A cidade não é mercadoria

Manifestação do Instituto de Arquitetos do Brasil
quanto à proposta de alteração do PDDUA
A Prefeitura Municipal de Porto Alegre, através da Secretaria de Planejamento Municipal (SPM), levou à público no mês de março de 2007 proposta de alteração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA), Lei Complementar 434/1999.
O Instituto de Arquitetos do Brasil, departamento do Rio Grande do Sul (IAB-RS), convidou aos técnicos do Município, com a participação do secretário da SPM, Sr. José Fortunati, a informarem a comunidade de arquitetos ligada ao IAB-RS e apresentarem suas propostas e modificações, o que permitiu à Comissão de Urbanismo e ao Conselho Diretor do IAB-RS realizar sua análise e fundamentar a opinião da entidade, como segue:
1. O PDDUA
O IAB-RS considera que o PDDUA, na forma como foi aprovado em 1999, apresenta incoerências e inconsistências que não permitem reconhecer, em sua aplicação prática, os princípios e objetivos de qualificação ambiental e urbana discutidos e votados pela população nos Congressos da Cidade, realizados no início da década de 1990 e claramente expressos nos capítulos iniciais da Lei.
O texto do atual PDDUA reflete alterações de emendas legislativas gravemente influenciadas por interesses econômicos setoriais, quando da aprovação pela Câmara Municipal. Tais emendas resultam que, na prática, o PDDUA privilegia a mercantilização do solo urbano em detrimento de todos os outros aspectos do desenvolvimento econômico, das reais vocações de desenvolvimento da cidade, do meio ambiente e da qualidade de vida de toda a população, e, em termos práticos é uma peça de agressão à forma urbana e à identidade cultural de Porto Alegre.
O IAB-RS considera, portanto, que a alteração proposta pelo Executivo agora é necessária, quase imperativa, para evitar a continuidade de um processo que leva à degradação cultural e ambiental da cidade de Porto Alegre, e deve ser aprovada, sem prejuízo da necessidade de se iniciar um amplo e democrático processo de revisão, para estabelecer um modelo de cidade que leve em consideração toda a sua complexidade.
2. PROPOSTA DE REVISÃO
Por outro lado, o IAB-RS considera a proposta apresentada, apesar de modesta e restrita a alguns aspectos do PDDUA, perfeitamente legítima e ancorada em demandas da sociedade, origina-se de um processo amplo de participação popular que permitiu a discussão, reflexão e consulta entre a população que via pela primeira vez os efeitos da aplicação do PDDUA e os técnicos, durante a “Conferência de Avaliação do PDDUA”, realizada em 2003. Tal avaliação foi levada a cabo em respeito ao próprio texto da Lei 434/99, o qual prevê a análise periódica dos resultados concretos da aplicação dos seus dispositivos e a correção de eventuais problemas.
3. QUALIDADE DO TRABALHO TÉCNICO REALIZADO
O IAB-RS considera que a proposta de alteração apresentada pelo Município, avaliada em seu conjunto, traz inegável aperfeiçoamento técnico ao PDDUA. Ela apresenta estudos e análises precisas, quantificando informações relativas à evolução das densidades e à transformação da paisagem urbana ocorridas desde a promulgação do Plano com base no monitoramento efetuado com dados coletados da realidade da cidade.
Dessa maneira, resgata o papel central do trabalho técnico no âmbito da discussão do poder público com a sociedade, pois somente ele pode estabelecer as bases racionais do debate e instruir corretamente a opinião pública.
O trabalho realizado não pode ser posto em cheque por opiniões comprometidas com interesses minoritários, de cunho meramente econômico sem a necessária comprovação por meio de estudos técnicos conclusivos, visto que a proposta foi realizada de forma imparcial por profissionais legalmente habilitados e tecnicamente capacitados, devendo ser respeitada.
4. GRUPOS TEMÁTICOS
O IAB-RS ressalta a qualidade das proposições para os temas “Projetos Especiais”, “Plano Regulador” e “Paisagem Urbana/Alturas”, derivados dos grupos de trabalho da Conferência de Avaliação do PDDUA/2003.
O tema “Malha Viária”, revela melhora do diagrama de mobilidade da cidade e o novo mapa da malha básica, finalmente hierarquizada em sua totalidade, mas é modesto no enfrentamento do problema deixando em aberto a oportunidade para a definição do modelo de mobilidade urbana de Porto Alegre.
A proposta de revisão do PDDUA deve regulamentar e implementar imediatamente os instrumentos que asssegurem a função social da propriedade e a sanção à especulação imobiliária, tais como o IPTU progressivo e “estudo de Impacto de Vizinhança” (EIV), em cumprimento a Legislação Federal, Lei Federal 10.257, “Estatuto da Cidade”.
5. PROJETOS ESPECIAIS
A definição dos objetivos dos “Projetos Especiais” constitui notável avanço para a clara definição das condições de flexibilidade, regrando os projetos excepcionais com mais participação técnica e legitimidade social.
O “Projeto Especial de Impacto Urbano de Nível 3”, convenientemente articulado com a ferramenta jurídica da Operação Urbana Consorciada, pode ser um excelente instrumento para a concretização de transformações urbanas positivas para a cidade, devendo ser viabilizados mediante Concursos Públicos de Arquitetura e Urbanismo, que são instrumentos para a garantia da participação e da qualidade dos projetos e para a plena transparência do processo.
6. PLANO REGULADOR
O IAB-RS considera as alterações concernentes ao Plano Regulador positivas, ainda que restritas à regulação do uso dos lotes. O novo texto fica mais conciso, donde se depreende que sua aplicação passe a ser de mais fácil compreensão por parte dos agentes privados.
Do ponto de vista estrito do controle das edificações, em boa hora propõe-se a eliminação de subterfúgios projetuais e interpretações excessivamente liberais de regras construtivas causadoras de problemas ambientais, como é o caso das “sacadas” fechadas e incorporadas ao volume principal da edificação – cuja área não é computada no Índice de Aproveitamento adensável.
Infelizmente a questão dos falsos sub-solos, favorecidos pela liberalíssima regra da RN (referência de nível do terreno) não foi atacada, em que pese sua responsabilidade pela aparição de gigantescas massas construídas ao nível do passeio público em terrenos em aclive.
7. ÁREAS ESPECIAIS DE INTERESSE CULTURAL
O IAB-RS observa que a delimitação e definição de regimes das Áreas Especiais de Interesse Cultural (AEIC), sem constituir um aperfeiçoamento ou correção do PDDUA, mas uma complementação já prevista desde a aprovação da Lei, não é tratada pela atual proposta do Município com a profundidade e o cuidado que o tema merece. É lastimável que um aspecto de tal relevância seja apresentado de forma incompleta, mal organizado e desacompanhado da necessária justificativa teórica e técnica, fundamental para um tema desta natureza.
Mesmo baseando-se em um criterioso estudo anteriormente realizado pelo próprio Município – que ainda vigora na forma de um Decreto Municipal – a proposta não avança em sua construção, pelo contrário, coloca-se como um arremedo improvisado do mesmo.
Neste mesmo sentido, é inexplicável que todas as chamadas Áreas Especiais – tanto as de interesse cultural, como as de interesse ambiental e social – não estejam ainda devidamente regulamentadas e mapeadas com sua localização publicamente conhecida.
Em vista disto, e pela necessidade de preservação do Patrimônio Cultural do Município, o IAB-RS, em que pese ser favorável à aprovação da proposta do Executivo como um todo, entende que deva ser mantido o Decreto Municipal em vigor, para que a proposição possa ser tecnicamente aperfeiçoada.
8. PAISAGEM URBANA
Os estudos levados a cabo pelo corpo técnico do Município, por demanda da Conferência de 2003, relativos à densidade e à paisagem, demonstram claramente a inadequação das atuais regras de uso e ocupação do solo e do modelo espacial ao cumprimento dos princípios e objetivos do Plano.
Densidades excessivas, tipologias inadequadas, polarização acelerada, saturação viária e outros fenômenos de alto impacto na estrutura da cidade ocorrem a olhos vistos, despertando as reações populares que são agora corroboradas pelos estudos apresentados.
A deformação da paisagem urbana e perda da qualidade ambiental de Porto Alegre derivada das estratégias de densificação e miscigenação do território, origina-se de uma visão desenvolvimentista e expansionista anacrônica, fundamentada na realidade superada da segunda metade do século XX, do êxodo rural e do inchaço urbano. Na atual realidade, o crescimento populacional é ínfimo, e o déficit habitacional não é contemplado pela densificação das áreas altamente valorizadas pelo Mercado. As proposições do atual PDDUA prevêem a localização das áreas para Habitação de Interesse Social em regiões afastadas da infra-estrutura de escolas, transportes e empregos, intensificando o processo de marginalização para não interferir nos interesses do Mercado Imobiliário.
CONCLUSÃO
Pelo exposto, o IAB-RS, associação civil eminentemente técnica, cultural e profissional, sem fins lucrativos, nem objetivos outros que não qualificar a vida nas cidades, preocupada com os interesses coletivos e a justiça social, e na busca do cumprimento dos seus objetivos estatutários, manifesta-se favorável à proposta apresentada pelo Município, com as ressalvas apontadas.
Entretanto, em que pese emprestar seu apoio ao projeto ora apresentado pelo Executivo Municipal, reconhecendo seu valor para o aperfeiçoamento do regramento urbano de Porto Alegre e o mérito das Secretarias envolvidas em sistematizar as resoluções da Conferência, realizar os estudos complementares e dar andamento ao processo, o IAB-RS lastima que a proposta venha com um atraso de mais de 4 anos em relação ao prazo determinado por Lei.
O IAB-RS manifesta também sua profunda preocupação com a apresentação do mesmo em uma Audiência Pública com poderes deliberativos, inclusive de alteração e rechaço do projeto. Entendemos que este não é o forum adequado para avaliação de um projeto complexo como tal, correndo o risco de constituir em uma assembléia tumultuada por grupos avessos ao debate e à racionalidade, insensíveis à noção de civilidade que se pressupõe de um verdadeiro processo democrático. Tampouco é esta a forma legítima de uma Audiência Pública, instrumento regulamentar de apresentar projetos da administração ao conhecimento da sociedade, e desta recolher sugestões e encaminhamentos, mas sem funções deliberativas.
O IAB-RS observa também que os interesses econômicos e especulativos contrariados lançam mão de argumentação parcial e sofismática, em suas manifestações públicas através da mídia, para apresentar um debate distorcido, em que a objetividade se encontra ausente, e estranha que um assunto que traz conseqüências tão graves ao desenvolvimento da cidade seja dessa forma tratado pela imprensa, o grande instrumento popular de acesso à informação e ao pensamento, desde que seja aberta, democrática e imparcial.
O IAB-RS lamenta que direções sindicais de trabalhadores, levadas ao equívoco por desconhecimento do real interesse de seus representados, prestem-se a mobilizá-los em favor dos interesses patronais. Essa manipulação emprega argumentos falaciosos e utiliza meios truculentos para expressar suas opiniões.
Não há indícios técnicos de que a alteração dos regimes de altura máxima das edificações em algumas zonas da cidade e o aumento dos recuos proposto gere desaceleração na indústria da construção civil ou desemprego neste setor. Pelo contrário, a responsabilidade pela dispensa de mão-de-obra na construção civil está exatamente na execução de tipologias em grandes estruturas semi-industrializadas, processos dominados principalmente por grandes empresas de fora do Estado.
O IAB-RS insurge-se, portanto, contra a homogeneização da cidade, com a multiplicação indistinta de edifícios estandarizados que reduzem necessidade de mão-de-obra, tanto a braçal quanto a intelectual, excluindo a maior parte dos arquitetos do mercado e conduzindo à perda de qualidade e da criatividade na construção da cidade.
O IAB-RS considera que os principais instrumentos de regulação urbanística do PDDUA revelaram-se verdadeiros instrumentos de aceleração da cartelização do mercado da construção civil em Porto Alegre, basicamente para garantir oportunidade para exploração econômica, com potencial construtivo abundante, liberdade para substituição tipológica e incentivo à mistura indiscriminada de usos. Trata-se de uma subversão dos princípios e estratégias do próprio PDDUA, inicialmente concebido para garantir o desenvolvimento dentro da preservação do meio ambiente e da promoção social.
O IAB-RS, finalmente considera que o Plano Diretor deve ser alterado para permitir que a atividade da construção civil seja um instrumento de qualificação da cidade para todos os seus cidadãos, afinal… A CIDADE NÃO É MERCADORIA !!!
Porto Alegre, maio de 2007.
Conselho Diretor / Comissão de Urbanismo
IAB-RS – Instituto de Arquitetos do Brasil
Departamento do Rio Grande do Sul

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