Quintanares com outros ares

Fraga*

A julgar pelas comemorações em torno do centenário de Mario Quintana, parece que o poeta já nasceu com 70 anos. Tudo a ver.

Na maioria das mais que merecidas homenagens (muitas com aspas, poucas sem) o que predomina é a visão de um velhinho frágil e bonzinho – distorção que ele mesmo seria o primeiro a desdenhar. Basta reler suas entrevistas, rever seu humor, relembrar sua graça e rabugice nas redações.

Quintana nunca foi como queriam que fosse. Irreverente, anticonvencional e avesso à solenidade, Quintana se mostrava acima de tudo um agudo crítico de costumes. Um sagaz e sarcástico observador das hipocrisias da sociedade e contradições da humanidade.

Debochava das falsas aparências – deste ou do outro mundo – e tinha ironia de sobra para quem o abordasse com clichês. Seu lugar era o oposto do lugar-comum. Justamente o que mais se vê quando o retratam agora, promocionalmente.

Visto sob esses enfoques marqueteiros, a imagem Quintana não passa de mais um produto da mídia. Neste ano, sua poética vende tudo que ele nunca pretendeu vender: sentimentalismo barato, romantismo ingênuo e até pieguismo.

Um recorte às vezes tão simplório que chega a desumanizar sua pessoa. Frágil, provavelmente Quintana não era: tinha humor, um humor ferino, mais que suficiente para encarar de frente tudo o que tenha vivido – afetos desfeitos, conflitos familiares, angústia existencial, inquietação intelectual.

Dar espaço a fatos, traços ou aspectos mais fortes, mais duros ou mais dolorosos da trajetória pessoal de Quintana não seria diminuir sua personalidade nem sua importância literária. Ao contrário, seria reconhecer em tudo isso a fonte principal da sua criação.

Afinal, tudo que Quintana mais fez foi olhar para dentro de si e descrever com bom humor e muita poesia esse reflexo. Por isso soa original, do lirismo à ironia.

Então, neste centenário edulcorado do poeta, o que se perde é a oportunidade de conhecer melhor o ser humano. Pois quase tudo que se vê exposto, escrito, falado, filmado, citado, ou simplesmente relembrado, leva para o enaltecimento de uma figura esquematicamente sob medida para ações e promoções, patrocinadas ou não.

O Quintana que vou lembrar de perto, já que tive esse privilégio, é o do deboche das coisas ao redor da gente, na Caldas Jr. Alguém que era capaz de escrever sobre um mesmo tema com ângulos antagônicos, e resultados maravilhosos. Como fez com casa:

• Amar é trocar a alma de casa.
• Ele morava sozinho. E um dia fugiu de casa.

O primeiro verso, um definitivo hino amoroso. O segundo, na minha opinião, o menor conto de terror do mundo. Como se vê, ou não se vê em anúncios bobinhos, comerciais suavezinhos, perfis repetitivos e depoimentos formais, um Quintana de uma estatura que ainda está por ser medida. Talvez no sesquicentenário dele.Quintanares com outros ares

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