A cobra que parece gente

Mario Pirata
Nascido em Vila Pinhal, Tupanciretã, no estado do Rio Grande do Sul (1898-1984), Raul Bopp lançou, em 1931, seu principal livro e um dos mais importantes do Modernismo: Cobra Norato.
Murilo Mendes afirmou que “Cobra Norato é o documento capital dessa ruptura de um poeta que, tendo viajado tanto e conhecido culturas tão diferentes, permaneceu tipicamente brasileiro e levou a termo, em pleno século XX, o que os outros descobridores do Brasil tinham tentado em vão desde o início do século XVII. Na linguagem, Bopp, forjador de um léxico saboroso, fundiu sabiamente vozes indígenas e africanas, alterando a sintaxe, sem cair nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade”.
Digo isto para assinalar que a montagem de Cobra Norato, pelo grupo Giramundo de Minas Gerais, encerrou neste domingo ensolarado, em Porto Alegre, o fantástico evento “SESI BONECOS DO BRASIL”. E foi emocionante ver o brilho no olhar de um público imenso, ao céu aberto, em um dos palcos e nos quatro ou seis telões espalhados pelo Parque da Redenção (era tanta coisa por ver, difícil enumerar).
Esta amostragem, incluindo feira, exposição e oficinas, constrói assim um painel, desde Mestres Mamulengueiros, da tradição mais popular, até grupos contemporâneos locais e de outros estados, e pelas capitais por onde passa deixa um rastro colorido de encantamentos e cantorias. Reproduções e originais da manufatura dos bonequeiros, bonecos gigantes, pequenos, finos, grossos, que se espalham pela cidade cenotécnica, e uma estrutura extremamente bem montada fazem da festa um acontecimento grandioso.
Ainda tocado pela magia e pela beleza, ouso aqui levantar dois pontos para serem analisados pelos organizadores e colaboradores do evento, esperando dar uma pequena colaboração para a caravana que segue a estrada e certamente voltará em anos posteriores. Pensem comigo, por favor, e vejam como uma pequena tentativa de contribuição para o trabalho, já portentoso e digno de total respeito.
Qual o significado da palavra para a realização de um espetáculo, como dimensionar a importância dos autores que elaboram o texto que sairá dos “lábios” dos bonecos. Um cabloco pernambucano, gaúcho ou mineiro, que trabalha com base no improviso e com um arsenal de “cantos” simples e tradicionais não poderia ter o mesmo espaço dos grupos mais ousados e requintados nas artes da manipulação? Qual o valor da origem autoral para o teatro de bonecos?
Tentarei explicar melhor: não consegui acompanhar a apresentação de dois Mestres Mamulengueiros, pois o espaço destinado a eles era bem menor e de difícil visualização (estavam ao nível do chão e suas imagens não apareciam nos telões, e o público amontoava-se em pé na frente das estantes), pensei comigo, e com a minha filha ao meu lado: – Puxa, estivessem nos palcos grandes, um público maior poderia beber com mais qualidade desta água de fonte, onde os demais grupos mergulharam e se saciaram. E por que não? Um pequeno detalhe, uma pequena reconfiguração na ordem das apresentações, na sua disposição, propiciaria-nos este requinte. Não seria possível? Deixo a indagação com a rapaziada que pegou no pesado para montar o circo!
Segundo, segurando o mundo, bem fundo, e este ponto bateu forte também, doeu outro tanto: – Puxa, este público imenso acabou de assistir a encenação do texto do poeta Raul Bopp, e ele é o autor das palavras que viraram essa fantasia linda que assistimos, e não foi dito o seu nome, não foi pronunciada a sua autoria. Caramba, Bopp nasceu aqui, nesta terra, e seu poema está encerrando a festa. Bastaria o porta-voz do grupo, nos agradecimentos ao público, ou ao apresentador, citarem o seu nome (poderia ser dito até pela loquacidade de um fantoche ou de um marionete) e a platéia porto-alegrense teria conhecido quem escreveu e que ele nasceu por aqui, junto de nós. Plausível, não é incrível? Gente, por favor, o que estou tentando dizer é que o que separa um descuido de uma indelicadeza é um fio tão frágil quanto o que sustém a mão de um boneco no ar.
Ora, pode parecer uma gauchada, uma coisa pequena – por aqui dizemos que os bois com nomes, pelos nomes devem ser chamados. No entanto, vejam só: eu sei, de fonte segura, e de forma não menos irônica, que o autor do espetáculo do Grupo Caixa do Elefante, que antecedeu ao do texto de Raul Bopp, também era de um poeta daqui – não tão importante, e, certamente, menos significativo, mas agora com um outro pormenor: este está vivo, e estava lá, assistindo, aplaudindo com imensa e intensa alegria no coração.
Voltem, bonecos, sempre! Com suas companhias, suas famílias e seus criadores. Seus sonhos e seus amores. E os de seus autores.
Um grande e apertado brincabraço.

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