O conveniente fantasma do “comunismo”

Da série, é sempre bom lembrar… Artigo publicado em setembro de 1977 na Revista da Civilização Brasileira.

Por Enio Silveira

Terminei um artigo com uma referência à monótona reiteração de acusaões feitas pelos porta-vozes do regime de 64 aos “comunistas” (classificação amplíssima que engloba, independente de filiação partidária, todos os seus opositores mais articulados), tomando-os como responsáveis diretos ou indiretos de todos os males e problemas que afligem o Pais no campo sócio-econômico e ameaçam sua estabilidade institucional.

Há uma greve? Foram os “comunistas que a insuflaram…Luta-se pela anistia? São os comunistas que inflamam a campanha…Marcham contra a carestia as donas de casa? Podem ver que, instigando-as há algumas agitadoras “comunistas”… Organizam-se movimentos em defesa da Petrobras, da Amazônia, contra o escândalo da compra da Light? Atrás deles estão os “comunistas”, sempre os “comunistas”…

Os inspiradores e os beneficiários do golpe de 64 – um golpe que se autodenominou revolução, mas jamais foi outra coisa, como todos sabem do que a cristalização de um movimento em defesa das camadas mais convervadoras da sociedade brasileira e dos interesses de seus parceiros majoritários do capitalismo multinacional – sempre classificaram sob o rótulo “comunistas” todos aqueles que, com maior ou menor consequência, lutam hoje, como lutavam antes de 1964, por uma vida melhor, mais digna e justa para o povo brasileiro; que se dedicam, como sempre fizeram, à defesa dos legítimos interesses nacionais contra a espoliação estrangeira; que tomam partido, hoje como ontem, ao lado dos danados da terra, dos humilhados e ofendidos das cidades cada vez mais desumanas, contra a prepotência e os golpes baixos de todos aqueles, que batendo no peito e falando em manifesto destino de grandeza do Brasil, querem para si, prioritariamente, as benesses dessa grandeza.

É evidente que, para eles, “comunistas” não são apenas os membros do PCB, ou de suas dissidências. Socialistas, anarquistas, católicos, progressistas e até mesmo liberais que se movimentaram contra a ditadura, particularmente depois do AI-5, todos podem – devem – ser cobertos pelo mesmo rótulo.

 

 

Postura anticomunista

O general (da reserva remunerada) Ferdinando de Carvalho, que se julga e é considerado por seus colegas de farda a maior autoridade nacional em “comumismo”, outra coisa não tem feito, desde 1964, do que tentar um levantamento “científico”, digamos assim, da “infiltração comunista” em todos os setores da vida brasileira.

Encarregado de um Inquérito Policial Militar sobre as atividades do PCB e de organizções subsidiárias ou afins, o então coronel Ferdinando publicou em quatro volumes editados pela Biblioteca do Exército o que pretendia e prometia ser a devassa das devassas, o mapeamento mais completo – horizontal e verticalmente – do “comunismo” no Brasil. Mais recentemente, já reformado, continua sua dedicação à causa com a publicação de romances-repoirtagem, um dos quais, muito à propósito, se intitula “Os Sete Matizes do Vermelho”, em todos eles tentando desmascarar “os solertes inimigos da democracia ocidental e cristã”.

Basta examinarmos a fundo essa já extensa bibliografia ferdinândica para verificar que ela é destituída do mais elementar valor, seja científica, seja literalmente.

Sua base documental sendo a avalanche de dados suspeitos obtidos em inquéritos policiais, sobre o qual se entrega à interpretação preconceituosa de fatos notórios, tanto os livros de “pesquisa” quanto os de “criação” se ressentem duma deformação básica: o autor quer adaptar a realidade às suas estreitas e precárias concepções teóricas.

A postura anticomunista, habilmente instigada dia após dia pelos principais veículos de comunicação social do pais, numa campanhya estruturada e desenvolvida (hoje se sabe com toda a certeza) pela CIA e pelo Pentágono (este agindo diretamente sobre a oficialidade das Forças Armadas), foi um dos esteios do golpe de 1964, supostamente desfechado para manter o Brasil alinhado entre as nações “cristãs, ocidentais e democráticas”…

Golbery do Couto e Silva, um general muito mais sofisticado intelectual e culturalmente do que seu ingênuo colega Ferdinando, não teve a menor dúvida quanto à validade do pretexto, defensor apaixonado e era e ainda é, das teses americanas relativas às “fronteiras ideológicas”, apesar de elas estarem hoje em progressivo “desaquecimento” – para usar uma expressão da moda.

Em seu livro “Geopolítica do Brasil” (José Olýmpio, 1967) afirma na pág. 244 que “…a estratégia da guerra fria é necessáriamente uma estratégia mundial e…no quadro desta, o bloco comuno-sociético coordena seus esforços em duas grandes áreas distintas: a dos povos não ocidentais, aos quais busca atrair para sua órbita, afastando-os de qualquer alianças ou acordo com o Ocidente; e a do próprio mundo ocidental, onde busca espalhar a cizânia, a desconfiança e o caos, enfraquecendo-o e dissociando-o com sua pregação antiamericanista, anticapitalista, anti-cristã, materialista e demagógica. Estamos pois, na América do Sul, também sobe a cínica ofensica do comunismo desagregador e pervicaz”.

Mais adiante, à pag. 254, conclui sonoramente que: “Ante a investida multiforme e tenaz de um novo imperialismo insaciável que empunha, nas mãos hábeis, uma ideologia dissociadora, pretensamente campeã da justiça social e das verdadeiras liberdades do homem, que se mascara sob as mais justas aspirações nacionalistas e os mais nobres ideais democráticos…-…damo-nos bem conta hoje das graves e múltiplas vulnerabilidades que o Brasil apresenta e às quais urge reparar sem tardançpa, para que não venhamos a soçobrar neste embate gigantesco entre dois mundos inconciliáveis”.

Questão fisiológica

Sob o pretexto de combater uma iminente tomada de poder pelos “comunistas”, alguns dos principais comandantes das três armas deixaram de lado seus sagrados juramentos profissionais e, com base em princípios dessa estratégia internacional concebida e definida em Washington, derrubarem um governo legítima e legalmente constituído pelo povo brasileiro que, julgado pela sua preconceituosa ótica, dava apoio aos “vermelhos”.

Na verdade instigados à rebelião pelas necessidades da Guerra Fria, não apenas derrubavam um presidente civil em quem não confiavam, mas colocavam ao mesmo tempo uma pedra sobre as reformas de base – estas sim iminentes! – que o governo João Goulart, apesar de suas contradições internas e de sua precária sustentação política e militar, se dispunha ( e efetivamente começava) a promover.

A questão, como se vê, era e é muito mais fisiológica do que ideológica.

Colocadas a serviço de interesses antinacionais e antipopulares pela ingenuidade de muitos de seus membros, bem como por uma noção de patriotismo antes emocional do que historicamente fundamentada, nossas Forças Armadas foram ardilosamente manipuladas contra os próprios princípios democráticos que julgavam estar salvaguardando.

Aos setores progressistas de nossa vida política, ao meio universitário, à intelectualidade brasileira, cabe a tarefa de manter bem presente esse conceito na co9nsciência popular, para que a Nação possa repudiar com o maior vigor toda e qualquer tentativa de utilização do fantasma do “comunismo” pelas forças reacionárias e antinacionais.

Por mais cobertos de descrédito que já estejam nos mais variados setores nacionais, ainda sensibilizam certos meios militares esses apelos à luta contra “a ameaça do comunismo internacional”, contra a “agitação promovida pelos seguidores de Moscou…ou de Pequim…ou de Havana…”

Abertura Democrática

Bastou surgir no horizonte político brasileiro, como tardia consequência de continuado e cada vez mais amplo clamor popular, os primeiros clarões de uma “abertura democrática” para que vozes ameaçadoras de alguns altos chefes militares de novo se fizessem ouvir, assegurando-nos a todos, povo e governo, que “os revolucionários de 1964 não tolerarão além dos limites que lhes possibilitem mentar a salvo as instituições”, advertindo-nos sobre as providências acaulteladoras que devem ser tomadas a fim de que o “comunistmo internacional não se prevaleça outra vez das facilidades democráticas para tentar impor-nos sua doutrina anticristã e antiocidental”…

É realmente grotesco, para usar uma palavra suave, que centro e trinta anos após a publicação do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, com duas guerras mundiais de permeio, inúmeras revoluções nacionais que mudaram profundamente a história da humanidade inteira, descobertas científicas extraordinárias que desintegraram o átomo e levaram o homem ao espaço, as classes dominantes brasileiras e alguns setores do comando de nossas Forças Armadas (que parecem dedicar-se mais à defesa dos injustos privilégios que aquelas se atribuíram, do que garantir à Nação o direito de escolher livremente seus caminhos políticos e econômicos) ainda se deixem apavorar pelo mesmo fantasma que, em 1848, assustava a Europa…

As nações mais desenvolvidas do sistema capitalista acabaram com ele: não apenas asseguraram ampla liberdade de atuação a seus partidos comunistas ( no caso da França e da Itália eles são tão fortes que bem podem chegar ao poder , por via eleitoral, em futuro não remoto), como se empenham intensamente em desevolver suas relações comerciais e culturais com a União Soviética, a República Popular da China e os demais países da área socialista, não obstante a concomitância de sua partição em tratados como a OTAN.

O próprio Brasil, que já transcionou com todos eles (apresentando constantemente superávit comercial em sua balança comercial), está empenhadíssimo, agora, em vender muito mais ao imenso mercado chinês, embora sempre de pé atrás em tudo aquilo que se refira a contatos não comerciais, acreditando que as relações culturais com o bloco socialista representam uma porta aberta para a entrada de tais “doutrinas exóticas”, de que tanto falam, trêmulos, os porta-vozes da reação.

Por mais grotesco, anacrônico e antieconômico que seja tal sentimento, ninguém lhes nega ou negará o direito de se dizerem apavorados. O que não podemos tolerar mais, sob pena de bem merecermos todo e qualquer ato de violência que voltem a cometer contra os princípios democráticos, é que seu declarado temor sirva de solerte instrumento para que tentem indefinidamente prolongar sua injusta e abusiva hegemonia.

Velho Fantasma

Sendo óbvio que a efetivação de tal “abertura democrática” e a subsquente normalização institucional que ela proporcionará à vida brasileira se apresentam muito mais danosas para eles, seus privilégios, sua corrupção e seu abuso de poder do que seriam úteis aos supostos agentes do “comunismo internacional”.

Por mais anti-comunista que seja o general João Figueiredo está amplamento documentado (não foi à toa, presume-se que ele teve tantos anos em suas mãos o controle da complexa máquina de informações sobre o fato de que os elementos consequentes da esquerda, sendo seus adversários natos, não tem o menor interesse em desafiá-lo com provocações idiotas, nem levar o país ao caos.

O fantasma do “comunismo, que o novo Presidente, apesar de remanescente servidor do “espírito de 64”- não precisará invocar mais a partir de agora, talvez venha a ser usado pelos ultras civis e militares na luta que poderão armar contra seu governo, se ele efetivamente se dispuser a um diálogo franco, limpo, construtivo com o povo brasileiro. Mas, se assim for, ele, o povo e as Forças Armadas, no que têm de melhor, poderão juntos enfrentar e esmagar os semeadores de tempestades”.

Setembro de 1977.