JOSY Z. MATOS/Relatos de uma quarentena – Parte II

De Alicante/Espanha *

Logo após a Páscoa, o governo espanhol liberou algumas atividades, como centros médicos, clínicas veterinárias, profissionais de eletricidades, encanamento, construção, etc, mas manteve a proibição de funcionamento de várias outras, mesmo atividades esportivas como caminhar ou correr. É estranho, porque apesar da ansiedade, parece que tudo está normal.

No isolamento, nossos dias não têm de ser iguais. Acredito que nos acostumamos a tudo, até a coisas ruins. No começo, a gente grita, chora, esperneia. Depois, vamos nos conformando com o inevitável, o irremediável, como se uma voz interior te dissesse: Olha, não tem jeito, vai ter que ser assim mesmo!

É difícil. Eu, por exemplo, sou das antigas, gosto de olhar nos olhos ao conversar. Mas você se acostuma a não ter com quem falar ou a simplesmente mandar uns watts, com frases rápidas, tentando passar uma mensagem que, às vezes, o outro não entende. Assim como nos acostumamos a sentir dor, a sentir fome, desprezo, a não ser nada mais que um grão de areia numa praia infinita.

Meu dia a dia é bem simples e tranquilo nesta quarentena. Acho que o que não tem remédio, remediado está. E, não é conformismo, mas consciência de que se não posso mudar uma situação, tenho que me adaptar. A minha profissão de bióloga ajudou a perceber, desde o princípio, que a coisa não ia bem e que este isolamento iria longe. O que todos os meus colegas e amigos de profissão daqui da Europa concordaram. Ainda não havia começado o isolamento no Brasil e, aqui, já se falava que estaríamos vivenciando a pior situação mundial desde a segunda e última grande guerra.

Josy com algumas de suas plantas na sacada de casa em Alicante, buscando adaptação no isolamento. Fotos: Arquivo pessoal

Mas, como dizia, minha rotina tem sido tranquila. Levanto lá pelas 7h30, 8h, tomo café, vejo as notícias da manhã, com atualização dos dados sobre a pandemia, depois faço entre uma e duas horas de exercícios acompanhando uma série de vídeos na internet da espanhola Patry Jordan, que me fornecem aquilo que preciso para manter um mínimo de atividades físicas. Muitos amigos também estão tentando manter uma rotina de exercícios físicos, uma das recomendações dos médicos para aliviar a tensão. E cuido das minhas plantas.

Outros elaboram uma receita nova todos os dias de algum prato que ainda não tinham provado.

Após o banho, pego o computador e trabalho até a noite, com algumas paradas para comer. Assim, vou até por volta das 21h, quando paro para ver alguma série ou filme.

Devo fazer um parêntesis aqui para dizer o quanto a internet ajuda neste momento de isolamento. Ter sites onde a gente pode ver filmes, ouvir música e acompanhar as “lives” de todo tipo de assuntos, desde músicos, cursos, política, etc, é um privilégio e um grande alívio para o coração. Vídeos de museus, como o Museo del Prado, que eu adoro e tantos outros onde temos informações sobre as obras aí expostas, é fantástico. Também é bom lembrarmos da possibilidade do trabalho remoto (homework) e do ensino à distância.

Aqui na Espanha isso ficou bem nítido com as Universidades que mantiveram o ritmo de aulas on line, trabalhos e exames realizados neste período. Na verdade, a internet já era uma muito utilizada aqui para a educação e a Universidade fornece ferramentas e auxílio, tanto a professores como a alunos, no processo de uso dessas tecnologias.

Alguns dias antes da quarentena nós tínhamos realizado alguns vídeos curtos sobre Botânica, os quais chamamos de ViBos (Vídeos Botânicos), para auxiliar o aprendizado de temas que envolvem plantas. Muito bem avaliados pelos alunos, agora fazem parte do conteúdo das aulas de botânica.  Mais recentemente, um dos professores do grupo de WhatsApp que temos, formado por membros do Grupo de Botânica Vegetal da Universidade de Alicante, começou um movimento de colocar fotos de plantas que encontrava pelo caminho quando levava seu cachorro para passear. Logo alguém teve a ideia de começar a compartilhar essas fotos no perfil do Tweeter BotCov_UA, @botcove, e do Instagram, botanica_ua. Mais uma fonte de informação sobre a botânica local, criada durante a quarentena.

Videoconferência com colegas da Universidade.

E quando você vê já passou mais um dia, mais uma semana de isolamento. As últimas notícias são boas, os números de infectados e mortes têm diminuído consideravelmente, mas ainda estamos em estado de alerta.

Também estamos muito sensíveis e com a certeza que essa situação vai deixar cicatrizes. Percebi entre as pessoas com quem tenho conversado no meio virtual que a obrigação de ficarmos em casa fez com que tornássemos introspectivos e questionadores do que realmente importa em nossas vidas.

Notaram a grande capacidade que temos de compartilhar? É uma necessidade. Acho que isso nos faz sentir mais próximo um dos outros, que fazemos parte de algo maior, de algo bom. Aí, os grupos de watts que sempre silenciamos e criticamos, agora são ótimos! Queremos colocar algo ali para ver os comentários dos demais e gerar mais diálogos.

Mas não é só isso, compartilhamos muito mais coisas além dos memes, vídeos de informações ou de piadas, compartilhamos nosso tempo, comida, salários, gastos da crise, enfim, estamos socializando mais, nos solidarizando mais. A empatia, considerada um dos pilares da inteligência emocional, tão falada em cursos de gestão de pessoas, agora tem sido notada em muitos lares. Até porque todos foram afetados de alguma maneira e precisamos encontrar no outro um apoio para manter nossas mentes sanas.

E por falar em solidariedade, quero lembrar os aplausos diários dirigidos aos sanitários que, na Espanha, acontecem às 20h. Essa prática começou na Itália, em seguida do início da quarentena em 9 de março. Se convoca as pessoas que estão recolhidas em suas casas a saírem nas janelas, sacadas, enfim, onde for possível, para aplaudir o pessoal sanitário que trabalha para conter a pandemia. Na Espanha, a convocação veio através das redes sociais para o dia 14 de março às 22h, mas no dia seguinte se adiantou para as 20h para que as crianças pudessem participar, e a partir daí não parou mais. Mas não é um evento exclusivo da Espanha, acontece em diversas partes do mundo e de várias formas, e geralmente são aplausos, às vezes algum vizinho coloca alguma das músicas que se destacaram nesses momentos de isolamento por inspirar resistência para vencer as dificuldades.

Umas dessas músicas cantadas em muitos balcões foi Bella Ciao, música italiana de resistência antifascista dos anos 1943/45. Essa música foi tema da série espanhola La Casa de Papel, inicialmente produzida pela Televisión Española (TVE) e posteriormente comprada pela Netflix, foi bastante disseminada e posteriormente servido de hino em diversas manifestações populares.  Hoje, na minha rua, aplaudimos com o som de Color Esperanza, de Diego Torres.

…Sé que lo imposible se puede lograr
Que la tristeza algún día se irá
Y así será la vida cambia y cambiará
Sentirás que el alma vuela
Por cantar una vez más…

Foi emocionante, as pessoas aplaudem, acenam, cantam, enfim, todos que saem para aplaudir têm o mesmo sentimento no coração, de esperança!  Às vezes passam ambulâncias ou caminhões dos bombeiros com as sirenes ligadas nesse horário. Os aplausos também se fazem em homenagem aos integrantes dos corpos de segurança, como policiais e bombeiros, que estão trabalhando intensamente nestes dias.

Servidor de empresa contrata pela prefeitura higienizar paradas de ônibus e outros locais.

Na primeira semana da quarentena já surgiram várias iniciativas de artistas de todo o mundo para apoiar e fortalecer as necessárias ações de isolamento social. Uma dessas iniciativas partiu da rede de rádios Cadena 100, que reuniu vários artistas conhecidos e gravou uma versão da música Resistiré para arrecadar fundos para a instituição Cáritas. Essa música que foi lançada no ano 1988 e mais tarde utilizada como tema do filme Átame!, de Pedro Almodóvar (1990) se tornando bastante conhecido. Assim, quando começou o isolamento algumas pessoas começaram a cantá-la no evento das 20h nas janelas e sacadas, se tornando mais um hino de resistência nestes momentos de quarentena.

…Resistiré, para seguir viviendo
Soportaré los golpes y jamás me rendiré
Y aunque los sueños se me rompan en pedazos
Resistiré, resistiré
Cuando el mundo pierda toda magia
Cuando mi enemigo sea yo
Cuando me apuñale la nostalgia
Y no reconozca ni mi voz…

O outro lado dos aplausos nas sacadas é ocupado pelo pessoal da saúde, médicos, enfermeiros, assistentes, pessoas que estão na linha de frente da luta para vencermos o Covid-19. Pudemos ver nas redes sociais vídeos onde o pessoal de saúde aparece com mensagens de incentivo e de esperança para as pessoas que estão fazendo a quarentena e também para os trabalhadores de segurança, policiais e bombeiros. As mensagens vêm de várias formas, mas geralmente eles saem pelos corredores dos hospitais, evidentemente vestidos com sua indumentária hospitalar, aplaudindo, cantando músicas ou em filas onde cada pessoa leva um cartaz que ao final forma uma frase de agradecimento ou de incentivo.

Em Alicante, população pode ir às compras, mas somente de produtos essenciais.

No dia 17 de abril, na Espanha continuava o descenso nos números de Covid-19, tendo reduzido o número de mortos à metade daquele do início do mês: 503 mortos e 4.289 novos casos. Alguns hospitais de campanha, construídos para enfrentar a crise, já estão vazios e os poucos pacientes que ainda restavam foram transferidos para centros hospitalares.

O governo planeja ir liberando a população para o trabalho de forma escalonada para evitar que o pico de contaminação volte a crescer. No meio de tudo isso temos uma falsa sensação de normalidade. Mas já não sabemos o que é normal neste novo mundo que aqui começa a renascer depois de tanto medo. Mudaremos nossa maneira de ser, nosso comportamento diante da nossa vida e das pessoas que fazem parte dela, ou logo teremos esquecido estes dias de incertezas, de dor e de promessas e voltaremos a ser o que sempre fomos.

* Josy é bióloga, doutora em Biodiversidade e Conservação Ambiental. Museu de Ciências Naturais/SEMA-RS.

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