Soberania Nacional é parte da soberania popular

PATRUS ANANIAS 
O conceito de soberania dos povos politicamente organizados e assentados em territórios próprios está vinculado à emergência do Estado nacional no início da era moderna, quando se apagavam as luzes seculares da era medieval.
A soberania do Estado absolutista vinculava-se diretamente à pessoa do soberano, detentor de todos os poderes.
O conceito e a prática da soberania vão se ampliando paralelos às ideias e às práticas democráticas que vão, aos trancos e barrancos para lembrar o nosso saudoso Darcy Ribeiro, emergindo e se afirmando a partir do final do século XVII.
À medida em que o povo vai conquistando a duras penas os seus direitos, a soberania nacional vai se tornando também, e, sobretudo, soberania popular. O pressuposto da soberania passa a ser o exercício dos direitos e deveres de cidadania, vale dizer, dos direitos e deveres que alicerçam a soberania popular
Estado soberano é o que afirma sua independência no concerto internacional das nações e simultaneamente assegura as condições internas para que o seu povo possa afirmar a sua identidade, a sua memória, a sua cultura, as suas realizações. A plena realização desse processo identitário nacional pressupõe assegurar às pessoas, famílias e comunidades, acesso aos bens e serviços básicos, essenciais à vida e ao exercício da cidadania e da soberania popular.
Um país soberano preserva com determinação o seu território, as benesses do seu solo, as suas riquezas hidrominerais, a sua biodiversidade; favorece as condições para que todas as pessoas que formam a comunhão nacional possam liberar e alargar as suas vocações e potencialidades. Um país soberano relaciona com outros países de forma dialogante e cooperativa, sempre na busca da paz e dos avanços culturais e civilizatórios, mas sem perder, sempre que necessário, a sua força e altivez na defesa dos interesses da sua terra e da sua gente.
Sabemos que habitamos um mesmo planeta e que partilhamos responsabilidades com ele e com o misterioso e fascinante universo em que estamos modestamente situados. Respiramos o mesmo ar. Carecemos todos dos mesmos mares, dos mesmos espaços; temos necessidades comuns, sonhamos sonhos compartilhados, partilhamos desejos; as criações artísticas e culturais, a busca de formas convivenciais mais solidárias, os trabalhos de construção da paz transcendem povos e nações. Integramos e partilhamos a mesma humanidade.
A aventura humana na face da terra se faz também nas diferenças culturais, consuetudinárias, linguísticas; nas diferenças das tradições e dos procedimentos. Diferenças que enriquecem a espécie humana e abrem novas porteiras e possibilidades ao conhecimento e às manifestações de solidariedade e amor ao próximo e aos diferentes. Vale entre os povos, o ensinamento de Tolstói; “fale sobre sua aldeia para falar ao mundo”.
Um país com o território, os recursos naturais, as condições climáticas, as potencialidades humanas, comunitárias e convivenciais da nossa boa gente, um país como o Brasil que tem tudo isso, deve aportar a sua contribuição própria, única, brasileira ao desenvolvimento da humanidade. Se não o fizermos, ninguém o fará por nós e ficará um vazio tremendo na História.
Para que o Brasil aporte esta contribuição insubstituível é necessário que afirmemos nossas diferenças, a nossa identidade nacional, que não sejamos meros consumidores e repetidores da produção de outros povos. A nossa identidade nacional, condição primeira de nossa soberania, deve ser aprofundada e realçada para que possamos aportar ao mundo a nossa contribuição única, esplendida, intransferível. Se não o fizermos ou o fizermos aquém das nossas potencialidades, o planeta fica cultural e espiritualmente menor.
Para realizarmos a nossa vocação nacional e darmos esse aporte ao planeta e ao próprio cosmos temos o desafio maior de promovermos o encontro do Brasil consigo mesmo – superando os dualismos, injustiças e exclusões que marcam a nossa História – e liberarmos as nossas melhores, mais fortes e generosas energias. Essa contribuição nacional brasileira ao processo civilizatório da humanidade não é tarefa para pessoas, grupos, corporações, muito menos tarefa das classes dominantes que sempre colocam os seus interesses econômicos acima dos interesses da pátria. É tarefa de todos nós. Tarefa do povo brasileiro onde se fazem presentes as melhores qualidades da nacionalidade brasileira.
Fundamental à soberania e ao projeto nacional brasileiro que aprendamos cada vez mais a respeitar as diferenças. Somos um país multirracial, multiétnico, multicultural. O encontro e a integração de etnias e culturas não nos dispensa de respeitar, como parte integrante de nossa soberania popular, os povos e comunidades – os povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais – que, partilhando a comunhão nacional, querem preservar as suas tradições, culturas, costumes, línguas, territórios, valores e procedimentos comunitários, relações com a natureza. Essa diversidade cultural nos constitui e constitui a essência da nossa soberania que se manifestou no alvorecer da nossa nacionalidade na expulsão dos holandeses em meados do século XVII.
Um século antes, no século XVI, o notável pensador francês Montaigne, nos seus Ensaios, nos ensinava que não há culturas superiores ou inferiores, há culturas diferentes. E as diferenças, preservadas e respeitadas, nos enriquecem, do ponto de vista humano e social, e ampliam, no caso brasileiro, os horizontes e as potencialidades nacionais.
A Constituição Cidadã de 5 de outubro de 1988 acolheu bem essa compreensão mais abrangente da soberania fundada na cidadania e nos direitos fundamentais. Os artigos 1º e 3º afirmam com notável clareza os princípios fundamentais de nossa Lei Maior. Partem estes princípios, nos dois primeiros incisos, da soberania e da cidadania. Ao tratar dos direitos políticos no artigo 14, em sintonia com o parágrafo único do artigo 1º, a Constituição fala expressamente da soberania popular.
Atenta à necessidade de assegurar as condições materiais básicas para o exercício da soberania e da cidadania através de políticas , a nossa Carta Magna integra os direitos sociais por meio do artigo 6º e dos artigos 193 a 232.
Vejo, em sintonia com o olhar de milhões de brasileiras e brasileiros que amam profundamente o nosso país, um inquietante processo de desmonte das conquistas sociais, culturais e ambientais que, a partir da Constituição Cidadã, tivemos no Brasil. Vejo, sempre respeitando os olhares diferentes, um processo de desmonte desses direitos essenciais ao exercício da cidadania e da soberania popular. Processo este deflagrado com a Emenda Constitucional 95, prossegue com as chamadas reformas trabalhista e previdenciária – prefiro chamá-las de deforma – além de outras leis e iniciativas sempre voltadas para a redução dos espaços já tão reduzidos dos pobres, das classes trabalhadoras; processos que atingem e penalizam também a classe média assalariada, pequenos e médios empreendedores, o cooperativismo, a economia solidária, a agricultura familiar; através de cerceamentos a programas e políticas públicas como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada – BPC -, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, Programa de Aquisição de Alimento da Agricultura Familiar – PAA, os Centros de Referência da Assistência Social – CRAS, os restaurantes populares.
Acrescem as propostas legislativas que visam reduzir, se não eliminar, as reservas indígenas, os territórios quilombolas e as comunidades e populações tradicionais; a determinação em quebrar as universidades federais e os institutos federais de educação, ciência e tecnologia, no limite a determinação de quebrar a escola pública; mais do que o descaso, a hostilidade com a nossa cultura e as nossas artes que constituem um grande patrimônio nacional e bem traduzem a nossa criatividade.
Ao desmonte dos direitos sociais acrescem as reduções dos espaços democráticos e de participação da sociedade que se manifestam na determinação em extinguir conferências e os conselhos setoriais.
O combate à corrupção, presente no ideário e nos compromissos desta Frente que defende a sacralidade de cada centavo público e de todos os bens que estejam a serviço do povo brasileiro e a serviço da nossa soberania, o combate à corrupção vai cada vez mais se conspurcando com a publicização de gravações que deixam claro as opções políticas e persecutórias de operações como a Lava Jato. Emergem dessas gravações, além de outros fatos e questionáveis procedimentos processuais, as razões que levaram ao julgamento e condenação política do Presidente Lula.
Na mesma linha, casos dramáticos de perseguições e assassinatos políticos como da vereadora Marielle Franco, e de seu motorista Anderson Pedro Gomes, não são devidamente investigados. Outros casos graves de violência e de desvio de recursos públicos não são devidamente processados e apurados.
São procedimentos e omissões que ameaçam a nossa maior conquista, O Estado Democrático de Direito, essencial ao exercício da soberania.
Daí a consequência inevitável: a soberania do Brasil, na mesma linha dos direitos fundamentais, está sendo dura e rapidamente corroída. Aprendemos com o melhor da tradição cristã que a fé sem obras, que a traduzam na vida e nas relações humanas, é vã, assim como se perdem as palavras que não incidem na realidade através de atos.
Falar da pátria brasileira, usar os seus símbolos, cantar o nosso belíssimo Hino Nacional só ganham significado quando se manifestam na concretude das decisões políticas e ações que afirmem a nossa soberania. Não é o que estamos assistindo. Somos testemunhas do contrário: a entrega das riquezas, do patrimônio nacional. Voltamos aos tempos sombrios da guerra fria quando o Brasil, em nome de combater o comunismo, submetia-se totalmente aos interesses dos Estados Unidos.
Estamos entregando o patrimônio nacional em nome das privatizações e do estado mínimo. Estado mínimo não garante a soberania nacional, não promove o desenvolvimento e o bem comum, não protege e preserva a vida como o valor maior e coesionador da sociedade, não viabiliza o projeto nacional brasileiro. A soberania nacional acolhe a propriedade privada, a livre iniciativa, a economia de mercado. A soberania nacional e popular se opõe ao capitalismo selvagem. Defende que a propriedade privada, a livre iniciativa, o empreendedorismo, a economia de mercado e a liberdade contratual estejam subordinadas às exigências superiores do Estado Democrático de Direito, do direito à vida, da justiça social, do bem comum, do projeto nacional, da soberania nacional e popular. Lembrando sempre que o dever primeiro de um Estado Soberano é defender o seu patrimônio e cuidar do seu povo.
A rigor, não existe estado mínimo. O Estado está sempre a serviço de interesses. O Estado neoliberal privatizado coloca-se a serviço das classes sociais mais ricas e dos grandes interesses econômicos, internacionais sobretudo, que dele, do Estado se apropriam. Temos sobre tudo e sobre todos, uma nova divindade, o bezerro de ouro dos nossos tempos; o deus mercado que sente, reage, fica nervoso, se acalma quando é feita a sua santa vontade, impõe seus desejos. Entendemos que o mercado, levado ao seu devido lugar, deve subordinar-se também aos superiores interesses do país, vale dizer, à soberania nacional e popular.
Assistimos no Brasil, entre tantos retrocessos, à privatização de empresas estratégicas à soberania e ao projeto emancipatório nacional: a PETROBRAS fatiada e privatizada justo quando chegamos ao pré-sal. Mais do que privatizada: entregue aos interesses de países economicamente mais poderosos. Estamos entregando a Embraer que tanto orgulho nos causa. Penso no legado notável do marechal-do-ar Casemiro Montenegro. E privatizar, entregar a Eletrobrás, não é também privatizar e entregar as nossas águas? Privatizam os Correios que tanto contribuiu e contribui para a integração nacional. Querem privatizar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal que tanto fizeram e fazem, respectivamente, pela nossa agricultura e pelo direito à moradia, à casa própria. O que querem com os acordos de Alcântara, com a Amazônia Brasileira? Uma submissão crescente aos interesses dos EUA? Se, de um lado, devemos buscar sempre a cooperação e as trocas justas com outros países, cabe lembrar a advertência do Presidente Charles de Gaulle, que os franceses elegeram como o maior estadista de sua história, insuspeito de qualquer tendência esquerdista ou socialista, mas sempre atento aos interesses de seu país e aos sinais dos tempos. Disse De Gaulle, em dura advertência ao seu ministro das Relações Exteriores: “as nações não têm amigos, têm interesses”.
O primeiro dever de cada Estado, sem perder de vista os horizontes das relações internacionais e a busca permanente da paz, é defender os interesses do seu povo. Os donos do dinheiro não descansam. Querem sempre mais negócios e mais lucros. Crescem, é inegável, em setores empresariais sentimentos humanitários, de respeito ao meio ambiente, respeito ao trabalho e às trabalhadoras e trabalhadores, compromissos com o bem comum. Mas aprendemos com as lições da História e com as realidades presentes que o capital para adequar os seus objetivos econômicos ao desenvolvimento social deve ser democraticamente disciplinado pelo Estado, em nome da sociedade, e submetido aos superiores interesses do projeto nacional; o que queremos para o nosso país, pensando em nós e nas gerações futuras – vale dizer todas as ambições e interesses, em princípio legítimos, devem estar subordinados à soberania nacional, à soberania do povo.
Patrus Ananias é deputado federal (PT/Minas Gerais), foi ministro de Desenvolvimento Social e Combate à Fome no governo Lula e Ministro do Desenvolvimento Agrário da presidente Dilma Rousseff. Ex-prefeito de Belo Horizonte e professor da Faculdade de Direito da PUCMG.
 
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