Embrapa 40 anos: os híbridos do cerrado

Os embrapeanos e seus admiradores estão festejando os 40 anos da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criada em 1973 por Emilio Medici, o general ocupante da Presidência da República.
O fato de ter nascido em plena ditadura militar não tira o brilho da Embrapa. Mesmo sendo a mais recente joia da república, ela alcançou em relativamente pouco tempo um nível de excelência equivalente ao do Banco do Brasil (1851), BNDES (1952) e Petrobras (1953), sem falar de outros gigantes da civilização brasileira, como a Eletrobrás e a USP.
Com 47 centros de pesquisa onde trabalham mais de 2 mil cientistas e técnicos de nível superior, a Embrapa é um grande laboratório experimental que caminha ao lado dos produtores e, frequentemente, antecipa soluções agronômicas para problemas latentes; outras vezes é obrigada a correr atrás do prejuízo causado por pragas ou doenças. É o
caso da ferrugem da soja, que atormenta os produtores há mais de 10 anos.
Por tudo isso, é praticamente impossível imaginar o Brasil-potência-agrícola sem a ajuda embrapeana em pesquisas de solos, frutas, grãos, fibras e manejo de diversas espécies vegetais e animais.
“Nós vencemos sem seguir nenhum modelo agrícola externo”, afirmou o presidente da Embrapa, agrônomo Mauricio Lopes, na palestra de encerramento de mais um evento comemorativo realizado no final de setembro na sede da Federasul em Porto Alegre. Ninguém o contestou – talvez porque, sendo uma festa, o terreno parecia liberado para a semeadura de falácias.
Não é assim tão simples quanto sugere a fala do executivo estatal. Se o sucesso da Embrapa é indiscutível, não é verdade que ela se estabeleceu sem seguir um modelo.
Modelo norte-americano
Embora tenha muitas peculiariedades regionais – como a vastidão territorial e a variedade de solos e microclimas – que lhe permitiram tornar-se campeão de café, cana, frango, laranja e soja, o Brasil virou uma potência agrícola após adotar o modelo norte-americano que, desde o princípio dos anos 1950, nos impõe pacotes tecnológicos usados hoje de Picos do Piauí aos platôs do Chuí.
Não é difícil compreender o discurso e a postura de Lopes. Formado em Viçosa quando a Embrapa engatinhava, ele é um híbrido de cientista e político formado nos embates entre a pesquisa técnica, a burocracia estatal e os interesses do Agronegócio. Originalmente era geneticista (com pós-graduação nos Estados Unidos, claro) mas a luta pela sobrevivência da Embrapa o levou a trocar o laboratório pelos gabinetes onde nos últimos 20 anos vicejaram diversos projetos da iniciativa privada.
Nessa virada da pesquisa pura para a pesquisa comercial, a Embrapa abraçou como parceiros preferenciais as empresas de sementes e agroquímicos. Muitos pesquisadores com talento para os negócios preferiram tornar-se vendedores de projetos de pesquisa e/ou captadores de verbas necessárias à sobrevivência da empresa num ambiente dominado pelo pensamento neoliberal. Foi uma transformação tão grande quanto a migração das sementes orgânicas para transgênicas nas principais lavouras comerciais brasileiras. Não se deve esquecer que os embrapeanos pouco resistiram à pressão industrial pelos transgênicos.
O pragmatismo empresarial de Mauricio Lopes faz lembrar os agrônomos Luiz Fernando Cirne Lima e Allisson Paulinelli, os dois ministros responsáveis pela criação e implantação da Embrapa, entre 1973 e 1979.
Embora tenham nascido nos anos 1930, eles vieram de escolas diferentes. Cirne Lima formou-se em Porto Alegre e doutorou-se na Inglaterra. Paulinelli estudou em Lavras (MG) e posgraduou-se nos Estados Unidos. De certa maneira representam duas épocas, duas influências. Cirne ligado na pecuária europeia. Paulinelli, no agribusinesse norte-americano.
O marco divisório dessas duas épocas da agricultura brasileira foi uma planta chamada Glycine max, a fabulosa soja. Quando Cirne estava deixando o ministério, em 1973, a soja estava organizando a ponte Ijuí-Chicago. Quem mais se beneficiou dessa tremenda ascensão foi o mineiro Paulinelli, dublê de técnico e político que até mandato de senador exerceu por Minas Gerais, anos depois de deixar o Mapa.
Assim, não é por falta de conhecimento histórico, mas por conveniência política, que o maior executivo da Embrapa espalha a versão que mais afaga a autoestima nacional. Mas é fraude histórica dizer que o Brasil virou potência agrícola sem pagar tributo a qualquer modelo estrangeiro. Na realidade, é a dependência tecnológica, financeira e mercadológica que mantém o pais numa situação semelhante à da colônia dos primeiros séculos da história nacional.
Podemos sumarizar as influências predominantes sobre a agricultura brasileira, ao longo dos seus 500 anos, da seguinte forma:
I – De 1500 a 1800, cultivamos cana à moda afroportuguesa e mandioca, milho e fumo à base do extrativismo indígena
II – De 1800 a 1900, cultivamos café, algodão e plantamos ferrovias
para atender ao mercado europeu
III – Em 1887, D. Pedro II criou o Instituto Agronômico de Campinas,
entregue à direção técnica de europeus
IV – A partir de 1895, difunde-se o livro “Cultura dos Campos” (Assis
Brasil), uma compilação de técnicas agrícolas da Europa também usadas nos Estados Unidos
V – Após a Primeira Guerra (1914-1918), inicia-se a pesada influência exercida por indústrias de máquinas, pesquisadores e empresas norte-americanas compradoras de matérias-primas agrícolas
VI – Após a Segunda Guerra (1939-45), a importação de trigo amarra
definitivamente o Brasil aos EUA, que passa a nos vender máquinas e diversos insumos de acordo com um receituário que alcançará dimensão internacional com a Revolução Verde financiada pelos irmãos Rockefeller
VII – Em 1962, a citricultura brasileira vive um “boom” para atender o
mercado americano
VIII – A partir da 1973, o Brasil cultiva a soja de acordo com o
modelo americano, presente em todas as pontas do processo produtivo
No livro O Brasil da Soja – A Rainha do Agronegócio, deixei claro que a
revolução agrícola feita no cerrado brasileiro nos últimos 40 anos
teve três protagonistas básicos: a soja, os agricultores e os técnicos/cientistas.
Foi uma corrida de revezamento em que os três atores evoluíram se ajudando mutuamente, mas o denominador comum foi a tecnologia norte-americana, que se impôs por meio de uma presença maciça em termos de máquinas, fornecimento de insumos e compra de produtos.
Nessa saga extraordinária, a soja foi adaptada a diversas regiões brasileiras por um excepcional corpo de agrônomos e técnicos agrícolas – não só da Embrapa, mas também da Emgopa, da Epamig, do IAC, das Emateres estaduais e de escolas superiores e de grau médio de tecnologia agrícola.
Claro que houve subsídios governamentais, mas em todo o mundo a agricultura recebe ajuda oficial. O mais importante é que a partir da soja, muito mais do que antes, o Brasil se tornou tributário e dependente do modelo norte-americano, tanto que acabamos adotando como nossa terminologia que o define: agribusiness/agronegócio.
Como negar toda essa influência modelar se desde a Segunda Guerra Mundial centenas de agrônomos brasileiros foram se aperfeiçoar-se em universidades e centros de pesquisas dos EUA?
Citemos um dos primeiros e talvez o mais conhecido deles: José Gomes da Silva, o Zé Sojinha, voltou de lá em 1948 com a ideia do fomento da lavoura de soja mediante um pacto tripartite entre governo (financiamento da pesquisa e preços mínimos), indústrias compradoras da produção/fornecedoras de insumos e agricultores, que deviam fazer tudo de acordo com o figurino fornecido pelo IAC, a Anderson Clayton, a Bunge, a Cargill etc.
A única grande indústria nacional naquele momento (anos 1950) era a Matarazzo. Outras nativas, surgidas depois, como a Ceval (1972) acabaram sendo compradas por estrangeiros. O cooperativismo, que chegou a despontar como a terceira via de uma agricultura ancorada em pequenas e médias propriedades, deu com os burros n’água e somente nos últimos anos dá sinais de reagir.
Atualmente, indústrias nativas como Cocamar, Coamo, Caramuru, Granol e outras não chegam a se igualar, em volume de produção e compra de produção, às grandes empresas multinacionais, a maior parte de origem americana, algumas européias, uma ou outra japonesa.
Essas nacionalidades se tornaram ricas/poderosas porque têm maior nível educacional/tecnológico, acumularam mais capital e desenvolveram mercados mais amplos. É o que falta para o Brasil se tornar uma potência agrícola autônoma e a Embrapa, uma multinacional realmente livre. Por isso se espera que os embrapeanos, em vez de tapar o sol com a peneira, deixem a luz da verdade cobrir a nossa agricultura.
(Geraldo Hasse)
LEMBRETE DE OCASIÃO
“Crescimento econômico e sustentabilidade ambiental não são antagônicos, podem ser sinérgicos”
Maurício Lopes, presidente da Embrapa

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