Não sei quem sou, que alma tenho
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo
Sou variamente outro de um eu que não sei se existe
Sinto crenças que não tenho
Enlevam-me ânsias que repudio
A minha perpétua atenção sobre mim
Perpetuamente me aponta traições de alma
A um caráter que talvez não tenha, nem ele julga que eu tenha
Sinto-me múltiplo
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos
Que torcem para reflexões falsas
Uma única anterior realidade
Que não está em nenhuma e está em todas
Sinto-me vários seres
Sinto-me viver vidas alheias em mim incompletamente
Como se meu ser participasse de todos os homens
(FernandoPessoa, Páginas Íntimas, pags 93 e 94)
Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Augusto dos Anjos