MÁRCIA TURCATO/ A pandemia é cruel

Não houve equidade na pandemia. Ele atingiu de forma cruel os vulneráveis.

Não há restaurante fechado, loja falida, viagem perdida e sonhos adiados que se comparem com o golpe sofrido por pobres, negros e índios.

A pandemia foi dramática para cada um de nós dentro de nossas realidades, mas foi desproporcional e afetou muito mais aos que já eram vulneráveis, não por pertencerem aos grupos de risco sanitário, mas por pertencerem ao grupo de risco dos invisíveis e dos negligenciados.

Esses sim foram os mais atingidos. Morreram mais em todo mundo porque estavam privados de planos de saúde, por morarem em zonas de difícil acesso, ou remotas, ou sem médico de família, por ficarem sem emprego, ou trabalho ou sem comida.

Por não terem uma máscara de proteção facial, água para higienização e, muito menos, álcool em gel.

Enquanto escrevo esse texto, 893 índios morreram por covid-19 e 42.019 foram contaminados pelo vírus em 161 nações, de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

A conta do Ministério da Saúde é menor, porque o governo só contabiliza indígenas aldeados. Ao mesmo tempo, dados epidemiológicos da mesma Pasta mostram que para 10 pessoas brancas hospitalizadas por covid-19 há outras 14 pessoas negras internadas.

E o resultado para a taxa de óbitos também é diferente: morrem 57% dos negros com covid-19 contra 41% de brancos.

A chance de recuperação entre brancos é de 62% e entre negros de 45%.

Ou seja, a chance de um negro morrer por coronavírus é 38% maior do que a de um branco com a mesma doença. E o óbito não se dá porque o negro está mais doente e sim porque ele tem menos acesso ao sistema de saúde, seja público ou privado.

Desde de março de 2020, quando várias Unidades da Federação perceberam a gravidade da pandemia, diversas medidas foram adotadas para diminuir a velocidade de contágio da doença e evitar o colapso do sistema de saúde.

Alguns estados conseguiram atuar dentro da margem de segurança, outros não. Mas a pandemia não era uma novidade mundial. A única novidade aqui foi o tipo de vírus.

Há pelo menos duas décadas, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou para a possibilidade de uma crise sanitária internacional, todas as hipóteses estavam relacionadas a graves doenças respiratórias, a SARS (Síndrome Respiratória Aguda), que dá origem a quase todos os males conhecidos, com a gripe H5N1 -aviária, a H1N1 -suína, também chamada de Tipo A, ambas conhecidas como influenza e para as quais há vacina.

A OMS treinou as autoridades de saúde de todo o mundo para o enfrentamento de uma possível gripe aviária nos anos 2003/2004, incluindo mensagens de comunicação que deveriam ser transmitidas para a população.

Quando participei do treinamento, em Brasília, com um grupo de comunicadores internacionais e de algumas instituições nacionais, apelidamos o curso de Armagedon – o fim do mundo, passagem bíblica sobre o confronto final de Deus contra os infiéis.

Tínhamos um plano para todas as fases de uma possível epidemia, da zero até a 5, a mais grave.

Não houve a crise de H5N1. Tivemos, sim, foi uma epidemia de H1N1 no período 2009/2010  e ela foi grave. Mas já existia um plano de enfrentamento e vacina.

O que não se sabia era o comportamento do vírus. E ele foi cruel com mulheres grávidas. Cerca de 61% das mulheres grávidas que morreram em 2009 tiveram como causa do óbito o vírus da influenza.

Até então, a vacinação não era recomendada para gestantes, a não ser que pertencessem a um grupo de risco, como portadoras de diabetes, por exemplo. As recomendações foram revistas e as gestantes passaram a ser vacinadas contra influenza, incluindo mulheres que deram à luz até 45 dias e crianças acima de seis meses.

Com a pandemia de Covid-19 houve uma situação parecida. Os países haviam sido preparados para uma epidemia, mas seu comportamento era desconhecido. Além disso, o foco inicial do agravo, a China, demorou a comunicar o fato à autoridade sanitária internacional.

Também houve desleixo e incredulidade por parte de várias lideranças mundiais, aliada a uma rotatividade entre os trabalhadores da área da saúde.

Quase a metade dos profissionais treinados pela OMS não estava mais na linha de frente. O déficit estimado pela OMS é de 7,2 milhões de médicos e cerca de 6 milhões de profissionais de saúde de outras áreas do conhecimento, como a comunicação, por exemplo. A expertise está sendo perdida.

A ruptura social é tremenda. Nova ordem foi estabelecida nessa distopia. Ninguém será como antes. Milhões de famílias vivem o luto e milhões de pessoas sofrem as sequelas provocadas pela covid-9, entre elas a Síndrome de Guillain-Barré, capaz de provocar paralisia motora, demência e convulsões.

Por isso, não é aceitável que empresas e instituições exijam de todos uma organização de trabalho como se a vida estivesse normal. Não é normal trabalhar em home office de modo a ficar disponível 24h por 7.

Não é normal que as crianças não frequentem a escola, que jovens não tenham faculdade, que artistas não possam subir ao palco, que cinemas e museus sejam espaços proibidos.

Parece que estamos vivendo um roteiro de filme onde o futuro é o fim do mundo, poucos sobreviveram, e os equipamentos não têm manutenção. O futuro é distópico.

Não é plausível dizer que o período da pandemia foi ótimo para fazer cursos online, vender online, pedir comida online, namorar online, ter reuniões online e trabalhar online. Não foi ótimo não.

O modo remoto existe para ocupar parte da nossa vida, mas não para ser a nossa vida. Nós não somos online. Nós dividimos o tempo em ano, meses, semanas, dias, horas, minutos e segundos para organizar a vida em várias experiências, e isso inclui trabalhar, relaxar e dormir. Inclui pegar Sol e ver a Lua.

Experiências que foram confiscadas na quarentena. Isso não é normal. A pandemia jamais deveria ser vista como uma oportunidade para novos negócios. A pandemia é cruel, é pesadelo.

 

 

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