Os extremos que não se tocam

GERALDO HASSE
A duplicação da taxa de desemprego — de 6% para 12% — em dois anos (2015-2016) está cada vez mais transparente em detalhes explícitos como a multiplicação das placas de ALUGA-SE e VENDE-SE nas fachadas, mas nenhum deles choca mais do que o aumento do número de catadores de lixo o pedintes que cruzam diariamente as ruas das capitais brasileiras.
 Pobre gente caída do trem da economia, ora conduzido pelos maquinistas do PMDB, muitos dos catadores são desempregados (antigos ou recentes) que perderam suas fontes de ganho e se tornaram hóspedes de marquises e dos viadutos — isso quando não têm ânimo para engrossar o caos habitacional com barracos improvisados nas periferias.
Pacíficos uns, revoltados outros, eles configuram o penúltimo elo da corrente da pobreza extrema, nossa velha conterrânea que está de volta às ruas e praças.
Desde os anos 1970 a Música Popular Brasileira se ocupa deles. Em “Desgarrados”, o gaúcho sanborjense Mario Barbará cantou: “Carregam lixo, catam baganas e são pingentes nas avenidas da capital”.
Chico Buarque denunciou numa canção: “Eles comem luz!”.
No Rancho da Goiabada, dedicado aos boias-frias, o compositor Aldir Blanc os comparou a “canibais, lírios, pirados” – em suma, brasileiros miseráveis que andam pelas ruas “dançando a alegoria dos faraós embalsamados”.
Os catadores mais dinâmicos e organizados puxam/empurram gaiolas de pneus de borracha e já na coleta vão separando o lixo em compartimentos diversos – plástico transparente, papelão e latas são os itens mais valiosos.
Os menos preparados empurram carrinhos de compras de supermercados.
 Os mais carentes, se assim se pode defini-los, levam nas costas sacos plásticos com os materiais colhidos.
Sua atividade contribui para o funcionamento da economia nacional, mas eles não sabem disso.
São todos trabalhadores, embora não tenham nenhuma das garantias legais dos formalmente empregados.
Lendo pedaços de jornais, eles catam a notícia de que pinta no horizonte do Brasil um arrocho trabalhista reclamado pelos empresários… Eita Brasil-zil-zil.
Por estratégia ou insônia, há catadores que circulam de madrugada, compartilhando as calçadas vazias com baratas e ratazanas. Uns poucos cedem à tentação de depredar bens públicos.
Se tivessem a destreza dos pichadores entrevistos pendurados nas paredes, talvez tomassem coragem de catar algo realmente valioso. Até para roubar fios é preciso possuir alguma estrutura, um veículo, uma quadrilha e quem compre a muamba. É o que acontece com os ladrões de ovelhas e reses na zona rural.
E isso não é tudo. No rodapé da nossa pirâmide social, encontram-se aquelas criaturas que já deixaram de acreditar na catação como alavanca de uma possível recuperação pessoal.
Esses limitam-se a ficar agachados, sentados ou deitados nas proximidades de supermercados e bancos. Tornaram-se pedintes. “Melhor pedir do que roubar”, diz um deles, que com esse bordão “bonzinho” costuma deixar seu posto com uma sacola cheia de mantimentos doados por pessoas da classe média, dessas que fazem compras a pé e, portanto, carregam poucas sacolas.
Outro diz sempre a mesma frase: “Amigo, me dá um real?”, mas só obtém algum retorno de mulheres – os homens lhe dizem “quer dinheiro, vai trabalhar”.
Um carente, mais humilde e sorridente, pede “uma moeda”. Acaba ganhando. Duas ou três mães rodeadas de crianças atraem a indignação ou a piedade das pessoas. “E o governo? Não faz nada?” Está nos jornais: os albergues públicos não têm vagas. E muitas pessoas não se sujeitam às regras desses estabelecimentos oficiais, que têm horários e normas de higiene.
Para todos esses pingentes do trem Brasil, soa absolutamente non sense a frase “Vai procurar um emprego”, desferida à queima roupa por gente de pavio curto.
Na realidade, os catadores e os pedintes estão muito aquém da possibilidade de arranjar um emprego. O primeiro passo nesse sentido seria ir ao SINE, mas a maioria deles não tem uma roupa limpa para entrar na fila e, de resto, já não sabe onde perdeu a cédula de identidade ou a carteira de trabalho, se as teve um dia.
Os 1 300 moradores de rua de Porto Alegre recenseados em 2014 já seriam bem mais numerosos.
A rua é um rio onde todo dia aparece um catador novato com hábitos insólitos, como o de pular para dentro dos modernos contêineres da coleta mecanizada e jogar para fora os sacos plásticos cheios de lixo.
Assim fica mais fácil fazer a seleção que lhes interessa; não raro, eles vão embora sem recolocar no contêiner as sobras de sua coleta. Repetem os cachorros-assaltantes das lixeiras dos bairros distantes do centro.
Se não encontram a mercadoria esperada, os catadores mais revoltados protestam chutando o contêiner ou ateando fogo no refugo de catações anteriores.
Para eles, que não foram instruídos sobre as diferenças entre lixo orgânico ou reciclável, tudo que jaz dentro de um saco plástico merece ser vasculhado. E assim será até que todo esse pessoal seja reciclado por um programa de recuperação social que compreenda alfabetização e atendimento psicossocial, entre outros cuidados.
Estará no horizonte brasileiro tamanho progresso governamental? A curto prazo, tudo indica que não.
Ao contrário, a atual cúpula governamental não esconde a pressa em desmanchar os alicerces do estado de bem-social construídos no início do século XXI sobre as bases legais estabelecidas por Getulio Vargas nos anos 1930.
Em nome do atendimento aos agentes do Mercado, o governo Temer está trabalhando para reconstituir os padrões anteriores de miserabilidade.
Além de contar com a indiferença dos ricos, o desgoverno sacana conquistou a adesão da classe média, que andou batendo panelas contra o governo eleito, num deplorável espetáculo de mendicância política.
De uma forma ou de outra, minorias barulhentas se uniram para vilipendiar a democracia, aproveitando-se com raro oportunismo do clamor popular contra a corrupção na administração pública.
Jogo sujo de empresários, de politicos, dos marajás do Judiciário e do Legislativo, com a cumplicidade das forças armadas e a bênção ardilosa das grandes empresas de comunicação social – TV, radio, jornais, revistas e agências de propaganda — que parecem obedecer a um comando único: o plim plim neoliberal emitido pelo grupo Globo, seus repetidores e aliados.
Agora, no afã de contentar o Mercado, o governo Temer prepara a tratoragem da legislação que protege os trabalhadores e os aposentados. A batalha será no Congresso, onde está  armada uma maioria comprada com favores de toda espécie.
Os 300 picaretas apontados por Lula em 1990 foram acrescidos de mais algumas dezenas de oportunistas.
Já se fala que é preciso buscar a saída nas eleições de 2018, mas a manipulação das informações, a propaganda enganosa e a ingenuidade popular se juntam para criar um panorama favorável à manutenção de um governo carente de legitimidade.
O parlamento brasileiro virou uma cancela aberta à livre passagem do crime do colarinho branco. A pergunta que paira no ar é: de que adianta eleger-se um presidente digno e confiável se o congresso continuar dominado por negociantes de emendas e vendilhões de votos?
De alto a baixo a população brasileira está cercada por catadores. Nos altos escalões da administração pública, mesmo acuados por investigações policiais, os catadores de propinas lutam para manter o status quo da corrupção. Nas ruas e debaixo dos viadutos, os catadores e demais caídos do trem buscam tirar do lixo a própria sobrevivência.
São os extremos que não se tocam.
LEMBRETE DE OCASIÃO
 “O homem perde muitas coisas
 que às vezes volta a achar;
 mas se perde a vergonha,
jamais torna a encontrar.”
Jose Hernández (1834-1896), autor de “Martin Fierro”, poema épico publicado em 1872 em Buenos Aires

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