A biografia de João Gilberto Noll, na escrita obstinada de Flávio Ilha

O jornalista, editor e escritor, Flávio Ilha, lançou no final de maio, a biografia “João aos Pedaços”. O livro chega no ano em que o biografado completaria 75 anos. João Gilberto nasceu em Porto Alegre, em 1946 e faleceu em 2017, na capital gaúcha. O biógrafo conta como chegou lá; “depois de quatro anos de pesquisa, entrevistas, noites e mais noites escrevendo, apagando, reescrevendo, eis que está na hora de mostrar o resultado de tanta obstinação”, afirma Flávio Ilha.

O escritor da obra concedeu essa entrevista ao jornalista José Weis:

Há quanto tempo és um leitor do Noll?

Flávio Ilha – Sou leitor no Noll desde que ele lançou o primeiro livro, “O cego e a dançarina”, em 1980. Não lembro por que comprei o livro, talvez tenha sido bem comentado na imprensa da época, não lembro. Mas o livro me encantou imediatamente, gostei demais do conjunto de contos e virei um fã do Noll. Em maior ou menor intensidade, dependendo da época, acompanhei de perto seu trabalho. Quando editei a revista Aplauso, na primeira década dos anos 2000, tivemos um breve contato profissional. Mas, na condição de jornalista, nunca fiz uma entrevista exclusiva com ele.

Conheceste João Gilberto Noll pessoalmente?

Ilha – Nos conhecemos pessoalmente apenas no final da vida dele, em 2016, quando cursei uma de suas oficinas literárias na Livraria Baleia. O curso deu origem ao meu primeiro livro de contos, “Longe daqui, aqui mesmo”, de 2018. Não nos tornamos amigos, não no sentido estrito da palavra. O João era bem discreto e fechado. Muito receptivo, mas bem fechado. Dificilmente falava de coisas pessoais.

Quando e como começou o trabalho da biografia?

Ilha – A biografia começou logo após a sua morte, em 2017. Explico: eu o havia convencido a produzir um documentário sobre sua história literária, que seria feito de caminhadas dele pelo Centro da cidade, o que era bem comum, e leituras de trechos de seus livros por pessoas convidadas. Ele inclusive já havia selecionado alguns trechos para ler, estava empolgado, mas morreu antes de conseguirmos dar início ao projeto. Como não seria possível fazer o trabalho sem ele, decidi transformar em uma biografia. Comecei aos poucos, tateando, procurando pessoas. Só engrenou mesmo em 2019.

Foto; Editora Diadorin/ Divulgação

Fizeste pesquisas e entrevistas?

Ilha – Sim, fiz várias dezenas de entrevistas (não contei), aqui, no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte… Consultei cartas, documentos, reli vários de seus livros, pesquisei em universidades. Foi bem intenso, às vezes pensei em desistir, mas acredito que o Noll merece essa biografia e então toquei em frente. Não imagino que seja uma pesquisa definitiva, acredito que muita coisa ainda possa ser desvendada sobre a vida dele. Espero que inspire outros autores a isso.

O que achas das adaptações para o cinema e o teatro da obra de Noll?

Ilha- Conheço apenas as adaptações para o cinema. Em geral são recortes da obra dele, até nem as abordo muito na biografia, pois a transposição de sua linguagem literária para o cinema é (em minha opinião) impossível. O Noll em geral não criticava as adaptações, até gostava. Mas sabia que se tratavam de linguagens diferentes, ou seja, difíceis de ser comparadas. Adaptações para teatro nunca vi.

O título “João aos pedaços” seria uma referência aos personagens que também são apresentados quase sempre em partes que se compões ou se desmancham ao longo de suas narrativas?  

Ilha – O título refere-se a duas coisas: primeiro, à organização da biografia. Não se trata de um inventário completo da vida dele, não queria fazer uma biografia convencional, então eu começo com a ida dele pro Rio, volto à infância, vamos para o exterior, depois voltamos a Porto Alegre. São pedaços da vida que ele levou que explicam quem ele era. A segunda razão é que o próprio Noll vivia “aos pedaços”: se desmanchava e se reconstruía a cada livro, diz isso em várias cartas, era um processo bem pesado para ele.

Tentei não fazer uma biografia convencional, com começo, meio e fim. Me detive pouco na questão familiar, embora seja um capítulo bem importante da vida dele, para tentar desvendar sua persona literária. Ele se colocava muito nos seus livros, há conexões bem evidentes disso em vários livros que são citados na biografia. Não tenho preocupações acadêmicas, não fiz um estudo teórico, meu objetivo foi desvendar a vida discreta do Noll sem entrar em detalhes pessoais que só interessavam a ele. Então, não há cenas de sexo, bacanais ou qualquer indiscrição como possam supor os leitores mais interessados em escândalos do que em informação.

Foto: Gilberto Perin/ Divulgação

Um narrador em eterna busca

“Quase sempre narrados em primeira pessoa, são personagens de rumo incerto, anônimos e que sobrevivem e passam por cidades reais ou mesmo em territórios imaginários. Essas são as criaturas e cenários que identificam a obra de João Gilberto Noll. Um autor reconhecido e vencedor de prêmios literários, Noll também foi objeto de muitos ensaios acadêmicos.

João Gilberto Noll na sua escritura, quando o cenário é a cidade de Porto Alegre, trás um olhar peculiar, ora amargo ora quase lírico.  É o que identifica nas primeiras páginas de “Rastros de Verão” e “O Quieto Animal da Esquina”. Ruas, avenidas e praças têm referências, porém com certo distanciamento. “O meu passado em Porto Alegre era mais uma abstração”, diz o narrador em “Rastros de Verão”. O jornalista Carlos André Moreira, em artigo escrito em 2012, adverte que “Noll, por sua vez, descreve pouco o ambiente externo em que seus heróis se movimentam. Também desloca com desenvoltura o espaço físico de seus romances”. André Moreira ainda observa que “algumas de suas principais e mais aclamadas obras se passam fora de Porto Alegre, como “A Fúria do Corpo” (no Rio), “Harmada” (em um país fictício) ou “Lorde” (Londres)”.

O seu alter ego narrador, quase sempre diz logo onde está; “Subi as escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina da Miguel Lemos”, em “Hotel Atlântico”. A linguagem nas narrativas que perpassam na obra de João Gilberto Noll é uma busca constante de uma renovação. Seus protagonistas estão sempre à procura de alguém, que se transforma durante a jornada de uma busca descarnada e enriquecedora do texto.

Em entrevista a uma publicação da PUCRS/Brown Univerty (1998), João reconhece uma textura barroca em seus escritos, “sou mais o ritmo musical do que o ritmo da escrita”. As leituras de seus escritos, quando lidas pelo autor, emprestam um ritmo, canto que encanta.

 O autor “A Céu Aberto” almejava livrar-se da “canga da ação”, revelou numa outra entrevista. Talvez seja um reflexo de uma obra em construção, da juventude, quando participou de grupos de canto orfeônico ou sua graduação pelo Instituto de Letras da UFRS, ou ainda da leitura de poesia, uma constante em sua vida, dos tempos em que lia Casemiro de Abreu. Desde no seu primeiro livro, o conjunto de sua obra é um convite à desestabilização do leitor. João Gilberto Noll, o desconcertante.” (JW)

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João aos pedaços – biografia de João Gilberto Noll escrita por Flávio Ilha

Diadorim Editora (270p.) R$ 60,00

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