Pressões ambientais sobre o bioma Pampa

Antônio Eduardo Lanna, consultor em Recursos Hídricos
O bioma Pampa, que só existe no Rio Grande do Sul, ocupando cerca de 63% de sua área, está ameaçado. A ameaça mais evidente e que seguramente desperta maiores preocupações é com a monocultura de árvores exóticas, em especial o eucalipto.
Entretanto elas não param aí. O governo federal e o estadual do Rio Grande do Sul vêm anunciando a construção de duas de cerca de uma dúzia de barragens na bacia do rio Santa Maria, que se insere nesse bioma. Essas barragens, que inundarão áreas importantes quanto à biodiversidade e a presença de espécies endêmicas, servirão para disponibilizarão de água para irrigação do arroz primordialmente. A cultura de arroz gera outro impacto, ao ocupar áreas de preservação permanente, localizadas nas várzeas fluviais. Portanto, as barragens geram um duplo impacto: pela suas presenças e por gerarem outro tipo de agressão, representada pela expansão da área de arroz irrigado.
Fato surpreendente é que o impacto ambiental da ocupação de vastas áreas com eucalipto ainda tem como contrapartida a geração de riqueza e renda, embora os custos ambientais possam ser considerados demasiados. Ao contrário, as barragens, com finalidade primordial de irrigação de arroz, não são sequer viáveis economicamente. Qualquer estudo mais rigoroso que se faça a respeito da atividade orizícola conclui que este cultivo é excelente alternativa econômica quando existe disponibilidade natural de solos e água. Mas pode ser facilmente constatado que qualquer obra hidráulica de maior porte não pode ser paga pela renda gerada pelo arroz, seja ela resultante dos benefícios primários, seja proveniente dos benefícios secundários, incluindo as chamadas externalidades econômicas como os “efeitos multiplicadores” resultantes da dinamização da economia regional. Gerasse renda o arroz, os próprios arrozeiros se disporiam a empreender essas obras, e as regiões onde se localiza a orizicultura no Rio Grande do Sul apresentariam grande desenvolvimento e não o quadro de estagnação econômica que vem de vários anos.
Por que essas barragens estão sendo propostas pelo Estado? Quem ganha e quem perde com elas? Certamente os arrozeiros beneficiados ganharão já que a água lhes será fornecida a custos subsidiados: é informado que apenas pagarão os custos de operação e manutenção das barragens que são da ordem de menos de 1% dos custos de investimentos. Esse subsídio, como todo subsídio, seria justificável apenas se esse segmento apresentasse alguma carência socioeconômica, algo que não condiz com a realidade – os arrozeiros situam-se no estrato superior de qualquer escala que avalie a situação socioeconômica da população. Olhando por outra ótica, existem segmentos sociais que apresentam carências bem maiores e que mereceriam maior prioridade de apoio governamental do que os arrozeiros da bacia do rio Santa Maria.. Não é aceitável, portanto, que o governo, seja federal ou estadual, subsidie esse segmento não prioritário.
A região e os municípios onde se encontram as barragens e as áreas irrigadas poderiam ser beneficiados. Isto decorreria dos benefícios gerados durante a construção das barragens, devido aos gastos que seriam realizados na região, movimentando sua economia. Porém deve ser considerado que devido à não especialização regional, a maioria dos gastos seria com insumos adquiridos fora da região. Nela poderiam ser obtidos mão-de-obra não especializada e algum serviço igualmente não-especializado – ou seja, a maior parte dos investimentos seria dirigido a insumos encontrados fora da região, não trazendo maiores benefícios a ela. Com um agravante: esse tipo de construção costuma atrair mão-de-obra não especializada de outras regiões, geralmente trabalhadores braçais, que se fixa no entorno da obra. Concluída a obra resta ao município um problema social derivado de acúmulo de mão-de-obra desempregada, não especializada, que requererá apoio que drenará parte dos poucos benefícios gerados durante a construção.
Os municípios captarão, porém, a produção gerada nas áreas irrigadas. Contudo, o projeto das barragens comete um grande equívoco: imagina que a água armazenada nos reservatórios resultará proporcionalmente maior área irrigada. Isto seria correto se a área correntemente irrigada tivesse seu suprimento garantido em qualquer situação hidrológica, mesmo durante as estiagens mais intensas. Isto não é correto. As mesmas pessoas que apregoam os benefícios das barragens argumentam que elas evitarão os problemas de carência hídrica que têm sistematicamente afetado os rendimentos das lavouras arrozeiras. Ora, se maiores quantidades de água serão disponibilizados o racional seria que primeiro fossem destinados ao suprimento das áreas já desenvolvidas e somente depois à ampliação das áreas irrigadas.
No entanto, estudo da Universidade Federal de Santa Maria para o próprio governo do Estado do Rio Grande do Sul concluiu que em uma das barragens, a do arroio Jaguari, não permitiria qualquer expansão da área irrigada. Ela apenas permitiria que as áreas já desenvolvidas tivessem maior garantia de suprimento durante as estiagens mais intensas. Portanto, os benefícios obtidos pelos municípios contemplados com a irrigação do arroz foram exagerados e não podem ser usados para dimensionar as vantagens sob seus pontos de vista, sem melhores avaliações. O grave é que esta expansão de área irrigada, obtida por meio de equívocos ou manipulações das análises, está sendo usada para justificativa do investimento! Isto mostra que os próprios projetos das barragens, do arroio Jaguari e do arroio Taquarembó, já aprovados quanto às viabilidades econômicas no âmbito das instâncias técnicas do governo estadual e do governo federal, devem ser reavaliados e corrigidos dos erros que os invalidam como subsídios para decisões.
O que deveria ser considerado pelos municípios pretensamente beneficiados pelos projetos é se não haveria outras alternativas de investimento que trouxessem maiores benefícios, já que os que são anunciados carecem de rigor nas suas estimativas e podem resultar, inclusive, em prejuízos a médio e longo prazos. Esses poderão ser provenientes do comprometimento de áreas de expressivo valor ambiental e turístico, e especialmente pela consideração de que tais municípios já foram beneficiados por investimentos estaduais e federais, reduzindo as suas prioridades concernentes a outras oportunidades de investimento.
Um estudo lançado no final de 2006, contratado pelo Governo do Rio Grande do Sul, o Rumos 2015 , propôs estratégias de desenvolvimento para o Estado por região funcional. Naquela que abrange a bacia do rio Santa Maria não houve previsão de implantação de barragens. No que se refere à orizicultura foram propostos quatro programas; nenhum deles envolve a construção de barragens e um programa propõe a restauração das matas ciliares, enquanto as barragens acarretarão as suas eliminações. Eles são:
1) Desenvolvimento de pesquisas e divulgação, voltado a um melhor manejo agrícola, com projetos voltados à pesquisa de novos cultivares, divulgação de informações tecnológicas, capacitação em novas técnicas e gestão da comercialização;
2) Capitalização do potencial ambiental, voltado ao melhor controle e à eficiência no uso da água nas áreas irrigadas;
3) Manutenção do potencial ambiental, que propõe a proteção e recuperação do ambiente, em especial a restauração das matas ciliares;
4) Suprimento de infra-estruturas, que se reporta a um “upgrade” em armazenamento.
Esse estudo, acatado pelo atual governo do estado, poderá melhor direcionar os esforços de desenvolvimento da região, usando os mesmos recursos disponibilizados pelos governos federal e estadual para essas barragens, com resultados certamente mais vantajosos sob os enfoques econômico, social e ambiental.
Outro equívoco grave que é apresentado nos projetos relaciona-se à consideração de benefícios derivados de outros usos da água. Eles foram inseridos no projeto original, que previa unicamente a irrigação do arroz como beneficiária, por causa da Resolução Conama 369/2006. Esta resolução “dispõe sobre casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente – APP”. Matas ciliares, que são inundadas por reservatórios, e área de várzeas, aptas à irrigação de arroz, são APPs. Casos excepcionais para suas supressões não envolvem a irrigação do arroz, mas a construção de “obras essenciais de infra-estrutura destinadas aos serviços públicos de transporte, saneamento e energia” entre outras possibilidades. Devido a isto foram incorporados outros beneficiários aos projetos entre eles o abastecimento de núcleos urbanos, recreação e irrigação de outras culturas que não o arroz, e até o controle de inundações. Isto serviu tanto para superar a restrição ambiental comentada, como para inflar os benefícios do projeto, já que como é sabido e foi acima afirmado, o arroz não gera benefícios para justificar obras deste porte.
Muitos desses benefícios são fictícios ou exagerados, como foram os benefícios atribuídos à irrigação do arroz. Para comentar apenas o de maior relevância social e econômica, que é o abastecimento de núcleos urbanos, eventuais problemas de atendimento a essas demandas são causados pelo excesso de uso de água pelo arroz.. Bastaria, portanto, a redução da área irrigada nas estações de estiagem mais intensas para permitir o atendimento dessas demandas, sem necessidade de construção de barragens. Sairia certamente mais barato e seria ambientalmente mais vantajoso compensar aos arrozeiros nesses períodos pela redução de produção do que construir uma barragem. O mesmo se pode dizer para alguns usos para recreação.
Não foi considerada nas análises dos projetos uma prática comum e necessária chamada de análise incremental. Por ela, cada uso de água deve ser retirado do projeto global e reavaliada a nova dimensão das estruturas que permitiria manter o suprimento aos demais usos – como esta dimensão é menor, os custos serão igualmente menores. O uso retirado somente é viável economicamente se os custos incrementais gerados por sua reinserção no projeto, ou seja, pelo aumento das dimensões das estruturas até à situação original, forem superados pelos benefícios que gera. Certamente essa viabilidade não ocorreria com o arroz irrigado que, por ser grande consumidor de água, corresponde à maior parte das dimensões das estruturas e, portanto, dos investimentos. Os demais usos poderiam eventualmente ser considerados viáveis economicamente, pois consomem menores quantidades de água e exigem menores dimensões do projeto. Contudo, essas menores dimensões corresponderiam certamente a projetos bem menores que aqueles atualmente considerados e que certamente teriam menores restrições ambientais.
Essa série de equívocos e incorreções nos projetos das barragens da bacia do rio Santa Maria culmina com uma proposta que mostra claramente a existência de decisões que fogem ao interesse público e colidem com as normas legais.
Na barragem do arroio Jaguari há necessidade de construção de um canal revestido de cerca de 40 quilômetros para aduzir água às áreas destinadas à irrigação do arroz. A necessidade de estrutura deste porte, por si só, mostra que certamente não houve uma análise econômica criteriosa para seleção desta barragem. Canais deste porte são caros e normalmente inviabilizam um investimento dessa natureza. Como o canal serve para suprir alguns poucos orizicultores o correto seria que eles pagassem pelo menos o investimento nesse canal, mesmo sendo isentados de pagar os investimentos na barragem. Não é isto que o projeto propõe, pois os custos desse canal serão também assumidos pelos governos federal e estadual. Ou seja, ambos os governos pretendem doar recursos públicos de valor considerável, que poderiam ser aplicados em investimentos que gerariam benefícios mais expressivos, a um grupo de pessoas que já se encontra em uma posição privilegiada na escala socioeconômica da região, do estado e do país.
Resumindo, o bioma Pampa acha-se ameaçado por vários empreendimentos promovidos pelos governos federal e estadual, com destaque à monocultura de árvores exóticas e à construção de barragens para irrigação de arroz. Ambos os empreendimentos geram expressivos impactos ambientais que alterarão fortemente um bioma que deveria ser protegido e preservado. Ao contrário da monocultura de árvores exóticas, porém, a implantação das barragens para irrigação de arroz sequer apresenta significância nos benefícios econômicos que serão gerados.
Portanto, a monocultura de árvores exóticas estabelece um conflito entre os objetivos de desenvolvimento econômico, que são positivos, e de impacto ambiental, que são negativos e expressivos, e de eqüidade social, que são discutíveis. Já a construção de barragens para irrigação de arroz não se justifica seja economicamente, seja socialmente e muito menos ambientalmente.
Só fica uma dúvida: a proposta de implantação dessas barragens decorre de um excesso de ignorância ou da falta de espírito republicano?

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