MÁRCIA TURCATO/ Paises ricos ficam com as vacinas

“Só estaremos protegidos quando todos estiverem protegidos”.

O diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhnom, não cansa de repetir esse argumento em todas as conferências de imprensa e reuniões com gestores mundiais, mas os chefes das nações mais ricas do planeta fingem que não escutam e continuam comprando a produção mundial de vacinas contra covid-19.

Estamos confrontados com um dilema moral. O nacionalismo está vencendo o princípio do cosmopolitismo. Chegamos ao final do mês de abril com cerca de 80% de um bilhão de doses das vacinas contra covid-19 adquiridas pela União Europeia e os cinco países mais ricos do mundo. Juntos eles têm apenas 13% da população mundial.

Em cada grupo de 100 pessoas, os Estados Unidos  vacinaram 60, e já estão vacinando adolescentes de 16 anos, faixa etária que nunca esteve nos grupos de risco. O Reino Unido vacinou cerca de 62 pessoas em cada grupo de 100, Israel já atingiu quase 100% de sua população alvo e o Canadá comprou nove vezes mais vacinas do que a sua população necessita. Prometeu doar o excedente quando receber o produto. E quebrar a patente dos laboratórios para que mais países possam fazer a vacina ninguém fala mais. Bastaria fazer a transferência de tecnologia.

Vários países da África, Ásia, Europa Oriental e Américas Central e do Sul não receberam nenhuma dose da vacina ou receberam pouquíssimas. No geral, as doses que chegaram aos países pobres não representam 1% do volume total produzido pelos laboratórios. Líbia e Tanzânia, por exemplo, não receberam nenhuma dose da vacina. Ou seja, esses países não conseguiram imunizar nem os seus profissionais de saúde.

Até o final de 2021, os laboratórios esperam entregar mais um bilhão de doses de vacinas. No entanto, a previsão da OMS é que os países pobres só recebam vacinas em 2022 e que o esquema vacinal esteja completo apenas em 2023. Nesses países vivem as populações mais vulneráveis do planeta, sem segurança alimentar, enfrentando conflitos armados, sem geração de renda, sem segurança sanitária e com campos de refugiados. Um lugar propício para o surgimento de novas variantes do covid-19. Esses locais deveriam ser prioritários para a vacinação. Mas não é assim que funciona.

Com a conivência dos laboratórios produtores de insumos, medicamentos e vacinas, os países compraram toda a produção para imunizar os nacionais primeiro. Imunizados os grupos de risco -profissionais da saúde, idosos e pessoas com comorbidade- esses países passaram a imunizar jovens desnecessariamente enquanto morrem as pessoas vulneráveis dos países pobres. Além de pobres, elas são negras, pardas e indígenas e impulsionam as estatísticas de óbitos e de casos. A pandemia é racista.

No Brasil, enfrentamos particularidades insólitas. O negacionismo da doença fez com que o governo não se preocupasse em adquirir vacinas de forma direta ou por intermédio da OMS. Aqui, o governante apostou em medicamentos para malária e para vermes fabricados no laboratório do Exército. Ineficaz para covid-19 como sabemos. Também não preparou a rede hospitalar com insumos e nem adotou ações não farmacológicas para o enfrentamento do agravo, como lockdown e uso de máscara, nem tão pouco criou estratégias de suporte para quem ficou sem renda. Hoje, o Brasil tem 116 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar e 19 milhões sem ter o que comer. O Brasil voltou ao Mapa da Fome, do qual havia saído.

Vivemos um conflito da esfera federal com os gestores das unidades da federação e municípios e também com o Ministério Público e o STF. O descompasso é tanto que abre espaço para o Congresso Nacional admitir a compra de vacinas fora da gestão pública, como se não existisse um Programa Nacional de Imunização (PNI) dentro da estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS).

Na falta de uma gestão de bom senso surge também o movimento Unidos pela Vacina, liderado pela empresária Luiza Trajano, que pretende vacinar o público alvo brasileiro até setembro. Não sabemos como ela pretende fazer isso porque os laboratórios negociam diretamente com chefes de Estado e não com pessoas.

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) projeta uma taxa de desemprego de 14,6% em 2021. Junte-se a isso a informação de que a expectativa de vida do brasileiro caiu, em média, três anos no atual cenário de pandemia, resultado da falta de renda, da falta de acesso à educação e da falta de acesso aos serviços de saúde que estão lotados com casos de covid-19. O impacto da pandemia sobre a educação de milhões de crianças em idade de alfabetização e de estudantes que ficaram sem acesso às aulas ainda está por ser avaliado e levará décadas para que volte ao patamar em que estávamos em 2019.

E a Cultura, o que dizer dela. Museus fechados, espetáculos e exposições cancelados, espaços de convívio lacrados. A experiência da cultura e da arte nos foi tirada ao mesmo tempo em que restaurantes e shoppings continuam abertos. Não tem sentido. Alguém já viu um museu com aglomeração? Não existe, a lotação sempre foi controlada para preservar os acervos. Está acontecendo o desmonte dos espaços  tradicionais de resistência. Isso é estratégico porque em 2022 teremos eleição. Esse desmonte afeta diretamente as instituições que sempre foram espaços ocupados pelos democratas.

Talvez nunca saibamos qual foi o tamanho desse estrago. Não podemos esquecer que o governo federal decidiu que não fará o censo do IBGE. Não ter informações é perfeito para um governo negacionista. Sem dados, sem estatísticas, sem informações, o governo poderá inventar o que quiser e disparar em sua rede de fake news.

Consórcio Covax

O Consórcio Covax Facillity foi criado pela OMS para gerir um fundo global comum de vacinas contra covid-19. O Brasil é signatário dessa ação junto com mais 189 nações. Mas a intenção da OMS, de coordenar o processo e distribuir as vacinas com equidade no mundo, logo foi por água abaixo porque os países ricos negociaram direto com os laboratórios.

O cenário de pandemia começou quando a China comunicou à OMS, em 30 de dezembro de 2019, um surto atípico de um possível vírus gripal, identificado como uma variante do coronavírus no dia 9 de janeiro de 2020. No dia 11 de março de 2020 a OMS reconheceu o alto risco de contágio do vírus, chamado de covid-19, e declarou emergência internacional em saúde. Ou seja, pandemia.

Um ano depois, há cerca de 200 imunizantes contra o covid-19 no mundo. A rapidez surpreende. Uma vacina demora entre 10 e 15 anos para ser desenvolvida. No caso da vacina contra covid-19 a velocidade se explica, a origem da vacina é a mesma da influenza e também tomou como base estudos em andamento de imunizantes contra doenças respiratórias provocadas pelo vírus SARS e MERS.

Atualmente, há 78 fórmulas de vacinas contra covid-19 registradas e sendo testadas em animais. Outras 71 estão sendo testadas em humanos, 20 delas estão em fase final e oito receberam autorização para uso em vários países, sendo que quatro delas estão em conformidade com todos os padrões exigidos pelas agências reguladoras internacionais.

* Jornalista com experiência em comunicação de risco em saúde.

 

 

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