A farsa do impeachment ou de como aprendi a rir do Brasil

Enio Squeff
O espetáculo – a grotesquerie, na verdade –  dos deputados no episódio em que,mais de três centenas deles,  disseram “sim”ao impeachment, chegou a tal ponto. que a própria arte de rir passou a ser quase um constrangimento; na realidade, não foi mesmo de rir , mas de morrer de rir. Os deputados fazendo-se de sérios e serem, por sua vez, levados a sério, torna o Brasil um país, não vamos dizer uma farsa, mas, talvez, mais picaresco quanto nunca foi. Cada uma das peça  do “sim, sou a favor do impeachment ” montou seu personagem como que numa cena felliliana. A sua moda, eles fizeram uma espécie de teatro brechtiano, de modo a desdramatizar tudo o que foi dito e feito.  E comemorado.
Conceitos como patriotismo, liberdade, família, igreja propriedade – montaram um teatro embromatório, de tal monta, de maneira que a cada palavra aduzida, como honradez, heroísmo, moralidade e outras mais, acabou desmistificada no ato mesmo em que foi pronunciada. Tudo muito  bufo,  e derrisório, para dizer o mínimo, mas principalmente pela vibração do Brasil do lado de fora do Congresso; e olha que coxinha algum se sentiu ridicularizado na ação dos farsantes. Depois da condenação de uma inocente, a pátria amada, salve, salve – vibrou uníssona com a possibilidade de termos, por fim, réus confessos e comprovados, a governarem a República, da sétima economia do mundo e do maior país da América Latina.
Aí, porém, entra o maior deus – o deus ex-machina – o Supremo Tribunal Federal – o grande organizador do fudúncio.  Mas disso se fala nos créditos que não foram dados à farsa.
Tudo começou, como é sabido, há mais de ano  e, com aquilo que, em todas as óperas bufas, se chamam abertura, ou prelúdio(como quiserem). E que tanto na ópera, quanto na encenação levou o nome pomposo de “Mensalão”.  Ali, um dos ministros, ou melhor, um dos inquisidores, o mais pimpão e tonitruante, proclamou, em alto e bom som,  o princípio basilar de que é próprio dos chefes dos bandidos, não levar nenhum do butim. Tese novidadissima  na história da humanidade, como é consabido. Ou seja, o sujeito é tão esperto que, ao roubar, deixa a muamba pra outros. E, assim, como os  bufantes homens de preto, concluiriam, de fato, que quem era culpado, o mais culpado dos culpados, não deixaria rastros, tudo o mais se sucederia porque José Dirceu – o acusado mor, o chefe da bandidagem – apesar de não apresentar nenhum sinal de enriquecimento ilícito, exatamente por isso – não poderia deixar de ser condenado.
Brilhante, não?
Um lembrete a propósito, para os que não conhecem os métodos usados pela Inquisição. Naquela época, a partir do século XV, o José Dirceu de ocasião , teria amarradas as suas pernas numa grande e  pesada pedra e jogado num rio – se afundasse era sinal de que não tinha culpa alguma – mas se se afogasse, os prestimosos pastores ou padres católicos,olhariam para o céus  compungidos, fariam uma oração para o afogado; e ele tinha, então, o céu garantido. Se, porém, flutuasse, prova insofismável de que assinara um pacto com o demônio, seria ato contínuo, queimado num auto-de-fé. Como vivemos tempos mais civilizados, José Dirceu mofa na cadeia da Lava a Jato.
Deve, em todo o caso, provir desses tempos o ditado que o presidiário José Dirceu ainda leva por divisa ( assim como os judeus tinha marcada com um ferro em brasa o seu número, nos campos de concentração ), de que por vezes, na vida, ficamos  entre “a cruz e a caldeirinha”.
Por ser simples assim, contudo, José Dirceu e outros foram devidamente encarcerados. Ficou decidido pelo Suprematíssimo Tribunal Federal, que para ser condenado não são necessárias provas, mas indícios, desconfianças, digamos. E sobretudo, uma figura jurídica até então desconhecida da maioria dos cidadãos brasileiros, o chamado “domínio do fato”. Que é o seguinte: o Marcelo Odebrecht pode não estar implicado no pagamento de propina ao PT ( outras partidos não vem ao caso, como diz o juiz Sérgio Moro), mas como é o filho do dono da Odebrecht. supõe-se que ele conhecesse ou devesse conhecer tudo o que fazem seus subordinados. Logo, ainda que sem provas, explica-se que ele tenha sido condenado a 19 anos de cadeia. Justiça é isso, brasileiros e brasileiras.
Aqui, na encenação, com o povo expectante, todos quase morreriam de rir. E logo então, como premio de sua boa ação, o Inquisidor Mor, ganharia – ou compraria – (não se sabe muito bem – é um dos mistério da peça)- um apartamento em Miami.  
Concluída a abertura da ópera bufa, porém, abre-se o pano,  sinal de que o teatro irá começar.
Daí em diante, realmente,  o enredo não poderia ser mais engraçado.  Agora a vítima é uma mulher chamada Dilma Rousseff, contra a qual nem mesmo o famoso “domínio do fato” é invocado.  Tudo indica que nenhuma acusação séria pesa sobre ela. Aí, entretanto, é que está a graça. Não está dito, mas a acusação que pesa sobre ela, sub-repticiamente, vamos dizer, é a de ser uma bruxa. Ou uma ladra. Só que, de novo, ela é tão sórdida que nem mesmo evidências de roubo lhes são atribuída. Os que a acusam, porém,  não são só os espectadores, os brasileiros de cada rincão da pátria amada, mas vários ladrões que assomam à cena. Cada qual berra uma frase no bom e velho português.  Um, acusado de levar propina, arranca gargalhadas da platéia, ao dizer que é porta-voz de Deus, da sua igreja e principalmente da moralidade pública. Outro manda beijinhos a seu neto e a sua amantíssima mulher, boa mãe, esposa exemplar. Outro fala em nome do povo sofrido da sua região, que planta mandioca. Outro, sempre sob os aplausos até mesmo emocionado do respeitável público, manda suas saudações à maínha que está na sua sofrida Bom Sucesso da Gabiroba.  Uma cena de tirar o fôlego e que fará gargalhar o povaréu, é a mulher do prefeito que será preso logo em seguida, por roubar para o hospital da sua propriedade. Na verdade, só uma heroína pode numa só frase, tornar-se capa de uma revista semanal, a vangloriar-se da inacreditável honestidade do marido.  
Detalhes sobre o figurino. Quase todos fizeram botox, usam cabelos e cabeleiras pintadas. Quase todos estão disfarçados.
Voltemos, porém, ao teatro.
Depois de 325 menções a Deus, 220 agradecimentos ao meu pai, homem honesto, que me ensinou a honrar a Deus e ao Brasil, 128 invocações ao mais extremado patriotismo, 10 ameaças de morte ao nunca dantes tão xingado Lula, segue-se a ópera – sempre sob os aplausos do povo.
É um rico cenário. No fundo do palco, mas irreprochavelmente bem focado pelos holofotes, o presidente da Câmara sobre o qual avultam-se provas de que é um ladrão – mas que o povo  ama e  venera – comanda tudo com o olhar sobranceiro de quem, se deve alguma coisa, é à sua sã consciência, à sua igreja e principalmente a suas bem recheadas contas na Suíça.
Como todo o bom teatro temos, em suma, o principal: uma catarse. E tudo, afinal, seria uma apoteose nunca vista no Brasil gentil e varonil, não fosse um episódio destoante; a cusparada do único homossexual assumido da Câmara na cara do mais destemido e temido, deputado do Brasil, o votadíssimo e machíssimo, Jair Bolsonaro.
Não foi um happy end, convenhamos; o “fresco,” o “frutinha,” o “veado,”a  bicha” . o isso o aquilo, humilhou de forma irrevogável o maior defensor da tortura e dos torturadores. Que, de forma constrangedora para alguém que se diz valentão, depois de limpar o rosto, ficou de olhos vermelhos, choroso, com medo inequívoco do seu agressor. Uma vexame para nunca mais ser esquecido. E que, como se dizia antigamente, empanou o espetáculo.
Alguém dirá,  finalmente, deste dia glorioso, que o maior macho da Câmara, ou melhor do teatro que foi a Câmara, é um homossexual.
Mil perdões ao respeitável público brasileiro, mas o deputado Jean Wyllys nunca deveria ter deixado tão claro que é o único homem digno do nome no nosso parlamento.
Outra falha, para não concluir em vão, foi o não se dar o merecido crédito ao patrocinador da peça, o Supremo Tribunal Federal. É uma injustiça que o esqueçam a essas alturas dos acontecimentos. Ninguém melhor do que ele por liberar Eduardo Cunha de qualquer constrangimento por ser ladrão. Obrigado STF, obrigado ministro Teoriza Vasques, obrigado principalmente ao excelentíssimo Procurador Geral da República, o dr. Rodrigo Janot. Como se diz no fim dos espetáculos, sem vocês, essa peça cômica não teria sido encenada.

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