Jovens, pobres e malditos

Por Renan Antunes de Oliveira |

Com Ana Lúcia Mohr, Carlos Matsubara, Daniela de Bem e Paula Bianchi
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ona Suzana disse que o neto avisou um dia antes de morrer que todos os problemas acabariam no feriado do Dia do Trabalho: “Acho que ele sabia o que aconteceria”, conta ela, sem derrubar uma lágrima sequer pelo menino que criou.
Maicon morreu mesmo no dia anunciado, primeiro de maio. Sexta, perto das duas da tarde. Sua morte virou notícia destacada na Zero Hora do sábado 2, véspera do dia em que faria 19 anos. O texto da reportagem reproduzia as informações oficiais do b-ó , como se diz para “boletim de ocorrência”, o registro obrigatório de incidentes policiais.
Resumo: “Um jovem e uma adolescente morreram durante perseguição na Cidade Baixa. A dupla bateu num ônibus quando tentava fugir de motociclistas da Brigada Militar (a PM gaúcha) numa moto roubada”.
O jovem era Maicon Gerônimo Cruz Teixeira de Ávila, lavador de carros, jornaleiro, pé rapado. A adolescente, Fabiana Bitencourt, 17 anos, de Livramento, filha de uruguaios. Faxineira, de mãe faxineira, neta de faxineira, grávida de quatro meses.
Os perseguidores eram dois PMs do 9º Batalhão, de Porto Alegre. Quando iniciaram a perseguição eles ainda não sabiam que a moto era roubada e muito menos que Maicon tivesse o que a Polícia Civil depois divulgaria como sendo uma “extensa ficha criminal”.
Foi um alívio para os PMs a revelação da ficha. Sem ela, eles teriam de alguma forma provocado a morte de dois inocentes – a conta fica em apenas um inocente porque Fabiana tinha 17 e ficha limpa. Ela (foto abaixo) estava na carona na hora errada: é provável que não tenha tido tempo de descer.
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A imediata revelação da ficha de Maicon pela polícia não o torna um criminoso, como parece. Tratavam-se de infrações cometidas quando menor de idade – portanto, deveriam ter sido mantidas com o sigilo determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por que perseguir até a morte dois suspeitos ? As ações da Brigada foram corretas? Para responder estas perguntas a Polícia Civil abriu o inquérito de praxe. Se foi rápida na cortesia profissional de revelar a ficha criminal do guri, está lenta em apurar sua morte: passados 40 dias o inquérito ainda estava parado.
A única versão do incidente é a da Brigada Militar. Por ela, os soldados Junior Rabelo e Kenni tentaram abordar Maicon na esquina da avenida Borges com a Riachuelo, no Centro da capital. Maicon dirigia uma Honda Twister amarela 250 cilindradas, com Fabiana na garupa. Os PMs usavam motos menos potentes, duas Yamaha 225 cilindradas.
Os PMs alegam que notaram que a placa da Honda estava dobrada, coisa que fazem criminosos para impedir a identificação das roubadas – embora a maioria não o faça porque ao dobrá-la apenas levanta suspeitas mais facilmente.
Os soldados afirmam que quando deram ao motoqueiro “voz de abordagem” – seja lá o que for este comando verbal – Maicon teria arrancado em disparada.
Não se sabe qual dos PMs chamou o número 190 para verificar se a placa era de um veículo roubado, mesmo porque a tal placa estaria dobrada. Nem quando eles chamaram: se antes da abordagem ou depois que a moto disparou. O fato: quando Maicon arrancou, os PMs saíram atrás no pega pega.
“A Brigada existe para coibir delitos”, justificou o major Gelson Guarda, do 9º BPM, que minutos mais tarde seria acionado por rádio e também participaria da caçada mortal. “Se há um delito em andamento, e no caso era uma moto roubada, é obrigação da PM tentar restituir o bem para seu dono. E quem foge, é porque tem algo errado, é porque teme”.
O jornal Diário Gaúcho relata o incidente exibindo uma ilustração com um PM de arma na mão no momento da abordagem – se tal arma foi sacada, já daria motivo para qualquer um fugir, culpado ou inocente. Só no ano passado, 168 pessoas se queixaram à Corregedoria da Brigada de abordagens violentas de PMs contra jovens pobres na periferia.
O major Gelson não vê importância na forma da abordagem: “A perseguição foi uma operação policial tecnicamente perfeita”. Ele disse que “várias viaturas espalhadas pelo centro foram acionadas para “acompanhamento” – por alguma razão, o major não queria que a reportagem usasse a palavra “perseguição”.
Mais do major Gelson: “Não tem como perseguir de outra forma, não há como fazer alguém que está fugindo da polícia parar, a não ser atirando, derrubando da moto, e isso nós não fizemos. A gente não atira, não derruba”. Na tese dele, “Maicon provocou a própria morte e a da menina na garupa”.
A perseguição que começou perto das duas da tarde na Borges acabou quase 15 minutos depois na esquina da José do Patrocínio com Joaquim Nabuco. A moto bateu num ônibus da linha Cruzeiro.
O motorista Otoniel Araújo conta que estava saindo da parada, na segunda marcha, quando ouviu o estrondo: “Eu nem quis saber e nem quero saber quem era o menino. Ele tinha roubado a moto. Então morreu alguém que só fazia mal para os outros” – como fica óbvio, Otoniel não teve nenhuma problema de consciência porque deu entrevista depois de ser informado pela polícia que Maicon seria do mal.
Maicon morreu na hora. Fabiana foi socorrida pelos PMs que a perseguiam. Recolhida pelo SAMU, foi levada pro HPS, inconsciente desde a queda. Morreu às 16h05, com fraturas na coluna cervical e na bacia. Os médicos constataram gravidez e a morte do feto.
Aos médicos, a polícia, ainda sem identificar Fabiana, disse que a adolescente seria uma mulher assaltante. Uma assistente social do HPS repassou a informação à família de Fabiana. A mãe protestou, reclamando mais da insensibilidade do que da acusação falsa, mas a assistente firmou posição pró-polícia: “Tem mãe que é cega”.
A moto foi mesmo roubada. Na noite de 28 de abril, em Ipanema. “Eu a comprei para minha filha”, diz o dono, o barbeiro Arno Manfroi, 62 anos. “Dois homens a renderam quando ela chegava da faculdade” – o capacete da filha foi encontrado com Maicon.
O barbeiro contou que por três dias chegou “a desejar a morte dos ladrões, mas quando soube do acidente fiquei com pena”. Uma moto vale duas vidas ? Seu Arno pensa um pouco. Em seguida, reage indignado: “Pensando bem, a gente não pode ter pena. Fiquei com 18 prestações para pagar, quase 12 mil”.
Um pouco de Maicon e Fabiana, além do boletim de ocorrência
Maicon era filho do romance de dois adolescentes. Pai e mãe não viveram juntos, nem com ele. Foi criado pela avó materna num bairro barra pesada.
No geral era um cara pra cima, mas nos últimos tempos andava com o papo de ser amaldiçoado e que iria morrer cedo.
Seus azares começaram quando largou o colégio na sexta série. Na era da Internet, ele só era bom em cuidar de bicicletas. Autodidata, estava estudando mecânica de motos – ao que tudo indica, nas motos de outros.
Tinha três fotos conhecidas. Numa, de roupinha amarela, é um bebê loiro e gordinho. Nas outras duas já estava interno na Febem.
Ele foi parar lá aos 16, depois que participou de um assalto com um bandido adulto. O homem pegou cadeia. Ele passou dois anos internado, saiu em novembro, em liberdade assistida.
Maicon só conheceu o pai em fevereiro. Seu Flávio é empregado de um lavajato lá perto do Hospital Conceição. Disse que antes não tinha podido falar com o menino porque a família da mãe não gostava dele – talvez porque a única coisa que deu pra Maicon em vida foi, como admitiu, um pacote de fraldas e um creme para assaduras, isto em 1991.
Apesar de uma vida separados, pai e filho estavam começando a se dar bem. O pai lhe deu trabalho, mas Maicon parece que não gostava do batente. Ficava olhando seu Flávio lavar os carros e não atinava nem em passar uma água com a mangueira.
Maicon trabalhou algumas semanas como jornaleiro, vendendo Zero Hora. Com o dinheiro obtido nas vendas comprou uma casa no Jardim Ipê. A avó não é boba e logo intuiu que ele estava roubando – drogas ele usava desde os 14.
A partir de então, cada vez que o neto entrava em casa ela o revistava: “Ele ficou intratável, dizia que já era um homem e não queria mais dar satisfações”, diz a senhora, resignada.
Ninguém da família sabia direito o que ele fazia, mas uma pista está numa frase dele mesmo: “Quando eu saio pra fazer as minhas tretas posso não voltar”.
O intratável e cada vez mais desregrado Maicon tinha um primo trabalhador, Rudinho,18 anos, porteiro de um edifício na Independência. Os dois cresceram na mesma rua, mas tomaram rumos diferentes na adolescência: “Ele tinha a turma dele, eu a minha”, disse Rudinho, demonstrando desprezo.
Enquanto Maicon foi para a Febem, Rudinho vivia o melhor dos mundos – levou para morar com ele uma menina que tinha largado a sétima série, de apenas 16 anos: Fabiana.
No ano passado Fabiana engravidou, mas perdeu o bebê. Depois disto, as coisas entre eles desandaram. Ela se queixava para as irmãs que ele trabalhava muito, que estava sempre cansado. Rudinho era de ficar em casa – ela, de sair à noite.

Rudinho, Fabiana, a irmã Fiama e um amigo de Rivera

Dos tempos bons ela guardou uma foto onde aparece com Rudinho, a irmã Fiama e um amigo de Rivera. Quando Maicon saiu da Febem, no final do ano passado, Fabiana começou a sair com ele.
Pouco depois do Carnaval Fabiana deixou a casa de Rudinho. Foi pra mãe, numa pensão fuleira na avenida Salgado Filho. Dona Mariela, faxineira do Unibanco, a acolheu no quarto já dividido com as irmãs Vitória, bebê, Mariele, 11, e Fiama,16.
No dia da morte de Fabiana, as irmãs experimentaram blusas, tentaram diferentes maquiagens. Estavam se divertindo. Em momentos assim a mãe sempre ironizava delas: “Vocês são as legítimas PPs”. Patricinhas pobres.
Às duas da tarde as três irmãs estavam de saída da pensão para o show do Padre Marcelo na Praia de Belas quando tocou o celular de Fabiana. Sabe-se agora que era Maicon. “Vão na frente que eu alcanço vocês lá”, disse, sem saber que sua vida já estava amaldiçoada.
“Eu olhei pela janela e vi o carinha na moto, mas não sabia quem era”, conta dona Mariela. “Perguntei, a Fabi disse pra mim não me preocupar e saiu voando”. Vestia calça jeans, blusa verde listrada, tênis Fila e prendia o cabelo com uma pequena piranha rosa. A mãe ainda viu a menina colocar um capacete preto antes de partir em direção à avenida Borges.
Minutos depois, na Borges, se deu a abordagem da moto pelos brigadianos.
Enquanto isto, Fiama e Mariele caminharam até a Praia de Belas. Quando o Skank começou a tocar elas decidiram ir embora: “Não gosto do rock deles”, resumiu Mariele.
“Liguei pra Fabiana pra avisá-la”, lembra Fiama. Um dos PMs que tinha feito a perseguição atendeu o celular. Eram quase três e meia da tarde. O soldado fez várias perguntas. Queria identificar Fabiana – sinal que então a polícia soube quem era a moça na garupa da “moto roubada” por aquele bandidinho de “extensa ficha criminal”.
O PM avisou Fiama que Fabiana tinha sido levada pro HPS. Lá, a assistente social insensível deu pra família aquela versão policial de que Fabiana era cúmplice de Maicon em assaltos, acrescentando ofensa à dor.
Na pensão: Fiama, Mirele com Vitória, uma vizinha e dona Mariela

Fiama queria ver a irmã acidentada. Uma médica pediu que descrevesse a roupa, pra saber se era a mesma pessoa que ela atendera. Fiama tinha o figurino patricinha pobre na ponta da língua: calça jeans, blusa verde, tênis Fila, piranha rosa. A resposta foi em tom delicado: “Ela já não está entre nós, seu coraçãozinho parou de bater”.

0 comentário em “Jovens, pobres e malditos”

  1. Profe Renan nos deu uma aula de abordagem, perseguição e acompanhamento da informação. Matéria isenta de clichês e preconceitos. Um conto primoroso.

  2. Se não tivessem numa moto roubada, não teriam fugido, né. Teriam parado e apresentado os documentos.
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    Mas, fugindo, claro que os policiais iriam atrás.
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    Não gosto da polícia por vários motivos (burrice, corrupção, crimes, etc.) mas quando me param logicamente é minha obrigação apresentar os documentos (pessoais, do carro/moto). Os policiais estão trabalhando. Esse é o trabalho deles. COmo não gosto que dificultem meu trabalho, não dificulto o deles.
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    Fugiu… é complicado…

  3. Os relatos acima, mostram a face de crianças e adolescentes que são privados de uma estrutura familiar e econômica adequada, a onde a prostituição e o crime parece ser o único caminho que o destino e a sociedade capitalista os reservaram como missão.
    Erivelton
    Acadêmico de direito

  4. Não é preciso ler mais do que um parágrafo pra saber de que essa matéria seria assinada pelo Renan.
    Eu não gosto de muitas expressões que foram usadas na construção dos períodos, mas aí está uma redação que tem identidade. Poucas pessoas, entre escritores e jornalistas, conseguem imprimir isso.
    Esso?

  5. Ponto e contraponto. parabéns pela reportagem.
    O enumerar de fatos apontados, revelam uma série de delitos contra a responsabilidade humana, que partiu a partir dos pais do menino, adolescentes sem nenhuma estrutura financeira e educacional. Tudo isso poderia ter sido evitado se procurarmos pensar mais na formação e educação dos jovens e na responsabilização doa pais, educadores e Estado.
    Afinal, onde está o dinheiro dos nossos impostos? Não devemos proteger os jovens de receber um não ou pagar pelos seus atos, mas protegê-los com educação para consciência, ética e responsabilidade. Não é para isso que elegemos governantes?

  6. Hahaha! não acredito que alguns aqui estão com PENA desses dois MARGINAIS que graças aos céus foram direto para o capetinha… tsc tsc, eu garanto a vocês que o diabo é gente fina perto deles. Acontece que esse q morreu era um vagabundo assaltante de ônibus, ladrãozinho de meia-tigela… Agora vêm alguns dizer q não gostam da polícia por isso, por aquilo, mas garanto que se esses 2 tivessem te assaltando na volta da tua faculdade ou no caminho da tua casa tu iria rezar a deus pra aparecer um policial.. triste mesmo essa galera que vem com papo de direitos humanos e que passa mão na cabeça de CRIMINOSO. Parabéns aos policiais por terem agido corretamente, sem disparar um único tiro e não terem colocado a vida de ninguém em risco, e que as almas desses infelizes perpetuem no inferno! Direitos Humanos para Humanos Direitos!

  7. Eu ja tive duas motos roubadas que trabalhei muito para comprar. O que vocês queriam que a Brigada fizesse. Que deixasse ele passar simplesmente? Ou quem sabe fazer uma escolta? Se ele fugiu da polícia o dever da mesma é persegui-lo não é? O fato dele ter morrido não o torna uma vítima. Saibam que veículos como este de vocês colaboram de forma enorme para a impunidade no país.

  8. Em países como os estados unidos e outros países desenvolvidos precisaria muito menos para a polícia atirar (por isso que são países desenvolvidos!!!).
    Os que são contra a lei, como muitos dos que estão escrevendo neste site, são apologistas da barbárie e do subdesenvolvimento. A polícia fez seu trabalho. Já tive minha fase “Che” – eu era cego e não sabia! – evoluam, leiam, estudem e sejam felizes, ó tristes pessoas. Estamos todos no mesmo barco.

  9. Esse é o destino que bandido deve ter quando foge da Brigada Militar, atualmente um dos poucos motivos de orgulho do Rio Grande do Sul apesar de ultimamente estar com poucos recursos. Quanto ao LADRÃO, já foi tarde, quanto à guria, mesmo se não fosse cúmplice sabia que o moleque não era flor que se cheire.

  10. Texto patético, tentando colocar a população contra a Brigada, um ladrão foge em uma moto roubada, bate em um ônibus e a culpa é da Brigada, me poupe de seu esquerdopatia.

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