MIRIAM GUSMÃO / O Santo Ofício esquerdista nas redes sociais

O que querem nas redes sociais os esquerdistas que se ocupam da condenação e execração pública de pessoas arrependidas de terem votado em Jair Bolsonaro? Que serviço estão prestando, a que causa servem, esses diligentes integrantes de uma espécie de tribunal da inquisição? À beira de novas eleições, em lugar de oferecerem alguma contribuição minimamente eficiente para tentarmos reverter o desastre dos desmandos da extrema-direita no país e do desmonte das políticas públicas empreendido pelo neoliberalismo tardio tupiniquim, esse contingente de ativistas da Web prefere ações deletérias contra indivíduos.
Sem o mesmo porte do aparato das Fake News utilizado pelos bolsonaristas para enxovalhar biografias nas últimas eleições, a investida desse arremedo de Santo Ofício contra os denominados “arrependidos” é análoga. Ainda que, às vezes, menos agressiva, é uma ação da mesma natureza, do ponto de vista ético e moral.
No que concerne à prática política, observa-se ausência de inteligência em ações de intolerância que só alimentam a aversão fomentada pelos conservadores contra as esquerdas. E, estranhamente, ao invés de computarem como positiva a debandada de apoiadores da candidatura Bolsonaro, e de atuarem no sentido de ampliar essa debandada, os ativistas da inquisição perdem precioso tempo tentando desacreditar os arrependidos.
O afã com que se dedicam a apontar culpados aleatórios pela ascensão da extrema-direita ao poder, e a sentenciar que os arrependidos não terão perdão, substitui a necessária análise mais aprofundada do revés histórico e situa como meras vítimas muitos protagonistas da derrota. Trata-se de um conhecido procedimento de transferência de culpa de quem não consegue assumir responsabilidades. O lamentável é que a análise rasa do cenário político e dos papéis dos diferentes agentes não habilita a correção de rumo e não oferece perspectivas de superação.
É um entretenimento tão fácil quanto gratuito ficar se deleitando a tripudiar famosos que se arrependem do voto, seja através dos usuais memes, seja com textos debochados ou arrogantes (mesmo com frequentes erros de Português que desautorizam a empáfia!). Difícil é se debruçar no exame de fatores anteriores ao momento do voto, como, por exemplo, a desastrosa tática eleitoral de flertar com o fascismo, buscando polarização com Bolsonaro nos momentos iniciais da disputa, quando ele era ainda um candidato inexpressivo. A hipótese de que ele seria um candidato mais fácil de derrotar no segundo turno não mediu o risco irresponsável.
Duas características notórias das ações do tribunal esquerdista da inquisição, e que as tornam muito próximas das ações bolsonaristas, são o preconceito e a despreocupação com a verdade. Em palavras ligeiras, tentam reduzir a pó toda uma vida e o trabalho, muitas vezes vasto, de uma pessoa. Um exemplo disso foi o que disseram, nos últimos dias, sobre a escritora Lya Luft. No entanto, apenas tentam desmerecer, pois a grosseria e a inconsistência das agressões – boa parte delas demonstrando que esses detratores nem leram os livros que se atrevem a desqualificar – depõem muito mais contra quem fez a crítica do que contra quem foi alvo dela.
Romancista traduzida em diversos países, poeta e ensaísta, Lya Luft é também tradutora de obras em Inglês e Alemão, incluindo livros de autores complexos como Virgínia Wolf, Doris Lessing e Rainer Maria Rilke. Seus livros são constantes objetos de estudo no meio acadêmico, havendo teses sobre eles em universidades federais e outros estabelecimentos de ensino superior de todo o país, dentre os quais a UFMG, a UFSC e a FURG.
Vários recortes de suas obras possibilitaram estudos sobre a condição humana, a temporalidade e a memória, a situação da mulher, as opressões domésticas nas famílias tradicionais, as situações limites da vida, as perdas e a solidão, a condição de famílias imigrantes, as técnicas narrativas e muitas outras temáticas. Um de seus livros inovadores em termos formais é O ponto cego, pelo que experimenta quanto ao foco narrativo e por ter como narrador uma criança.
Todo esse trabalho foi reduzido a supostos “livros de autoajuda” numa das postagens de um desses ativistas do Santo Ofício (que, aliás, escreveu autoajuda com hífen. É preciso destacar o erro para constranger a soberba). Outros comentários, desconhecendo o grande público heterogêneo da autora, suas enormes filas de autógrafos e a superlotação das salas de suas conferências para jovens e adultos, trataram a escritora como uma mera senhora que agrada “tiazinhas” (frases que denotam vários preconceitos). Ainda outros comentários reiteraram aqueles simplórios jargões das parcelas desavisadas da esquerda, depreciando a autora por ser “da elite branca”, por ser “de direita”. Com essas simplificações, jamais conhecerão um pouco da rica diversidade, da pluralidade de autores e obras da literatura nacional e universal. E com essas posturas demonstram falta de habilidade, de sensibilidade, para angariar adeptos na militância política.

Um comentário em “MIRIAM GUSMÃO / O Santo Ofício esquerdista nas redes sociais”

  1. Artigo corajoso e exemplar que incita a discussão que perpassa nossa sociedade, em que pessoas públicas são ofendidas pela esquerda e a direita, no mesmo tom e equívoco. Vide o caso de Caetano e Chico pela direita raivosa, e agora de Lya, pela esquerda… Triste ver a discussão política sem eficácia nenhuma e sem conteúdo. Triste momento em que nos encontramos: um jogo de iniquidades.

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