Posição contra o garanticídio da liberdade de imprensa

Eduardo Dutra Aydos, advogado e cientista político
A justiça criminal, que decide sobre o bem mais precioso – de par com a própria vida – que é a liberdade das pessoas, se rege por critérios de decisão marcadamente formais, que respondem ao máximo socialmente desejável de garantias processuais. Por isso, a regra geral do processo contempla a autonomia das jurisdições civil e penal. Um ato pode não ser crime e, mesmo assim, ser ilícito, respondendo por esse o civilmente processado.
É o caso de pessoa que provocou um incêndio na residência de um desafeto. Mas que, denunciado por crime de incêndio com perigo à incolumidade pública – art. 250 do Código Penal – foi absolvido, por não se terem configurado os elementos fáticos do tipo penal – porque o incêndio não representou risco a vida ou patrimônio de um número indeterminado de pessoas. A absolvição, com fundamento no art. 386, III do Código de Processo Penal – haja vista o fato não constituir aquela infração penal – foi tecnicamente correta. Poderia o juiz, antes da sentença, ter modificado a qualificação jurídica do fato, e aplicado pena correspondente ao crime de dano, mas essa é apenas uma faculdade sua e não uma determinação processual. Não o fez, mas nem por isso afastou o caráter ilícito da conduta incendiária. Justo, pois, que o autor fosse civilmente condenado a indenizar os danos causados.
Não se pode utilizar esse exemplo, entretanto, para dar-se legitimidade e eficácia à actio civilis ex delicto, quando, o fato não constitui infração penal, porque não é sequer ilícito, nos termos do art. 23 do Código Penal – ou seja, quando o ato foi praticado em estado de necessidade, legítima defesa, exercício regular de direito ou estrito cumprimento do dever legal. Prevalece, nestes casos, uma exceção sábia e conseqüente da regra geral da autonomia das jurisdições. Dispõe o art. 65 do Código de Processo Penal, que faz coisa julgada no juízo civil a decisão absolutória criminal que reconhece uma excludente de ilicitude. Não havendo ilícito, não há que falar-se em indenização.
Ora, pretender um inadvertido operador do direito, que qualquer absolvição criminal fundada no art. 386, III do CPP, autorize a ‘actio civilis ex delicto’, até se poderia compreender – não justificar – como um fortuito cochilo do hermeneuta, deixando de aplicar à regra geral, a exceção que a confirma. Mas, demonstrar-se conhecimento dessa exceção – no que se refere, especificamente, à excludente de ilicitude da legítima defesa – e postular sua ineficácia no que tange aos demais incisos do art. 23 do CP e do art. 65 do CPP, é muito mais grave e preocupante. Porque denuncia a intencionalidade clara e inequívoca do respectivo garanticídio.
O espectro do retrocesso institucional barbariza essa pretensão. Ela assoma a esfera pública em debate forense contemporâneo, com endereço certo e aplicação direcionada aos profissionais e empresas de comunicação social. Mas sua virulência tem abrangência muito mais ampla que o cerceamento da liberdade de imprensa. Afeta todos que, agindo no regular exercício do seu direito e até no estrito cumprimento do seu dever legal, estão sujeitos a ferir interesses contraditados ou provocar danos indesejados. Médicos, administradores, políticos, advogados, policiais, membros do Ministério Público e magistrados, pela urgência da sua intervenção, pela força da sua expressão e dos seus argumentos, pelo poder de polícia ou jurisdição que a lei lhes assegura e lhes cobra, na defesa dos seus pacientes, administrados, constituintes e da cidadania em geral, não estão isentos de praticar atos e tomar decisões que contrariam interesses, que provocam dor privada e que produzem oposição.
É justo que, pelo seu excesso ou abuso, culpa ou dolo, os agentes privados ou públicos do interesse social respondam em juízo. Mas, pretender que, absolvidos no foro criminal, pelo reconhecimento de conduta irrepreensível, lícita e devida, ainda se submetam, no foro cível, aos riscos inerentes de todo processo judicial, inclusive ao ônus de uma condenação técnica por erro ou desídia do seu próprio defensor, é uma fraude de segundo grau às garantias essenciais da Democracia Constitucional. É sujeitá-los, em primeira instância, ao mau uso do processo judicial, punitivamente promovido pelos interesses contrariados. E, numa instância superior de anti-juridicidade, é promover a corrosão militante da República, da Democracia e da vida boa em sociedade, que necessitam do exercício pleno e conseqüente da liberdade e da autoridade, para a garantia da Constituição e dos direitos fundamentais da cidadania.
Não importa se movida por conveniência política ou por ideologia autoritária, não importa se promovida no curso de um litígio forense, ou se defendida na cátedra de um curso acadêmico, essa tese é execrável. E por sua pública repercussão deve ser confrontada, onde quer que se ouse promover, pela contestação aberta e militante da cidadania atingida.

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