 1914 foi vencida por Wenceslau Brás, de Minas Gerais.
JÁ: E é a partir daí que começa a caçada ao senador?
JAPM: Exato. Os jornais, como o Correio da Manhã, começam a bater muito nele. Atribuíam-lhe declarações que não fizera e intenções que não tinha. Panfletos incendiários travestidos como matérias. É coisa antiga as fake news. Um deputado, diante da quantidade de pressões que o senador sofria, chegou a brincar sobre um futuro projeto de lei: “Art. 1º: Fica extinto o senador Pinheiro Machado; Art. 2º: revogam-se as disposições em contrário”. E o Wenceslau Brás era muito criticado quando, apesar de tudo, fazia acordos com ele. Acusavam-no de repetir atos do governo Hermes da Fonseca.
 JÁ: E  principal causa deste acirramento era o fato dele ser contrário a política “café com leite” da República Velha?
 JAPM: Exatamente. É o momento que esta política se consolida e era muito prejudicial aos interesses do Rio Grande do Sul e outros estados. Havia muita corrupção, gente que por propina se posicionava ou se omitia contra os interesses de seus próprios conterrâneos. E ele, como era um homem rico, não se corrompia.
JÁ: A carta-testamento do senador destinada a sua esposa, Dona Nhanhã, é uma verdadeira crônica de uma morte anunciada?
JAPM: Sim. Eu transcrevo a carta no livro. Está tudo ali. Uma fatalidade que talvez fosse evitada se ele voltasse ao Rio Grande do Sul. Mas ele não era de fugir da raia. Como ele dizia ao seu motorista, quando andava, de carro aberto, por aglomerações não muito amistosas: “nem tão devagar que pareça provocação e nem tão depressa que pareça medo”. Era um homem valente.
JÁ: Ao que parece, nunca uma morte, um assassinato, foi tão previsto, principalmente por ele, não é?
 JAPM: É verdade. Fora algumas pessoas, e a brincadeira que ele fazia em relação as peças íntimas, a de estar bem vestido no caso de uma  autópsia, teve aquela mais shakespereana, que ele disse: ”Morro na luta. Matam-me pelas costas. São uns ‘pernas finas’. Pena que não seja no Senado, como César”.
JÁ: Manso de Paiva sempre disse que agiu sozinho,  mas foram fortes as suspeitas sobre Nilo Peçanha, ex-presidente da República que era governador do Rio de Janeiro na época…
JAPM:  Há fatos veementes. Francisco Manso, inclusive, dormiu na véspera do crime no Palacete do Ingá, sede do governo estadual do Rio na época, onde residia Nilo Peçanha. Ao que tudo indica, toda a animosidade – publicada, e não pública, cabe ressaltar – , de que a morte do senador, como diziam alguns, resolveria todos os problemas do país, acabou por construir a vontade homicida do criminoso. E coube a Francisco Manso o papel de sicário.
JÁ: E pelo crime, Francisco manso foi condenado a 30 anos de prisão.
JAPM: Mas cumpriu só vinte. Tentei, mas não consegui, encontrar o documento de liberação, saber o motivo da diminuição da pena.
JÁ: Solto, ele tentou vender a história para jornais e revistas. Como foi isso?
JAPM: Ninguém deu bola pra ele. Além do mais, se houvesse algum novo culpado, o crime já tinha prescrito. O Millor Fernandes, que a esta altura já trabalhava, conheceu ele. Mais tarde, algumas décadas depois, contou esta história para o meu irmão, Ivan.
: E teve aquela história de trocar o nome do município de Cacimbinha para Pinheiro Machado. A sua família sempre se posicionou contra. Como é isso?
JAPM: Nada a ver. Tudo isso só porque o Francisco Manso nasceu lá. Como se o resto da população tivesse culpa. O Nikão Duarte escreveu um trabalho sobre isso. Espero que o município volte a se chamar Cacimbinhas.
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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