Um documento sobre a formação do Rio Grande do Sul

Selo Diario de SaiEm centenas de páginas manuscritas o naturalista e botanista francês Auguste de Saint-Hilaire, registrou o dia a dia de sua viagem de um ano pelo Rio Grande do Sul a partir de junho de 1820.

Seu diário tornou-se um documento único – o olhar de um europeu culto sobre as condições de vida no Rio Grande do Sul há 200 anos,  quando era ainda um território de campos abertos, escassamente povoados.

Encerrava-se o ciclo das Guerras Cisplatinas, disseminavam-se as estâncias, estabilizavam-se as primeiras povoações nas regiões fronteiriças, uma economia começava a ganhar contornos, além da subsistência.

Embora continue a provocar controvérsias por passagens preconceituosas e outras francamente racistas, inerentes à época, não há como desconhecer a importância da Viagem ao Rio Grande do Sul,  como fonte imprescindível para o conhecimento da sociedade gaúcha.

As anotações de Saint Hilaire são decisivas para que se entenda essa realidade seminal. Nela estão as origens da sociedade riograndense.

No dia 6 de junho, quando há exatos 200 anos Saint Hilaire iniciou seu diário em território do Rio Grande do Sul, o jornal JÁ começou a publicar uma série que vai até junho de 2021.

Serão reportagens, entrevistas, artigos, debates em torno desse monumento histórico que é a Viagem ao Rio Grande do Sul, de August Saint Hilaire.

“Gaúchos e gaudérios eram os  que não tinham trabalho fixo”

Nessa entrevista a Francisco Ribeiro, o historiador Moacyr Flores (via email, em respeito ao isolamento imposto pela covid-19), aborda principalmente as afirmações de Saint Hilaire que hoje soam preconceituosas e abertamente racistas:

JÁ – Qual a importância, para a história do Rio Grande do Sul, do testemunho, em forma de diário, de Saint-Hilaire?

MF –  É um dos poucos documentos que permite a reconstituição social, política e econômica do Rio Grande do Sul, no início do século XIX.

A primeira coisa que chama atenção é a indigência dos moradores do litoral. Qual a razão?

MF – O litoral estava distante, sem portos para comunicação marítima. O único porto era o de Rio Grande, com uma barra perigosa, que permitia entrada de embarcações de novembro a março, por causa dos ventos, bancos de areia e corrente marítima vindas das ilhas Malvinas.

JÁ – A contradição entre a indigência das habitações e o trajar das mulheres, melhor, segundo Saint-Hilaire, do que as camponesas francesas.

MF – Não há contradição. Na França os nobres e sacerdotes eram os donos da terra, não trabalhavam nem pagavam impostos. Os comerciantes viviam bem numa sociedade mercantilista, embora pagassem impostos. Os camponeses não eram donos da terra, pagavam altos impostos. A miséria estava no campo. No Brasil formou-se uma economia de consumo, em troca da exploração da cana de açúcar, algodão, pedras preciosas. O morador da área rural era geralmente dono da terra.

JÁ – Nota-se, nos relatos de Saint-Hilaire, um imenso desprezo pelos índios, sobretudo pelas índias. Fala que elas não têm pudor. Também acusa de causarem muitos males aos brancos que, ao que parece, segundo ele conta, ficavam enfeitiçados por elas.

MF – A moral dos índios era diferente da moral dos europeus cristãos. O padre Ruiz de Montoya, no seu livro Conquista Espiritual, narra que, para atrair e fixar os guaranis numa missão, devia-se silenciar sobre os pecados provocados pela sexualidade, e não impor casamento monogâmico.

JÁ – Contudo, ele não deixa de acentuar a decadência moral e material dos guaranis devido a destruição das missões jesuíticas.

MF – Porque os índios ficaram sem o controle da moral pelos jesuítas, voltando aos valores ancestrais.

JÁ – Ele sempre insiste na ideia de que um dos problemas dos índios é que eles não possuem a “noção de futuro”. No que ele se apoia?

MF – No conhecimento geral. Na mentalidade indígena o passado deixou de existir, vivia-se o presente e o futuro ainda não existia.

JÁ – Ele não é preconceituoso somente em relação aos índios. Faz críticas duras a todos os grupos étnicos e sociais que viviam no Rio Grande do Sul naquele período. Trata-se do olhar de um nobre europeu, civilizado, diante de um contexto primitivo, que alterna civilização e barbárie?

MF – Até hoje o nacionalismo dos europeus é preconceituoso a quem não é de sua nacionalidade e cultura.

JÁ – Para Saint-Hilaire, gaúcho e bandido são sinônimos. Preconceito que, na época, era comum a rio-grandenses e platinos, não é?

MF – Saint-Hilaire apenas confirma a existência desses indivíduos marginais à sociedade da época. Os gaudérios ou gaúchos formavam um grupo social à parte, que não possuíam trabalho fixo.

JÁ – Ele faz muitas considerações sobre Porto Alegre. Acha-a bonita, porém mais suja que o Rio de Janeiro. Também que não há aquecimento, lareiras, nas casas…

MF – Todas as cidades eram sujas. Jogava-se todo o tipo de lixo no meio da rua, que só era limpa pelas chuvas fortes. Os camponeses na Europa tinham o estábulo numa divisão da casa, pois os excrementos e calor dos animais serviam para aquecer no inverno.

JÁ-  O Rio Grande do Sul, na época em que Saint-Hilaire esteve por aqui, era uma imensa praça de guerra, um acampamento militar, principalmente depois da anexação da Banda Oriental, sob o nome de província Cisplatina.

MF – O território do Rio Grande do Sul pertencia à Espanha pelo tratado de Tordesilhas. Os portugueses colonizaram o Brasil até Cananeia deixando o Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul atuais para os espanhóis. Só a partir de 1680, com a fundação da Colônia do Sacramento, é que a política portuguesa conquistou este território.

JÁ – Pelos relatos de Saint-Hilaire, chama a atenção o enorme contingente de soldados indígenas, havendo regimentos compostos só com esta etnia.

MF – O índio era guerreiro. Ao ser absorvido pela civilização, sentou praça no exército espanhol e português. Também trabalhou como peão, tropeiro, capataz.

JÁ – Ele fala muito sobre um general índio, Siti, e seu bando de gaúchos. Qual a relevância deste personagem?

MF – Os gaúchos surgiram junto aos toldos dos índios charruas, adotando seus costumes. E cada bando obedecia a um chefe.

JÁ – Nos meses que passou no Rio Grande do Sul, Saint-Hilaire constatou que a capitania era uma das mais ricas do Brasil. Também relatou uma série de descontentamentos, principalmente em relação aos impostos, que deflagrariam a Revolução Farroupilha.

MF – O Rio Grande do Sul exportava seus produtos de navio pelo porto de Rio Grande para o Rio de Janeiro. Também por tropas de mulas seguindo para os Campos de Curitiba, Sorocaba, e daí para o Rio de Janeiro ou Juiz de Fora. Um terço do imposto era pago na origem, isto no Rio Grande do Sul, e um terço em Sorocaba, e o terço final no Rio de Janeiro ou Juiz de Fora. Os rio-grandenses do partido farroupilha queriam que todo o imposto fosse pago na origem do produto.

JÁ – Fora o caráter científico, o que diferencia Saint-Hilaire dos demais viajantes como, por exemplo, Nicholas Dreys ou Arsene Isabelle, que percorreram o Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do século XIX?

MF – A maioria desses viajantes era financiada por grandes comerciantes europeus. Eram concorrentes. Atrás do caráter científico também tinha o objetivo de descobrir novos produtos que poderiam ser comercializados. Tinham o compromisso com seus financistas de apresentar resultados de como melhorar e ganhar mais com as descobertas que faziam. Enfim, de explorar nosso mercado de consumo.

JÁ – Embora aristocrata, Saint-Hilaire foi contemporâneo das mudanças culturais e políticas que assolaram a França e se espelharam pelo mundo. Ele tem uma relação estranha com o índio, botocudo, Firmiano, ou com outros, que pretende levar para França. O romantismo de Rosseau, do “bom selvagem,” passou longe dele?

MF – Os românticos como Gonçalves Dias e José de Alencar é que ressuscitaram o bom selvagem do Rousseau. Atualmente ainda existem os que exploram politicamente os índios como coitadinhos. Acham que devem receber toda a proteção e mordomias da sociedade dos que trabalham e produzem. Os portugueses e brasileiros que conquistaram o país sempre mantiveram a imagem do canibal, refratário ao trabalho.

JÁ – O diário sobre a viagem ao Rio Grande do Sul foi publicado postumamente. em 1887. Ou seja, entre a viagem e a sua morte, ele teve mais de 30 anos para rever, acrescentar, cortar, ou alterar. Parece, não abdicou de nenhum dos seus preconceitos?

MF – Não eram preconceitos na época em que ele escreveu seu diário de viagem. Era um olhar europeu a outra cultura.

JÁ – Os poetas Manoel Bandeira e Carlos Drumond de Andrade enaltecem Saint-Hilaire, o chamam de amigo. Os rio-grandenses teriam motivos para fazer o mesmo?

MF – Os dois poetas têm suas razões que a razão de um historiador desconhece.

Saint-Hilaire, por sua arrogância francesa, não foi convidado para as casas dos porto- alegrenses, que viram com desconfiança apenas mais um forasteiro.

JÁ – Ele descreve uma cena, numa estância, na qual um escravo, entre 10 e 12 anos, é muito maltratado. Afirma nunca ter visto criança mais triste. Trata-se de um dos relatos mais pungentes da história da escravidão no Rio Grande do Sul.

MF – Todas as crianças eram maltratadas, mas creio que a história desse moleque seja um caso único.

JÁ – Histórias de crianças judiadas pelos patrões, que remete a lenda do Negrinho do Pastoreio?

MF – A lenda do Negrinho do Pastoreio é criada durante o romantismo, já no fim do século XIX, durante a Campanha Abolicionista. Apolinário Porto Alegre deixou escrita esta lenda com o nome de Crioulo do Pastoreio. José de Alencar escreve a peça Demônio familiar, na qual o moleque é considerado como um demônio, que não é responsável por seus atos por não ter liberdade. Apolinário Porto Alegre também escreveu uma comédia, onde o negrinho é o demônio familiar. Só havia uma solução para terminar com as diabruras: dar liberdade, pois, então seria responsável por seus atos.

JÁ – Por outro lado, ele diz que os negros do Rio Grande do Sul eram os mais felizes das províncias brasileiras: comiam muita carne e não andavam a pé. Viviam a cavalgar, o que era mais um prazer do que uma fatiga. Procede?

MF – Os escravos das grandes plantações de cana-de-açúcar e de café estavam divididos em lotes. Cada lote era cuidado e disciplinado por um feitor. Os escravos domésticos gozavam de melhor viver, pois não possuíam feitor, estavam sob as ordens da mãe preta, que criou os filhos dos donos.

Os escravos das fazendas de criação no Rio Grande do Sul, que trabalhavam como peões, tinham cavalos e cuidavam de um pasto chamado de posto, morando no seu rancho, não tinham feitor. O Capataz de Domingos José de Almeida era escravo e conduzia a tropa de gado de Pelotas para a charqueada na Barra do Ribeiro, recebendo pagamento. Durante a fase do tropeirismo também havia capatazes escravos, que levavam mercadorias ou mulas para vender em Sorocaba: pagava imposto e comprava principalmente sal, ferramentas, e mantimentos retornando à fazenda de seu senhor.

O pior trabalho era na charqueada, onde se trabalhava com determinada produção, vigiado por feitor negro. Como se trabalhava durante a safra, de novembro a março, a maior parte dos escravos era alugada, pois o charqueador não iria sustentar escravos no período de março a novembro, quando cessava ou diminuía o abate de gado. Os rio-grandenses compravam escravos no mercado de Escravos, de ciganos na rua do Valongo, Rio de Janeiro. Davam preferência as crianças, pois custavam mais barato.