Impunidade e amedrontamento no caso da Boite Kiss

Raul Ellwanger
Quando caiu a arquibancada do Estádio de Futebol do clube Bastiá,  numa partida da Copa da França nos anos 1990, morreram em torno de 16 pessoas. Para esta partida contra o famoso Olimpique Marselha, os dirigentes corsos haviam colocados modulares metálicos, a fim de aumentar a capacidade do pequeno estádio. Para cúmulo, as estruturas desabaram em direção ao campo de jogo, e viu-se cenas dramáticas dos próprios jogadores socorrendo feridos, fazendo boca-a-boca, carregando corpos, todos desesperados, tudo transmitido ao vivo pela televisão.
No Brasil, a Boite Kiss da cidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul foi destruída por um incêndio provocado por “fogos de animação”  durante um xou ao vivo. O número de vítimas letais alcançou a 242 jovens, o número total de vítimas lesionadas e sequeladas física ou psiquicamente segue não avaliado.  As mortes e seu número elevado não se deveram especialmente ao fogo e ao gáz em sí, mas às condições de absoluta insegurança do recinto há vários anos em funcionamento nestas mesmas condições e com sua documentação permanentemente irregular ou deficiente.
Deve ser a maior tragédia ocorrida em tempos de paz no Brasil, e para passar uma régua comparativa, teríamos que lembrar das cinco centenas de mortos e desaparecidos durante os 21 anos de ditadura recente, das duas centenas de lanceiros negros aniquilados ao final da guerra civil de 1835, das quinze centenas de cavaleiros guarani exterminados por dois exércitos imperiais no estertor da resistência missioneira na metade do século XVIII.
O que torna a comparação inviável é que não se tratou de um evento de conflito armado, tratava-se de jovens que ao final de semana saíram em busca de lazer e diversão, no âmbito de uma cidade de porte médio, numa rotina por eles muito conhecida. Confiando no sistema oficial de garantias edilícias públicas, que inclui prédios, incêndios, marquises, rodovias, elevadores, postes, águas, ruas, enfim, tudo o que cerca a vida comum e corrente da população, repetiram o habito de frequentar a boate.
Se num confronto civil entre facções armadas, é previsível a ocorrência de vítimas, a tal ponto de que existe uma convenção internacional para mitigar os danos e as dores dos inimigos, no caso presente tratou-se de algo surpreendente, de uma irrupção velocíssima de violência tóxica, que em poucos minutos (dois ou três) dizimou os estudantes, sem qualquer chance de defesa, sem qualquer protocolo, sem opção, sem recurso, sem alternativa, pois estavam literalmente encerrados, embretados, encurralados.
No caso, somaram forças para realizar este crime massivo os proprietários do negócio, o grupo de música regionalista e, muito especialmente, o poder público civil e militar. Se grave é o doloroso evento que gera muita visibilidade, igualmente grave é o que resta oculto: o risco corrido pela população de Santa Maria por meses e anos a fio, ante um sistema público de fiscalização em permanente descumprimento de seu dever, em todos os níveis e setores de responsabilidade funcional.
Este efeito de “falsa fiscalização”  é recorrente  na maioria do território brasileiro, vide a operação “Carne Fraca”, e sua monótona repetição deve ter um motivo, um fato gerador comum do qual há que seguir as pegadas e descobrir qual é.
No caso francês, a judicialização alcançou desde o chefe de bombeiros local, as secretarias provinciais envolvidas, a empresa fornecedora, a fiscalização técnica-militar, e subiu pelos escalões do Estado nacional, chegando ao próprio Ministro de infraestrutura (não sei o nome certo). Na mesma década, também foi judicializada a Ministra de Saúde, pelo atraso de 5 anos em tornar obrigatório, nas transfusões sanguíneas,  o exame de HIV.
No caso rio-grandense, foram indiciados dois proprietários do negócio e dois membros do grupo musical, afora dois policiais militares por falsidade no decurso do processo, o que não remete ao crime em si.
Chamou a atenção que toda a cadeia funcional vertical e horizontal de responsáveis públicos pelo funcionamento e fiscalização da cidade, ficou eximida de qualquer persecução penal, sejam os funcionários de carreira, sejam os representantes e subalternos políticos de turno.
Na memória do cidadão comum, deveria ficar a lembrança de que o corrido foi um “descuido” dos operadores diretos, e não uma severa omissão dos responsáveis públicos. Para os familiares, vitimados e fragilizados,  e para toda sociedade igualmente ofendida, a mensagem é de que o poder é impune.
Como se não bastasse tanta dor, humilhação, perda e sofrimento continuados, culmina o Ministério Público por ajuizar ação contra alguns dos familiares, alegando crime de “calúnia” no curso da instrução (colação de efêmeros cartazes críticos ao MP). Chega-se ao ápice do desacerto e prepotência, tornando réus aqueles que são vítimas, simples pessoas que tiveram suas vidas transtornadas pela perda de filhos em que despejavam seus melhores sonhos e esforços, que deixam seus ofícios e famílias para buscar justiça, e terminam sendo atemorizados, ameaçados.
Para estas famílias, o Estado e seu Poder Judicial que deveria protegê-las da trama de irregularidades e omissões que geraram a tragédia, que deveria fazer a Justiça valer, aparece agora como seu inimigo, uma aterrorizante deusa sem máscara e com os olhos bem abertos faiscando de ira ante …  a vítima.
Com um mínimo de modéstia, caridade, bom senso e humanidade, bastaria com que tais defensores pagos para defender os interesses públicos emitissem uma nota, discordando das afirmações e rechaçando as supostas calúnias. Toda a sociedade entenderia o gesto. Mas partir para o ataque, e pior ainda, usando das ferramentas da própria justiça para ameaçar e vitimizar novamente as vítimas tornando-as rés , é algo selvagem, foge à compreensão comum.  Independente do que tenham dito ou não dito os novos réus, submetidos a uma situação dramática que comoveu o mundo, deveria olhar-se  a situação com magnanimidade.
De que imensa conta honorífica se julgam portadores tais agentes judiciais ?  Que soberba move suas ações? Ou será tão baixa sua conta própria que talvez não possam suportar o lamento súplice, a queixa sem resposta, o olhar desmaiado e a fala talvez inconexa que o sofrimento provoca, não possam talvez suportar os gritos que a impunidade arranca de todo injustiçado, àquele aos quais a Justiça deveria justamente de consolar.
 

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