Relato do front: venceu o bom senso

Andres Vince
O final da manifestação da noite de quinta-feira (19/5) foi tenso. Porém, não me resta outra alternativa a não ser elogiar a atitude do tenente-coronel Mário Ikeda, comandante do Comando de Policiamento da Capital. A decisão de não atacar os manifestantes, como ocorreu na semana passada, e evitar uma confronto de consequências imprevisíveis, demonstrou equilíbrio e bom senso.
Claro que não houve troca afetuosa de gentilezas e abraços carinhosos. A “negociação” começou no bom e velho estilo militar: “vocês tem 20 minutos, depois agiremos” foi o resumo da mensagem enviada pelo oficial Ikeda, através daqueles que se apresentaram a ele como lideranças do movimento.
A atitude do tenente surtiu efeito. A liderança que “negociou” foi questionada e os manifestantes se dividiram. Alguns obedeceram a “orientação” e se deslocaram para o Largo do Zumbi, enquanto outros permaneceram na avenida Perimetral. Uma terceira parcela decidiu não arriscar e foi embora. Ponto para o comandante, afinal de contas, a estratégia militar se desenvolveu por milênios, não haveria de falhar logo agora. A intimidação verbal, para alguns, ainda funciona.
Às 21 horas, esgotou-se o prazo dado pelo tenente-coronel e os jornalistas posicionaram-se para conseguir o ângulo mais seguro da batalha que se desenhava na avenida.
O tempo foi passando e o clima de tensão aumentando. Quem ficou na avenida dava demonstrações que haveria resistência e gritava bordões de protesto. Alguém explodiu um rojão. Pequeno corre-corre. Mais tensão, mais adrenalina.
Passados 15 minutos, uma nova tentativa de negociação foi feita, desta vez pelas advogadas das meninas presas na semana anterior. Sem sucesso, o recado era o mesmo: “saiam ou vamos agir”.

 | Ramiro Furquim/Jornal Já
| Ramiro Furquim/Jornal JÁ

Os manifestantes que se mantinham na avenida cobriram os rostos, preparando-se para o gás lacrimogênio que parecia a caminho de confirmar presença no evento. Cada um se protegeu e se preparou para resistir do jeito que conseguiu. Algumas pedras surgiram para municiar a resistência. Provocações aos oficiais e alguns ânimos mais exaltados deixaram o clima mais pesado. Uma linha de vanguarda foi formada por alguns manifestantes e avançou para mais próximo da posição dos oficiais. Tudo levava a crer que a noite não iria acabar bem.
Porém, os minutos foram passando, uma falsa calma tomou conta do ar e temperatura baixa da noite parecia ter congelado os ânimos de ambos os lados. O comando da operação não se movia, o que a principio, parecia ser um bom sinal. Assim, por volta das 22 horas, o protesto estava naturalmente disperso, ninguém foi preso, nem agredido, direitos não foram violados, bombas de gás não explodiram, balas de borracha não foram disparadas, processos por abuso de poder não serão abertos, futuros precatórios não serão gerados contra o Estado, e, na melhor das hipóteses, a imagem da BM não sofre um novo arranhão ao ser usada como instrumento de manobra política, como já ocorreu com governos de todas as matizes.
No entanto, o fato do comandante Ikeda ter exercitado a paciência, virtude que parece ter sido concedida pela sua descendência oriental, e dessa forma ter evitado que as cenas que ele mesmo promoveu na semana anterior se repetissem, não muda o fato de que uma via trancada é um problema de trânsito e não um caso de polícia.
A Constituição é clara quanto ao papel das policiais militares: “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública” (art. 144, IV, p. 5º).
Não havia desordem em nenhuma das manifestações, portanto não havia motivos para a ação da BM, nem da cavalaria e, muito menos, de agentes infiltrados de um setor da BM de duvidosa legalidade, como demonstra o citado parágrafo da Constituição.
A desculpa usada para “seguir o protocolo” e liberar o uso da força se encaixa muito bem em uma via rural, mais conhecida como estrada, onde o motorista simplesmente não tem alternativa de desvio. Outra coisa, bem diferente, é uma via urbana, onde um simples desvio no trânsito resolve o incomodo. A insatisfação de uma minoria de motoristas não pode se sobrepor ao direito de manifestação de uma maioria. Seria a inversão da lógica democrática, onde a vontade da maioria deve prevalecer sempre. Não existe na Constituição o “sagrado” direito de ir e vir dos veículos, esse direito é inerente ao cidadão.
Se seguirmos a lógica “trancou a via, chama a BM”, o que vai ser feito quando um cano estourar e impedir a passagem dos carros? Passar com a cavalaria por cima do buraco e jogar umas bombas de gás pra ver se o trânsito volta a fluir? Parece deboche, mas, viram como não há lógica? A lógica é: chama a EPTC e desvia o trânsito, até removerem o buraco, se possível, sem violência. Mas, e o fato do buraco não ser um movimento espontâneo? Bom, aí o problema é do buraco.

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