Leituras para a quarentena (1)

Não sei quem sou, que alma tenho

Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo

Sou variamente outro de um eu que não sei se existe

Sinto crenças que não tenho

Enlevam-me ânsias que repudio

A minha perpétua atenção sobre mim

Perpetuamente me aponta traições de alma

A um caráter que talvez não tenha, nem ele julga que eu tenha

Sinto-me múltiplo

Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos

Que torcem para reflexões falsas

Uma única anterior realidade

Que não está em nenhuma e está em todas

Sinto-me vários seres

Sinto-me viver vidas alheias em mim incompletamente

Como se meu ser participasse de todos os homens

(FernandoPessoa, Páginas Íntimas, pags 93 e 94)

Um comentário em “Leituras para a quarentena (1)”

  1. Psicologia de um vencido

    Eu, filho do carbono e do amoníaco,
    Monstro de escuridão e rutilância,
    Sofro, desde a epigênese da infância,
    A influência má dos signos do zodíaco.

    Profundissimamente hipocondríaco,
    Este ambiente me causa repugnância…
    Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
    Que se escapa da boca de um cardíaco.

    Já o verme — este operário das ruínas —
    Que o sangue podre das carnificinas
    Come, e à vida em geral declara guerra,

    Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
    E há-de deixar-me apenas os cabelos,
    Na frialdade inorgânica da terra!

    Augusto dos Anjos

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