Infestação de peixes carnívoros ameaça pesca e ecossistema no Rio Jacuí

Palometa fisgada recentemente por pescador no Balneário Irapuá, em Cachoeira do Sul / Foto: Divulgação

Milos Silveira, O Correio , Cachoeira do Sul *

O aparecimento de palometas, peixes carnívoros considerados exóticos nos sistemas hídricos da Região Central do Rio Grande do Sul, ameaça o ecossistema e atividade econômica de pescadores do Rio Jacuí que têm na pesca profissional a principal ou a única fonte de renda.

Em Cachoeira do Sul, a infestação se acentuou nos últimos meses e as consequências desse fenômeno são percebidas por quem pesca diariamente no Rio Jacuí.

O pescador Rodrigo Rodrigues Barbosa, 32 anos, e o pai Hélio Pinto Barbosa, 68, sentiram no bolso os efeitos da proliferação desses peixes na manhã desta terça-feira (6), quando foram revisar espinhéis na região da Praia Velha colocados no final da tarde de segunda-feira (5).

Pintados e jundiás presos às redes foram devorados, o que deixou pai e filho preocupados, já que a família possui peixaria e a renda da pesca é fundamental no orçamento doméstico. “Por enquanto, a gente ainda não sabe ao certo o tamanho prejuízo que isso vai nos dar, mas estamos preocupados porque pelo que estamos percebendo essa infestação só vai aumentar”, lamenta.

SEM PREDADOR NATURAL

Como a palometa praticamente não possui predador natural, acredita-se que a população desses peixes aumente consideravelmente com o passar do tempo. Uma possibilidade, dizem biólogos e pescadores, seria o dourado agir como predador natural. No entanto, como a espécie está praticamente em extinção, acredita-se que a população desses peixes é considerada insuficiente para fazer frente à proliferação de palometas. Pescadores profissionais que fisgam peixes de linha de fundo relatam também que já pescaram espécies nativas, como jundiá, pintado, tilápia e traíra, entre outros, com barbatanas, nadadeiras e caudas mordiscadas.

Jundiás e pintados capturados em espinhéis foram devorados na Praia Velha do Rio Jacuí / Foto: Rodrigo Barbosa/Divulgação

Em entrevista recente à Rádio Rio Pardo, o biólogo Andreas Köhler, professor do Departamento de Ciências da Vida da Unisc, disse acreditar que uma das possíveis causas da proliferação no Rio Jacuí seja o desequilíbrio ambiental. “Há relatos do surgimento de piranhas por pescadores há mais de dez anos no Rio Jacuí. No entanto, a captura de predadores naturais das palometas, como o próprio peixe dourado, que está em extinção, propicia a multiplicação dessa espécie”, afirmou Köhler.

“Outro fator é o aquecimento global. A cada ano ficando mais quente, o clima muda, assim como a temperatura. As águas que antigamente eram mais frias agora ficam mais quentes, e esse clima favorece a proliferação das populações de peixes. Falta um controlador biológico”, explicou o biólogo.

Embora seja uma espécie carnívora, as palometas não têm por hábito atacar humanos, a não ser banhistas que apresentem algum tipo de ferimento ou corte, já que esses peixes são atraídos pelo sangue.

Exemplares das próprias palometas também já foram pescados de linha no Rio Jacuí e afluentes, como o Irapuá. Em meados no mês passado, um banhista que pescava por esporte na região conhecida como Poço da Laje, próximo ao Baleneário Irapuá, ficou surpreso ao fisgar uma palometa com linha, anzol e isca usados para fisgar espécies nativas.

ENTREVISTA:

Deividi Kern, biólogo-chefe do Departamento Ambiental da Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA) de Cachoeira do Sul e licenciador ambiental

1) Nos últimos meses, vem aumentando o número de relatos em redes sociais e em reportagens de jornais e portais de notícias a respeito de infestação de palometas no Rio Jacuí. A Secretaria de Meio Ambiente de Cachoeira do Sul já foi acionada a respeito para averiguar essa situação?

A secretaria Municipal de Meio Ambiente não foi acionada oficialmente para averiguar a situação de ocorrência de possível desequilíbrio ecológico da ictiofauna do rio. Apenas acompanhamos os fatos noticiados na mídia local e regional. Atualmente existem relatos de ocorrência ao longo do Rio Jacuí e Rio Pardo.

2) Nesse caso específico das palometas, existe algum tipo de intervenção por parte da Secretaria que possa se mostrar eficaz para controlar a disseminação desses peixes?

As medidas de controle passam necessariamente pelo monitoramento inicial de locais de ocorrência destes animais e, diretamente, pela fiscalização de ações que envolvem pesca predatória. O desequilíbrio ocasionado pela pesca predatória, ou até pela piscicultura sem o devido controle ambiental, podem contribuir para o desequilíbrio ecológico da ictiofauna. Existem algumas hipóteses a serem consideradas em relação a ocorrência de possível aumento da frequência da espécie no rio. Entre as hipóteses, a principal está relacionada ao desequilíbrio ambiental do ecossistema, seja ele ocorrente através da pesca predatória, introdução de novas espécies e/ou através do aquecimento global, em que a alteração da temperatura das águas pode ser capaz de alterar o ciclo reprodutivo de determinadas espécies de peixes, favorecendo determinadas espécies em detrimento de outras. No caso das palometas, a espécie predadora é o peixe-dourado (Salminus brasiliensis), no entanto, esta espécie está na listagem oficial das ameaçadas em extinção. Portanto, é importante salientar que o recurso hídrico possui uma determinada dinâmica e capacidade de suporte alimentar para sustentar os animais existentes e que, ao surgir, por algum motivo, proliferação de determinada espécie, por introdução ou diminuição de outra, esta passa a competir em nível trófico com as naturalmente ocorrentes em frequência menor. O impacto ambiental causado pela introdução de animais exóticos ou extermínio de determinada espécie nativa predadora pode ser, portanto, um fator determinante na conservação de espécies nativas ocorrentes no recurso hídrico envolvido.

É importante também ser destacado que, conforme registro em pesquisa de bibliografia científica consultada, foi reportado a ocorrência nas Bacias Hidrográficas do Rio Jacuí e Uruguai de duas espécies que são popularmente denominadas de palometas, entre elas estão Pygocentrus nattereri popularmente conhecida como piranha/palometa vermelha, e a Serrasalmus maculatus popularmente conhecida como piranha/palometa amarela.  A piranha/palometa vermelha possui ocorrência natural nas bacias do Amazonas, Araguaia-Tocantins, Prata, São Francisco e em açudes do Nordeste brasileiro. Já a piranha/palometa amarela ocorre naturalmente nas bacias do Paraguai, Paraná e Amazônica. Portanto, as espécies de palometa são exóticas ao ecossistema local em relação à ictiofauna, especialmente, do Rio Jacuí. Os resultados da pesquisa em relação a ocorrência de espécies decorrente da pesca artesanal, para o ano de 2016 foi de 1,3 a 1,5% conforme dados consultados.

3) Como o pescador profissional pode agir para se adaptar a este novo momento, já que há relatos de que espécies como traíra, pintado e jundiá – bastante apreciados na nossa gastronomia – estão entre os alvos das palometas?

Deve ser respeitado primeiramente o período reprodutivo das espécies conhecido como período de piracema ou defeso da pesca, que no estado do Rio Grande do Sul ocorre entre os meses de outubro a janeiro. Também deve-se conhecer o ecossistema envolvido na atividade e respeitar os níveis tróficos (posição que cada um ocupa na cadeia alimentar), evitando promover mais desequilíbrio. Também devem ser respeitadas as recomendações dos órgãos ambientais competentes, neste caso, a jurisdição sobre a fauna do estado do Rio Grande do Sul pertence à Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Órgão locais (municípios) podem colaborar e contribuir com políticas públicas necessárias.

INVASÃO DE PALOMETAS NO RIO JACUÍ – AS LAGOAS DO LITORAL SÃO AS PRÓXIMAS?

Os biólogos e professores da UFRGS, Luiz R. Malabarba (Departamento de Zoologia) e Fernando Gertum Becker (Departamento de Ecologia) e os servidores do Museu de Ciências Naturais/SEMA, especialistas em peixes Marco Aurélio Azevedo e Vinícius Araújo Bertaco, explicam os tipos comuns de piranhas e palometas no Rio Grande do Sul.

“Neste verão foram veiculadas informações com registros de captura de palometas ou piranhas no rio Jacuí, principalmente nos municípios de Cachoeira do Sul e Rio Pardo, na região central do estado, e mais recentemente no município de Vale Verde.

No Rio Grande do Sul ocorrem naturalmente duas espécies do grupo das piranhas (família Serrasalmidae), a Palometa (Serrasalmus maculatus) e a Piranha (Pygocentrus nattereri), mas somente na bacia do rio Uruguai.

O rio Uruguai faz parte da bacia do rio da Prata, assim como os rios Paraná e Paraguai, e compartilha algumas espécies de peixes de água doce com o Pantanal do Mato Grosso, como por exemplo o Surubim, arraias de água doce, a Palometa e a Piranha. O rio Jacuí faz parte da bacia da laguna dos Patos e apresenta uma fauna de peixes de água doce marcadamente diferente daquela do rio Uruguai. São cerca de 275 espécies de peixes na bacia do rio Uruguai e 200 na bacia da laguna dos Patos; dessas, apenas 86 espécies ocorrem nas duas bacias. Já a bacia do rio Tramandaí é a terceira maior bacia hidrográfica do estado, com cerca de 100 espécies. Somente 53 espécies ocorrem simultaneamente nas bacias do rio Uruguai, laguna dos Patos e rio Tramandaí.

A Palometa (Serrasalmus maculatus), mostrada nas fotos dos registros para o rio Jacuí, não é nativa da bacia da laguna dos Patos, correspondendo a uma espécie alóctone e invasora nesta bacia. Nas últimas 2 a 3 décadas tem sido registrada a presença de espécies alóctones invasoras na bacia da laguna dos Patos.  Estas incluem principalmente o Peixe-cachorro (Acestrorhynchus pantaneiro) (link), o Porrudo (Trachelyopterus lucenai), e a Corvina-de-Água-Doce (Pachyurus bonariensis)(link), todas nativas da bacia do rio Uruguai .

Duas destas espécies (Acestrorhynchus pantaneiro e Trachelyopterus lucenai) se dispersaram posteriormente até a bacia do rio Tramandaí e lagoas costeiras do nordeste do estado (link).

Recentemente foi demonstrado que a presença de uma pequena espécie alóctone de Peixe-banjo na bacia do rio Tramandaí foi ocasionada pela conexão artificial entre a lagoa do Casamento (bacia da laguna dos Patos) e a lagoa Fortaleza (bacia do rio Tramandaí) por canais de irrigação(link). E este foi provavelmente o mesmo caminho de dispersão das duas espécies da bacia do rio Uruguai invasoras na laguna dos Patos e na bacia do rio Tramandaí (Acestrorhynchus pantaneiro e Trachelyopterus lucenai).

Caso essas rotas  artificiais de dispersão não sejam investigadas e interrompidas, é previsível que as palometas venham a invadir as lagoas costeiras do litoral norte em um futuro próximo.

E não podemos nos esquecer de outras quase 200 espécies que ocorrem na bacia do rio Uruguai e não ocorrem no rio Jacuí, como a piranha do Pantanal, que podem se tornar invasoras na bacia da laguna dos Patos se possíveis conexões não forem detectadas e interrompidas.

* Com informações complementares 

 

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