Sucatas

Mais de 50 quilos: foi com um monte de peças obsoletas que Macário de Freitas viu suas contas encerradas na firma em que trabalhou por três anos. Ia bem no emprego, até engordara. A demissão o pegou de surpresa.
Desacorçoado, c’uma baita raiva misturada a uma certa vontade de chorar, ele colocou a “indenização” sobre o assoalho da carroceria do caminhãozinho de um conhecido, desses que ficam no largo aguardando encomenda de frete. Encostou a barriga na carroceria e ficou ali matutando, mão no queixo. Parecia conformado:
“Eu não queria pegar essa sucata, mas o funcionário falou ‘Pega porque na Justiça vais perder anos e pode ser que no final não ganhes nada’. Ele ainda falou que o desmanche já começou: ‘Agora, a Justiça do Trabalho vai ser a Justiça do Capital’.”
Outros trabalhadores, alguns em situação semelhante – na corda bamba ou já devidamente demitidos –, se debruçavam sobre os objetos espalhados pela carroceria da camioneta. Completando o quadro de irregularidades trabalhistas, alguns tinham recebido cheques pré-datados como acerto de contas.
Estavam todos entre a raiva e o desamparo quando se aproxima o professor Hans Selm, que é aposentado e mexe com abelhas. Ele chega, olha para a sucata-indenizatória sobre a camioneta e comenta:
“Isso parece uma metáfora sobre a libertação dos escravos, Macário”.
Hã?!
Ninguém entende o comentário do professor. Degustando o silêncio, como ocorria nos tempos em que dava aulas na escola técnica, o professor desliza a mão sobre alguns elos de uma grande corrente de ferro, dessas apropriadas para prender âncoras de navios: “Isso vale quanto pesa, Macário”.
Tentando consolar o recém-demitido, o professor sugere que Macário veja os fatos positivamente. Por exemplo, venda imediatamente a sucata-indenização no ferro-velho da vizinhança e, em seguida, procure um advogado que o ajude a processar a empresa que o dispensou de modo tão vil.
Alguém da roda questiona o professor:
– O quê o senhor faria no lugar do Macário, professor?”
– Eu?! Sim, eu faria o que estou recomendando a ele: vender a sucata e entrar na Justiça contra o empregador, mas faria uma terceira coisa: tentaria iniciar um trabalho novo.
– Brincadeira! Olha como está o mercado, professor! Não tem trabalho pra ninguém!..
– Tô falando sério! Olhem pra mim: tenho uma aposentadoria como professor, mas estou preocupado com a reforma da Previdência que vem aí…
– Sim, mas o senhor tira uma renda da produção de mel de abelhas?
– É verdade, mas nesse caso a situação também está ficando preta. As abelhas estão sendo exterminadas pelos agrotóxicos.
– E o mel cada vez mais caro…
– É como lhe digo: sempre tem uma saída. Macário, por exemplo, pode trabalhar como ajudante de apicultor.
Cutucado por um colega de infortúnio, Macário desperta do seu estado de choque:
– Tá me oferecendo serviço, professor?!
– Sim, mas veja bem: é trabalho intermitente, apenas em dia de sol e enquanto houver abelha…
LEMBRETES DE OCASIÃO
“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” (ditado popular nordestino)
“Se as abelhas desaparecessem da face da Terra, a humanidade não sobreviveria mais do que quatro anos”  (Albert Einstein, físico 1879-1955)

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