A Porto Alegre de 12 mil habitantes que Saint Hilaire viu há 200 anos

Francisco Ribeiro

Na viagem que empreendeu pelo Rio Grande do Sul , há 200 anos, o naturalista francês, Auguste de Saint-Hilaire, ficou mais de um mês em Porto Alegre.

Tempo suficiente para escrever um dos mais importantes relatos sobre como era a vida na, então, sede do governo da Capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Como nas demais partes do Brasil em que percorreu ao longo de seis anos (1816-1822), Saint-Hilaire, além da botânica, teve um olhar arguto sobre usos e costumes, pessoas, política e administração.

Suas anotações, em forma de diário, mais tarde transformadas em livros, constituem um importante documento histórico.

Porto Alegre, na época, segundo a estimativa apurada por  Saint-Hilaire, contava entre 10 e 12 mil habitantes. Entre esses, ainda viviam muitos dos primeiros porto-alegrenses natos e, até mesmo, gente nascida bem antes da fundação da cidade.

Assim, durante as suas perambulações, Saint-Hilaire pode ter encontrado pessoas que ainda denominassem o local como Porto de Viamão ou Dorneles, ou, mais singelamente, Porto dos Casais.

Mas, fora alguns pioneiros sobreviventes, e seus descendentes, a Porto Alegre de 1820 já era bem diferente daquela de sua fundação.

Na Rua da Praia, que Saint-Hilaire descreve como sendo a única artéria comercial, nada restava para lembrar a antiga colônia de pescadores e suas choupanas, incluindo a primeira capela, ou seja, habitações parecidas como as encontradas por ele no litoral a partir de Torres.

Saint-Hilaire descreve uma Porto Alegre cheia de construções novas e com uma certa pujança econômica, porto e comércio movimentados, fadada “a ficar rica”, como ele projetou.

O francês também constatou que Porto Alegre era bonita: “[…] Aqui lembramos o sul da Europa e tudo quanto ele tem de mais encantador”, escreveu no seu diário.

Por outro lado, achou que a cidade era mais suja que o Rio de Janeiro e lamentou que, apesar do frio intenso, as casas não tinham aquecimento.

E no que diz respeito a arquitetura, observou que, de tão acanhados, os principais edifícios públicos – Palácio, Câmara, Matriz, Palácio da Justiça – não condiziam com a importância da capital, nem com a riqueza da capitania.

Por que este desleixo, ou mesquinharia, com prédios que tem uma forte carga simbólica?

Para responder esta e outras questões, o JÁ  entrevistou o  historiador Sérgio da Costa Franco. Autor de livros como “Porto Alegre Ano a Ano: uma cronologia histórica 1732-1950”, “Os viajantes olham Porto Alegre 1754-1890”, e “Porto Alegre Sitiada”  sente-se a vontade para falar daquele que foi um dos primeiros cronistas da cidade.

JÁ – O que diferencia Saint-Hilaire dos demais viajantes que percorreram o Rio Grande do Sul, especialmente Porto Alegre, na primeira metade do século XIX? Arsène Isabelle (1806-1888) e Nicolau Dreys (1781-1843), por exemplo, só para citar dois, franceses como ele.

SCF – O que diferencia Saint Hilaire dos demais viajantes contemporâneos é tanto a quantidade quanto a qualidade da informação.

Embora fosse um autodidata, Saint-Hilaire exibe uma massa de informação respeitável em botânica, zoologia e outras ciências naturais. O Abeillard Barreto, nosso melhor bibliógrafo, escreveu (Bibliografia Sul-Riograndense) sobre sua enorme capacidade de trabalho na coleta zoológica, a precisão e minúcia do seu diário. Chama-o de “inigualável visitante”, que além de tudo, ainda achava tempo para redigir monografias e comunicações para várias publicações da França.

Quanto a mais alentada de suas obras, a “Voyage à Rio Grande do Sul”, ele escreveu que ainda era o “manancial” mais sadio e mais profundo para o estudo dos homens e das coisas rio-grandenses”.

JÁ – Nicolau Dreys, inclusive, morava na cidade quando Saint-Hilaire esteve em Porto Alegre. No entanto, o naturalista não o menciona. Por quê? Afinal, não havia tantos franceses na cidade. E Dreys era um comerciante e homem de iniciativa.

SCF – Há em Nicholas Dreys uma referência a Saint Hilaire: encontraram-se num almoço em Rio Grande. Mas fora serem ambos franceses, talvez não houvesse muita sintonia entre os dois. Dreys era um bonapartista refugiado e, num tempo de “restauração” bourbônica, talvez não conviesse a Saint Hilaire a aproximação.

No diário, em 12 de julho, ele alude a um negociante francês que o convidara para uma festa. Não seria o Dreys?

JÁ – Trata-se, Saint-Hilaire, do primeiro cronista de Porto Alegre que, aquela altura, apesar de capital, ainda era uma vila?

SCF – Parece-me que a primazia entre os cronistas cabe a dois portugueses: Domingos José Fernandes, autor da Descrição Cronológica, Política, Civil e Militar da Capitania do Rio Grande do Sul (Lisboa, 1804) e a Manoel Antônio de Magalhães, autor de Almanaque da Vila de Porto Alegre. O primeiro fez observações muito interessantes sobre as ruas da vila nascente, assim como o Magalhães, que era comerciante estabelecido na esquina da Rua do Cotovelo (hoje Riachuelo), com o Beco do Fanha (hoje Caldas Júnior). O Almanaque é de 1808.

JÁ – Apesar de achar a cidade mais suja do que o Rio de Janeiro, ele faz observações bastante elogiosas.

SCF – Deve-se considerar que o Rio de Janeiro já era mais urbanizada que Porto Alegre, aqui ainda circulavam muitos cavalos e cabeças de gado. Por isso seria mais suja, suponho.

JÁ – Saint-Hilaire compara, por exemplo, o Caminho Novo (atual Voluntários da Pátria), ao que existe de mais agradável na Europa.

SCF – Lembro que o Caminho Novo era recém aberto e local aprazível, à beira do Guaíba, ocupado por chácaras. Nicholas Dreys lhe fez uma descrição muito lisonjeira. “Depois de se ter passado o fundeadouro da cidade, segue-se a NO um bairro pitoresco, ao qual se deu o nome de Paraíso (atual Praça Quinze); depois deste, na mesma direção, principia uma bela alameda plantada, na beira do rio de árvores frondosas, chamada CAMINHO NOVO que prolonga-se quase sempre com os mesmos ornatos, até perto da embocadura do Rio Gravataí, é certamente dos mais excelentes passeios que se pode ver”. É claro que era o Caminho Novo antes da ferrovia, das indústrias e do comércio atacadista que viriam bem mais tarde. A descrição de Nicolau Dreys me parece mais expressiva que a de Saint Hilaire.

JÁ – Uma das críticas que faz é que, embora o Guaíba seja uma das fontes de água potável da cidade, jogavam nele toda a sorte de imundícies. A população era tão inconsciente?

SCF – Nessa época, antes das descobertas  da microbiologia, não havia muita preocupação com a sujeira dos rios. A primeira hidráulica – a Porto-Alegrense – captava água nas nascentes do Arroio Dilúvio e a distribuía sem tratamento. A segunda, que foi a Guaibense, captava direto no Guaíba e  a distribuía sem filtragem ou qualquer tratamento. O que importava era descartar o lixo grosso: animais mortos, fezes humanas.

JÁ – Saint-Hilaire foi, realmente, o primeiro a constatar que o Guaíba era um lago? Controvérsia, rio ou lago, que dura até hoje.

SCF – Se foi o primeiro não se pode afirmar com certeza. É possível que sim.

JÁ – Uma das razões da sujeira era o fato da maioria das casas não terem jardins ou pátios e, por isso, o lixo ser arremessado diretamente na rua. Procede?

SCF – Provavelmente sim. Ademais, é bom lembrar o gado e os cavalos que frequentavam as ruas com abundância. Se não havia pátios ou jardins, abundavam os terrenos baldios.

JÁ – Ele elogia o local onde estava sendo construída a Santa Casa, nos limites da cidade, o que separaria os doentes dos sãos, evitando contágios. Sinal que, na administração, havia gente bem preparada. A cidade já contava com bons médicos? Era um tempo que, embora já existisse a vacina, grassava a varíola.

SCF – Parece que essa ideia de contágio de doença já existia, mas sem noção exata de como ocorria. A microbiologia só nasceu com os trabalhos de Pasteur e Koch, quase no fim do século 19 (década de 1870).

JÁ – Ele não fala bem das construções da cidade: concepção estética, materiais inadequados, espaços exíguos como o palácio do governador, ou a matriz.

SCF – Envolvida em guerras e revoluções, a sociedade gaúcha não se preocupou muito com a estética arquitetônica. De resto o Rio Grande ainda era uma província pobre, que só prosperou depois da Revolução Farroupilha, o que explica a demolição de quase tudo o que era antigo: a velha Matriz, o palácio dos governadores, a igreja do Rosário, a Bailante da Praça da Matriz, o prédio antigo da Caixa Econômica, a “Casa de Correção”.  Por muito pouco escaparam a igreja da Conceição, o Mercado Central e outras raridades.

JÁ – Em contrapartida, ele diz que se percebe que Porto Alegre era uma cidade nova, cheia de construções. Era um momento pujante na história da cidade?

SCF – Ao tempo de Saint Hilaire, a cidade estava em crescimento. Mas ainda era muito pequena. Ele lhe atribuiu 10 a 12 mil habitantes, talvez com algum exagero, pois o Governador Paulo da Gama, em 1804, calculou em pouco menos de 4 mil os habitantes da freguesia.

Não se pode falar em “pujante” uma cidade que ainda não tinha indústria. Mas impressionava bem os visitantes e tinha boas construções em andamento.

JÁ – Também, como sugestão, fala em esplanadas. Porto Alegre já tinha recursos, do governo ou de particulares, para projetos arquitetônicos mais ousados?

SCF – Não havia recursos para iniciativas grandiosas. Nem do governo, nem dos  particulares.

JÁ – Apesar de todas as críticas, não há dúvida de que ele achou Porto Alegre muito bonita. Ela continua?

SCF – Continua bonita, mas eu não a conheço mais.

 

 

 

 

 

 

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