LUIZ-OLYNTO TELLES DA SILVA / Adiós Nonino

Há tempos não vejo ressaltada a importância da ascendência familiar. Não faz muito, quando alguém se aproximava da casa, logo vinha a pergunta sobre sua origem. Ainda que não houvesse nenhuma garantia, pois ovelhas negras existem até nas melhores famílias de Boston, o conhecimento da estirpe era sempre uma referência. Na falta de uma grande fortuna, os pais esforçavam-se para legar aos filhos um bom e honesto nome, buscando assegurar-lhes uma nobre profissão.

Não sei bem por quê, mas esse questionamento parece não ter mais a mesma importância. Verdade que cada um tem que vencer por si mesmo e isso desde sempre. Mas, para tanto, não se pode reconhecer a contribuição dos pais?

Interrogações que me foram despertadas quando me caiu nas mãos a biografia de Eric Clapton. Não conheceu o pai e tornou-se um dos maiores guitarristas de todos os tempos.

Filho de uma mãe adolescente, foi criado pelos avós, pensando que sua mãe fosse apenas a irmã mais velha. De qualquer modo, e isto é o importante, durante a infância acreditava ter pais, e o fato de os avós o terem adotado não foi sem consequências, pois foi o avô quem o iniciou, desde criança, na flauta doce. Quando sua mãe biológica teve outros casamentos e a verdade veio à tona, tudo indicava ter-se aberto um vazio, um buraco na vida desse músico notável, e veio o período das drogas. Depois, quando perdeu seu filhinho, Conors, de quatro anos, em um acidente, salvou-se no trabalho compondo Tears in heaven, Lágrimas no céu. É depois disso que, tendo visto nos olhos de seu filho os olhos de seu pai, desse pai que jamais vira e que jamais soube quem era, ele compõe uma de suas melhores músicas, se não a melhor, My father’s eyes, Os olhos de meu pai. Pareceu-me não haver forma melhor de expressar a nostalgia pela ausência do pai. O curioso é que seu pai, mesmo sendo músico, e por certo tendo tomado conhecimento da fama de Eric Clapton, jamais suspeitou fosse ele seu filho, uma relação vinda à tona somente após a morte desse pai.

A partir daí comecei a interessar-me pela infância de outros gênios da música, todos tão precoces como Eric Clapton.

Tomando por critério a data de nascimento, minha lista inicia com Vivaldi, em 1678. Seu pai, de profissão barbeiro, foi também um ótimo violinista e, tendo reconhecido a aptidão do filho, incentivou-o desde muito cedo. Bach, nascido em 1685, logo considerado o Pai da Música, veio também de uma família de músicos e seu pai iniciou-o precocemente nos instrumentos de corda. Mozart nasceu quase um século depois, em 1756, e era filho de um compositor, cantor e violonista profissional. Quando percebeu a extraordinária habilidade do menino, ao cravo, ainda aos quatro anos, passou a dar-lhe as primeiras aulas que lhe possibilitaram compor e tocar, aos cinco anos, alguns minuetos. Beethoven, de 1770, graças à insistência de seu pai, um respeitado Mestre-Escola e também um bom músico amador, aos sete anos, deu seu primeiro concerto e, aos dez, conforme uma carta de seu mestre, Christian Gottlob Neefe, dominava todo o repertório de Johan Sebastian Bach. Chopin, que veio à luz em 1810, era filho de uma pianista polonesa e de um francês expatriado, professor de literatura francesa na Polônia. Aos sete anos já havia composto duas polonaises e aos vinte mudou-se definitivamente para a França, terra de seu pai.

Como vemos, a presença e o incentivo paterno são sempre marcantes. Mas não quero terminar minha lista dos clássicos europeus, à qual teria muitos nomes ainda a serem acrescentados, sem mencionar, pelo menos, Richard Wagner, vindo ao mundo em 1813. Seu pai, um chefe de polícia, morreu um ano após seu nascimento e sua mãe, alguns meses depois, casou-se com Ludwig Geyes, um artista da pintura, da literatura e do teatro. Foi ele quem percebeu, antes dos oito anos de Richard, seu talento ao piano e o incentivou aos estudos musicais, embora ele preferisse, na ocasião, o teatro e a literatura; foi só aos quinze anos que passou a dedicar-se inteiramente à música, fazendo da literatura sua aliada. Entre tantas óperas, compôs Os Mestres Cantores de Nuremberg, cujas figuras principais são os mestres artesãos de distintas profissões que se juntam para cantar. Sejam joalheiros ou sapateiros, as pessoas valem por sua aptidão na profissão, o mais das vezes aprendidas com os pais.

Do lado de cá do Atlântico também nasceram gênios. Um deles foi Heitor Villa-Lobos, em 1887, também incentivado pelo pai desde os primeiros anos de vida. Diretor da Biblioteca do Senado e músico amador, tendo logo percebido a vocação musical de seu filho, iniciou-o ao violão e ao violoncelo. Aos seis anos, o pequeno Heitor já havia composto uma peça para violão e aos oito começou seu interesse por Bach. Entre tantos músicos precoces, talvez o que tenha dado mostras de amadurecimento mais cedo, tenha sido Nelson Freire. Aos três anos tocava de ouvido as peças executadas pela irmã mais velha ao piano. Nascido em Boa Esperança, no interior de Minas Gerais, em 1944, seus pais, reconhecendo o extraordinário dom de seu filho, mudaram-se para o Rio de Janeiro para que Nelsinho pudesse ter bons professores.

Pessoalmente, permitam que lhes conte, também estive próximo da genialidade. Quero dizer, tive um vizinho de minha idade, lá pelos quatro anos, que era um violonista excepcional. Certa tarde fui brincar em sua casa e lá estava ele, junto dos pais, tocando violão. Era um instrumento feito sob medida para seu tamanho, e seu pai havia-lhe acoplado, na lateral superior, uma gaitinha de boca. Enquanto ele tocava ambos, ao mesmo tempo, eu ficava abismado com aquela cena inusitada. Foi quando seu pai perguntou-me se eu também tocava violão. Imediatamente respondi que não, e acredito ter me sentido muito diminuído com minha resposta, tanto que, tendo visto, em um dos cantos da sala, um cavaquinho que, à minha ignorância ab ovo, era apenas um violão pequeno, um brinquedo para crianças, bem menor do que o do meu amiguinho, logo acrescentei: – Mas aquele ali – e apontei para o violãozinho –, acho que toco. Poderia ter feito pior? Experimentei uma vez, duas vezes e, não tendo saído um som que dissesse algo a outro, só me restou sacudir a cabeça, os olhos baixos, para um lado e para outro, em sinal de frustração. De volta, em casa, muito envergonhado, meu pai salvou-me mostrando-me não haver motivo para tanto, pois, afinal, em casa não tínhamos instrumentos musicais; em nossa família ninguém se voltara para a música. Contudo, ele acrescentou: -Temos livros. E em seguida aprendi a ler.

O apoio paterno mostra-se sempre muito importante no desenvolvimento de um filho, mesmo quando o pai não é do mesmo sangue, como se diz. Depois de anos trabalhando com essas relações, estou convencido de que pai é aquele que adota o filho, seja ou não da mesma consanguinidade. Além desse vizinho, que depois se tornou diretor de uma orquestra famosa, conheci muitos que, incentivados pelos pais, estão hoje completando suas formações na música erudita.

E, entre tantas biografias, há uma que ainda preciso mencionar. É de outro vizinho, não da mesma rua, mas um vizinho nosso, de um país muito próximo, que é a Argentina. Trata-se de Astor Piazzolla, nascido em 1921. Seu pai apercebeu-se de sua vocação ainda em tenra idade e, ao completar oito anos, presenteou-o com um bandoneon. Morando em Nova Iorque desde os quatro anos, aos doze teve a oportunidade de participar de um filme, contracenando com ninguém menos que Carlos Gardel em El dia en que me quieras. Pois durante um intervalo das filmagens (em que fazia o papel de um jornaleiro), por trás dos cenários, exibiu suas habilidades ao bandoneon para o grande astro das ribaltas. Gardel gostou e pediu-lhe para tocar um tango, ao que Astorzito teria respondido não haver ainda entendido direito o tango. – Pois então, vaticinou Gardel, tão logo o entendas, não o largarás jamais! Nesta época, sempre incentivado pelo pai, teve aí os melhores professores de música clássica, a começar pelo húngaro Bela Wilde, que fora aluno de Rachmaninoff. Já adulto, foi a Paris estudar com Nadia Boulanger, considerada, na época, a melhor professora de música do mundo. Foi ela quem lhe disse: – Seu instrumento é o bandoneon! E durante todos esses anos de estudos clássicos, com participações em grandes orquestras, como a de Aníbal Troilo, teve sempre junto a si o apoio do pai, seu grande amigo. Quando ele se foi, em 1959, Piazzolla compôs, em sua homenagem, aquele que considerou seu melhor tango, Adiós Nonino. Nonino – diminuitivo de nono, avô em italiano –, era como seu filho carinhosamente o chamava. E quando escuto essa música, estou certo de que o adeus aí expresso não é aquele adeus dito a quem se vai para sempre. O adiós de Piazzolla, ao seu pai, significa que ele ficará para sempre no seu coração.

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