Obviedades

ZK Moreira
Professor universitário
As análises feitas sobre as recentes eleições municipais que não as contextualizem no cenário da ruptura institucional são falaciosas, pois pressupõem a existência de uma normalidade democrática que não temos mais.
Uma coisa é a contraposição de projetos políticos e ideológicos distintos, representados por exemplo, pelo PSDB e pelo PT, os protagonistas centrais dos embates eleitorais das duas últimas décadas, e identificar no embate entre ambos a alternância no poder. Outra coisa é este processo ter sido interrompido abruptamente mediante a deposição de uma Presidenta eleita sem que houvesse fundamento legal para isto, e reforçado por uma implacável seletividade midiática e judicial orientada para demonizar e anular apenas uma dessas duas grandes forças políticas, o PT, enquanto se favorece plenamente o outro pólo do embate político: o PSDB, com o PMDB oscilando para o lado que melhor favorece os seus interesses fisiologistas.
O critério democrático central de definição das forças políticas vencedoras foi descartado. A maior evidência disto é que em pouco mais de um ano após as eleições, os perdedores do pleito estavam no poder, orientando nomeações e políticas desde a interinidade do governo Temer, sendo resultado de um processo que desde o primeiro dia do segundo governo Dilma foi anunciado despudoramente pelo candidato derrotado Aécio Neves e outros arautos do PSDB. O fundamento apresentado para o golpe é algo menos do que fraco. Destaco três aspectos básicos que explicitam isto:

  • a inexistência de tipicidade que configure tais práticas como crime de responsabilidade;
  • a inexistência de prejuízo ao erário público pelas práticas fiscais do governo Dilma e o fato de tal prática ser comum em governos anteriores e em diversos governos estaduais;
  • a mudança de entendimento do Tribunal de Contas da União ser posterior à prática dos atos;

Claro está que o golpe foi sustentado não apenas nessas desrazões técnicas, mas também por outras que os deputados e senadores não hesitaram em alardear ao longo do processo de julgamento do impeachment fraudulento, tais como:

  • juízo de exceção, apoiado pelas instâncias superiores a despeito das inúmeras violações legais, baseado tão somente em delações extorquidas de pessoas presas e narrativas frágeis cheias de convicções mas sem provas;
  • ausência de qualquer prisão ou constrangimento de políticos do PSDB e do PMDB, não importando quantas vezes citados e quantos documentos e provas bem mais consistentes contra eles existam;
  • argumento de que a corrupção é um mal criado e propagado pelo PT, quando até os minerais sabem (ou deveriam saber) que é um problema tão antigo quanto o país, generalizado e disseminado de modo muito mais volumoso e contundente em outros partidos;

Não se pode esquecer também a incrível simetria da Operação Lava-Jato que, em geral, um ou dois dias após notícias ou fatos que poderiam enfraquecer o golpe institucional e o processo de demonização do PT e das esquerdas, lança suas operações de nomes criativos para reforçar a seletividade política, com ampla, intensa e parcial cobertura midiática. Não menciono a obviedade do show midiático contra Lula tão logo o golpe se consolidou, fico com alguns fatos ainda mais recentes.
Um dia após a cassação do Cunha na Câmara dos Deputados e duas semanas antes das eleições municipais, Moro ordena em nome da “ordem pública” a prisão do Guido Mantega, ex-Ministro da Fazenda da Dilma, quando ele estava acompanhando sua mulher em tratamento contra um câncer no Hospital e, atestando o arbítrio e a inexistência de fundamento para a medida, o manda soltar logo em seguida. Uma semana depois manda prender o ex-Ministro da Fazenda do Lula, o Palocci, o que ocorre um dia após o Ministro da Justiça Alexandre Moraes avisar em meio a um comício do PSDB em Ribeirão Preto, cidade de Palocci na qual o candidato do PT estava bem cotado nas pesquisas, que “teria mais” da Operação Lava-Jato na semana que viria. Curioso também é que esta prisão do Palocci ocorreu exatamente um dia antes da vedação legal de qualquer prisão que não seja em flagrante, em razão das eleições que se avizinhavam, sendo que ele estava sendo investigado há meses. Mas ainda “teria mais” antes dos cidadãos e cidadãs brasileir@s irem às urnas no último domingo: o STF aceitou denúncia criminal oferecida pelo MPF contra a Senadora do PT Gleisi Hoffmann e seu marido Paulo Bernardo, Ex-Ministro de Planejamento do governo Lula.
Teríamos que ser muito inocentes, dizendo o mínimo, para acharmos que essas ações não têm relação com a disputa eleitoral. Uma pergunta simples é: por que não esperaram passar as eleições para deflagrar tais ações? Afinal, esperou-se tanto tempo para suspender o Cunha da Presidência da Câmara e depois cassá-lo não é mesmo? Repito, analisar as últimas eleições sem levar em conta o quadro golpista, parcial e persecutório é dar vazão a uma miopia política.
Sem dúvida que se impõe às forças de esquerda no Brasil uma análise dos erros políticos assumidos pelas suas expressões, em especial pelo PT, mas uma coisa é fazer esta autocrítica em um ambiente de normalidade democrática e institucional, e outra é fazer isto em meio a um quadro de ruptura democrática, ativismo judicial seletivo, cobertura midiática parcial e militante, parlamento corrupto de fortes tendências fascistas, galopantes retrocessos de direitos, manipulação clara do processo eleitoral e aprofundamento repressivo.
Aparentemente grande parte da sociedade brasileira, independente dos erros do PT, se deixou levar por um quadro falacioso e parcial que entende que “política nova” é a política dos velhos setores elitistas da sociedade que se escondem atrás do discurso apolítico, o mais político de todos, diga-se de passagem. Em Porto Alegre, por exemplo, o Marchezan é associado ao “novo” na política, mas na verdade ele é herdeiro do mesmo pensamento político do seu pai, o pensamento da Arena, partido de sustentação da ditadura civil-militar. Não há nada de “novo” na sua atitude e nas suas ideias. O discurso do “Partido Novo” e do MBL também não traz nenhuma novidade, e evoca, na verdade, ideário presente no “Estado Novo”, ditadura de corte fascista implantada por Getúlio Vargas em 1937. O adjetivo de “novo” que tais movimentos ostentam, e por mais bem intencionados que alguns dos seus integrantes possa ser, não consegue evitar a velha hipocrisia, visto que não esconde suas preferências políticas e partidárias, apoiando em peso os partidos que hoje se situam à extrema direita do espectro político.
Estamos longe de um ambiente saudável de disputa democrática. A corrupção sempre foi um problema para nós, e deve ser combatida, mas não nos impediu de termos vinte e poucos anos de normalidade institucional e inúmeros avanços nas conquistas de direitos e de participação política da sociedade. O que temos agora não é mais o ambiente de tolerância e liberdade de ideias, mas sim o aprofundamento de uma caça às bruxas e a imposição a fórceps de um projeto político neoliberal, no qual em nome do combate à corrupção juízes e tribunais rasgam a Constituição e instauram declaradamente a exceção (como justificou o TRF da 4° Região), Ministério Público intervém escancaradamente no processo político escorado em fragilidades probatórias, narrativas forçadas e extrema seletividade, a mídia nativa aumenta em várias oitavas o tom de manipulação de fatos e propagação de factóides, políticos eleitos sentem-se à vontade para propagar discursos de ódio e estimular sectarismos, e fala-se sem cerimônia na sociedade e nos órgãos públicos voltados ao tema da educação em se instituir escolas nas quais o debate político, filosófico, histórico e sociológico seja simplesmente censurado.
Não nos enganemos, o verdadeiro alvo de todo esse processo não é a corrupção, que aliás está sendo aprofundada no governo Temer, e não será diferente enquanto o seu pretenso combate favorecer justamente as forças mais retrógradas da sociedade. No Brasil não há nada de novo em se demonizar visões de esquerda, em se reforçar visões elitistas da sociedade e em limitar direitos, garantias e liberdades. Se tem alguma coisa de novo nesta história toda é justamente o que mais uma vez encontra o seu ocaso: a democracia. Durou pouco. A transição política incompleta e controlada que nos tirou da ditadura para a redemocratização gerada a partir da lei de anistia de 1979 e da Constituição de 1988 agora cobra o seu preço. Recomeça a luta pela democracia no Brasil. Mais uma vez voltamos várias casas. Continuaremos jogando com esperança, sempre.

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