Saúde, economia e política em jogo na terceira onda do Corona

"Minha primeira república de bananas", diz o cartaz exibido no programa satírico, Heute Show, com o humorista, Oliver Welke, na rede pública de comunicacao, ZDF, na Alemanha.

A Alemanha inicia abril na crista da terceira onda da pandemia do Corona. Além da saúde, a catástrofe maior que se desenha no horizonte é a da política, arrastada pela da economia. A incidência de infectados por semana era 139,6 por cem mil habitantes em 1 de Abril. Um dia depois era 142,1. O principal número da política do governo Angela Merkel na luta contra o covid-19 não pára de crescer desde o fim de fevereiro.

Na segunda metade de março, quando a marca de 100 infectados por 100k.habitantes foi ultrapassada, Merkel quis puxar o “freio de emergência” das medidas de relaxamento do confinamento e reabertura, baixadas um mês antes . Após 12 horas de “consultas e debates” com todos os governadores, anunciou um Lockdown total para o período da páscoa, que na Alemanha dura duas semanas.

Contra-ordem

“Não vejo sustentabilidade nas medidas, dentro do que prescreve a constituição. Os direitos fundamentais são sagrados dentro do direito constitucional, e é necessário uma situação de calamidade, que não existe no momento”, declarou o professor de direito constitucional Dr. Volker Bohimme-Nessler, da universidade de Oldenburgo, horas após o anúncio, em entrevista ao jornal Die Welt. 

Na manhã do dia 24 de março, a chanceler que está há 16 anos no poder da maior economia da Europa, voltou ao mesmo salão de imprensa onde anunciara o confinamento da Páscoa. Não apenas retirou as medidas baixadas na madrugada do dia anterior, como pediu desculpas. Um fiasco sem precedentes na história política do país.

Desgastada paciência

“O que foi isso? Diletantismo? República de bananas? Caos?… que chance temos contra o vírus assim?”, satirizou o comediante e apresentador Oliver Welke, em seu programa semanal de humor na rede pública ZDF (Heute Show). Na prática, segundo explicaram vários políticos, o que ocorreu foi que além do direito fundamental de ir e vir, a “páscoa do toque de recolher” interromperia as redes de distribuição de suprimentos fundamentais para a época, como os ovinhos de páscoa.

“Cinco meses de confinamento desgastaram a paciência da população”, declara Welke no programa, lembrando do pedido do governo à população para aguentar só mais três semanas, e assim poder ter um Natal. A piada pronta seria engraçada, não fosse o fato de que desde o início da segunda onda, em Outubro de 2020, Merkel e seus ministros pediram por cinco vezes paciência aos alemães, prorrogando impiedosamente o Lockdown. Mesmo com o sacrifício, mais de 60 mil pessoas morreram de covid-19 na segunda onda. Seis vezes mais do que na primeira. 

Idas e vindas

Outros números aumentam a preocupação atualmente. Com tendência de alta, o número de novos casos passa dos 20 mil por dia no país. Cerca de 90% deles relativos à variante britânica do vírus. Também em alta é a ocupação de UTIs. Na capital Berlim, por exemplo, menos de 15% dos leitos disponíveis estão vagos, e o número de pacientes só aumenta. No total, abril começa com 3,9 mil UTIs ocupadas, das cerca de 6 mil disponíveis em toda Alemanha. Dez milhões de alemães já foram vacinados. Menos da metade deles com a segunda dose.

As idas e vindas com a vacina também somam para o debacle da confiança no governo. O case do momento é o vacina da Astra-Zeneca. Desde o início do ano ela já foi liberada e proibida três vezes na Alemanha, por diferentes razões. A última delas devido a observação de casos de trombose em pessoas que receberam a primeira dose. Ao final, o Comitê Permanente de Vacinação (Stiko), órgao do Robert-Koch-Institut (www.rki.de), responsável pela política de imunização, inverteu sua recomendação anterior, e liberou a Astra-Zeneca para pessoas com mais de 65 anos. As mais jovens, podem receber a vacina também, mas sob o próprio risco. De trombose, no acaso. 

Vácuo

Da mesma forma, é impossível explicar para o cidadão comum, as discrepâncias presentes na política de combate da pandemia, encampadas pelos partidos da coalizão em Berlim. Merkel e alguns governadores, como o da Bavária, Markus Soder, propunham cancelar as férias, dentro da Alemanha, durante a páscoa. Por outro lado, as férias em Maiorca estavam liberadas. Afinal, de acordo com os índices oficiais, a ilha mediterrânea deixou de ser área de risco e os hoteleiros locais dependem crucialmente dos turistas alemães para sobreviverem.

Em território nacional, o vácuo deixado pela contra-ordem da primeira ministra abriu espaço durante a páscoa para o sentimento de autodeterminação dos cidadãos, cada vez mais atônitos com as medidas impostas. “Não sabíamos do recrudescimento do toque de recolher”, revela Peter Wolsniak, dono da pizzaria W no bairro de Neukölnn da capital, Berlim. Dois de seus funcionários foram abordados pela polícia quando saíam do trabalho, na sexta-feira santa. O proprietário acabou notificado pelas autoridades, pois os rapazes deveriam portar um documento do restaurante, justificando o motivo de estarem na rua depois do toque de recolher, às 21 horas.

Hiper-burocracia

“É a hiper-burocratização do problema para não resolvê-lo”, reclama ele, apontando para a praça na frente da pizzaria. A famosa Weichsel Platz, onde adultos e crianças, jogam, brincam, conversam sem máscara, diariamente. “Nunca vi ninguém da polícia ali controlando quem não usa de máscara”, conta Wolsniak. Para ele, após cinco meses de confinamento, é natural as pessoas passarem a ignorar as medidas de higiene e distanciamento. “Ninguém pode viver permanentemente com medo”, acredita.

No comércio, aberto com restrições, a norma mais recente é a exigência de um teste rápido para entrar em uma loja de eletrodomésticos, por exemplo. “Gasto 20 ou 30 Euros para entrar em uma loja onde vou comprar um produto de 15. Que lógica há nisso?!”, indaga-se espantado Damian Ojan, músico cubano radicado há 20 anos na capital. Ele buscava um fone de ouvido, e gostaria de provar o produto antes de comprar em uma das filiais do grupo Media Markt.

Distopia kafkiana

O ministro da saúde, Jens Spahn (CDU), prometeu testes gratuitos em meados de março. Na farmácia, a poucos metros da loja do Media Markt, localizada dentro do shopping center Arcaden de Neukölln, informa-se: para obter um teste é necessário marcar hora no site da secretaria de saúde local, e comparecer ao posto de teste indicado. Todas as pessoas residentes no país têm direito a um teste por semana. Mais do que isso, é necessário comprar um, que na farmácia em questao custava 29 Euros, a caixa com cinco testes rápidos. “Às vezes, me parece que estou vivendo em uma distopia kafkiana”, diz o cubano.

A crescente insatisfação da população pode ser vista principalmente nas manifestações organizadas pelo “Movimento do Pensamento Esquisito” (Querdenken Bewegung). Tratado, na esmagadora maioria dos casos, com desdém pela mídia mainstream, a organização tem conseguido reunir centenas de milhares de pessoas, em protestos semanais itinerantes. 

Desafio

No Sábado, 03 de abril, foi a vez de Stuttgart, no Sudoeste, receber os “pensadores esquisitos”, pecha galvanizada nos corredores das redes públicas de comunicação, ARD e ZDF. Como de costume, sem respeito ao uso obrigatório de máscaras e ao distanciamento mínimo, os manifestantes desafiaram a polícia, marchando juntas pelo centro e principais ruas da cidade.

“Reprimir uma manifestação dessa magnitude só pioraria o risco de contaminação de todos”, justificou na televisao, o comandante do policiamento durante o evento, Carsten Höfler. Nao é a primeira vez que manifestações contra as medidas de combate da pandemia ignoram as determinações do governo e desafiam as ordens da polícia. Antes da capital de Baden-Wurttenberg, Leipzig, Kassel, Dusseldorf, Dresden, Berlim, entre outras também viveram cenas semelhantes.

Autor: Mariano Senna

Mariano Senna, nasceu em Porto Alegre. Formou-se em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (1995). Trabalhou em veículos impressos diários, semanários e mensários no Sul do Brasil. No JÁ, coordenou o projeto dos jornais de bairro (JÁ Bom Fim, JÁ Moinhos) e a criacao da Agência de Notícias Ambientais - Ambiente JÁ, no final dos anos 90. Em 2003 mudou-se para Berlim, na Alemanha, onde atua como correspondente, tradutor e consultor. Mariano têm mais de 20 anos de experiência no acompanhamento e reportagem de temas controversos, envolvendo interesses corporativos. É mestre (Master of Science) em mídia digital pela Universidade de Lübeck e tem doutorado (PhD) em ciência da informação no Instituto de Biblioteconomia e Ciência da Informação (IBI) da Universidade Humboldt de Berlim.

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