«Grândola Vila Morena»: o hino da contestação portuguesa

A partida de Mário Soares – um dos principais líderes do campo democrático português –, no último dia 7 de janeiro, entristece a todos os democratas. Co-fundador do Partido Socialista português, sua oposição ao ditador Salazar lhe valeu o exílio em São Tomé e, depois, na França, de onde voltou três dias após a Revolução dos Cravos, em abril de 1974. Ocupou o cargo de primeiro-ministro por três mandatos e o de presidente por duas vezes.
O texto que segue, escrito pela professora Maria-Noëlle Ciccia, da Universidade Paul-Valéry, resgata a história e a significação da canção-símbolo da Revolução dos Cravos – Grândola Morena – e presta uma homenagem a este grande personagem da história de Portugal.

Patrícia Reuillard

Maria-Noëlle Ciccia
Em Fevereiro de 2013, no momento em que o Primeiro Ministro português Passos Coelho se preparava para pronunciar um discurso sobre o orçamento diante da Assembleia Nacional, um grupo de manifestantes conseguiu interromper o debate parlamentar durante longos minutos, entoando  a canção  « Grândola Vila Morena » nas galerias do Parlamento (vídeo). A escolha desta canção de José Afonso não se  fez ao acaso. Faz hoje parte do património cultural da democracia portuguesa, sacralizada como hino da contestação, embora não tenha sido concebida com tal objetivo. A letra (poema escrito em 1964 em homenagem à Sociedade Musical Grandolense na ocasião da festa da « Fraternidade Operária de Grândola ») e o caminho percorrido graças à transmissão por agentes ligados à dissidência, deram-lhe o caráter subversivo que ela não aparentava inicialmente.
Posta em música pelo próprio Zeca Afonso em 1971, a canção permaneceu clandestina até que foi escolhida como senha pelos capitães da Revolução dos Cravos do 25 de Abril de 1974. Esse destino sacralizou-a enquanto canção política que faz hoje parte do imaginário da nação portuguesa. Esse imaginário é a utopia de uma revolução militar que derrubou a ditadura salazarista, prometendo futuro melhor ao povo. Mesmo que hoje não se tenham concretizado totalmente os ideais revolucionários da altura, a canção continua divulgando as esperanças de mudança política e social em Portugal.
Existem dois tipos de canções políticas, as que foram escritas com conteúdo expressamente político (como por exemplo, « A Internacional »), e as que são recebidas como políticas sem terem sido concebidas nesse intuito (por exemplo « Lili Marleen »). Por razões diversas, elas tornam-se indissociáveis de um momento intenso da vida coletiva.  Assim é « Grândola Vila morena », cuja letra inclui palavras politicamente conotadas quando inseridas no contexto e época em que foram escritas.
A própria música, um cante alentejano de tipo tradicional, remete para um canto popular mas também para um canto litúrgico cantado a capella, por grupos de homens, em comunião, dando-lhe um aspeto sagrado. A rítmica dada pelo barulho das botas dos homens a caminho do trabalho na roça « etniciza »  o conjunto e remete para o inconsciente coletivo da população rural, pobre, sofrendo condições de vida difíceis (ver o exemplo neste vídeo ). Assim, Zeca produziu uma canção que, embora fosse criação nova, inseriu-se sem dificuldades no património cultural no seu país porque « falava » ao povo. A transmissão oral das canções populares e tradicionais funcionou também aqui para a reapropriação popular da canção. A performância artística dobrou-se de um forte poder integrador, ligando todas as camadas populacionais à volta de uma canção-património que estabeleceu uma ponte entre a tradição e o momento pré-revolucionário e revolucionário. O vínculo entre música e nacionalismo  é muito forte pois a música junta os homens, acompanha as manifestações de massa e difunde o sentimento de pertença. Atua mais no afeto do que na razão das pessoas ; daí, o seu impacto mais forte e durável. Ainda por cima, o cante alentejano acompanha-se do movimento unido do grupo de cantores que se move num ritmo binário (balanço de uma perna sobre a outra), dando potência maior às vozes : esse movimento único remete para a imagem de uma união que parece indestrutível. Assim a canção tornou-se canto mobilizador graças às suas qualidade musicais, capazes de despertar um sentimento de pertença e de união popular.
Mas não se pode esquecer o valor da letra que faz de Grândola, cidadezinha do Alentejo, a metonímia feminizada (« morena ») de um país que confraterniza (« terra da fraternidade ») na união da terra e do povo. O verso « O povo é quem mais ordena » lembra o ideal social das terras alentejanas tradicionalmente comunistas. Mas, além do povo na sua globalidade, cada grandolense também é considerado por si só e como amigo de todos os outros. A letra exprime uma alternância entre individualidde e coletividade que permite a cada um de encontrar o seu lugar numa sociedade em que os valores mais importantes são a fraternidade, a igualdade e a vontade, valores humanos e humanistas que lembram o combate iluminista pela revolução e a democracia.
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade
Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Dez dias depois do golpe falhado de 19 de março de 1974, Zeca cantou « Grândola » no Coliseu dos Recreios, a grande sala de espetáculos de Lisboa, no Primeiro Encontro da Canção Portuguesa. Curiosamente os censores da PIDE/DGS deixaram-no cantar como também deixaram os outros cantores entoarem a canção no palco. Esse momento de união foi imediatamente sentido como ato militante pelos espetadores ali presentes que a descodificaram logo como canção comprometida. Receberam-no como uma « proposta política », enquanto a canção apenas evocava a condição do povo em termos gerais e simples, sem convite preciso para a luta. Foi o contexto político que levou a tal fenómeno de compromissão e fez da canção uma tribuna política.

Em Abril de 1974, o processo revolucionário dos militares está lançado. Sendo os meios de comunicação insuficientes, eles decidem usar a Rádio Renascença para difundir a senha da marcha sore Lisboa, a canção « Grândola Vila Morena », às 0 h 20 na madrugada do 25 de Abril. A partir desse momento, a canção torna-se definitivamente subversiva e ainda hoje  ao contrário da maioria das canções que dificilmente resistem ao envelhecimento, « Grândola », pela sua aura e força simbólica, continua a gozar de prestígio.
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Nos momentos de descontentamento social e político, a canção sai à rua. Assim, em Fevereiro de 2013, começou uma onda de grandoladas (substantivo derivado do neologismo grandolar, que significa vaiar uma personalidade cantando « Grandola » para a impedir de falar). A população portuguesa, exausta pelas medidas de restrição impostas pelo governo de Passos Coelho, manifestou o seu descontentamento repetidas vezes. Para tal, não usou o hino oficial português mas, sim, « Grândola » como hino de união nacional. Também nos cartazes dos manifestantes nas ruas, pôde-se ler na altura « Que se lixe a Troika [o FMI, o BCE e a União Europeia]. O povo é quem mais ordena ». « Grândola », ficou hino da revolta, da reivindicação social, institucionalizado numa tradição em Portugal. Pacificamente, a canção tem-se tornado arma de combate para a maior parte da população. Exerce um efeito  igualizador, suprimindo a diferença entre as camadas populacionais. O intérprete da canção já não é Zeca Afonso mas o povo português. Arma perfeita porque não violenta, ela consegue mandar calar os homens políticos, reivindicando os valores de uma democracia  de que eles próprios se declaram partidários : só podem calar e sorrir. Assim conclui Leonete Botelho : « Como se controlam manifestações avulsas, espontâneas e desenquadradas politicamente ? Não se controlam. Evitam-se. Não fechando as portas dos palácios, porque elas não serão suficientes para conter a indignação. Nem evitando os contactos com as pessoas, porque a sua voz virá sempre pelas ondas hertzianas e electrónicas ».

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