Humor, grosso e gaúcho, de Bier em tempos de pandemia

 

O universo da cultura em geral e das artes visuais, em particular, foi duramente atingido pelas consequências da COVID 19.  O mundo das publicações impressas artísticas , como o de quadrinhos, cartuns, charges também pagaram o preço da pandemia e estiveram praticamente paralisados ao longo de 2020. Agora alguns de seus principais protagonistas retomam às atividades. Entre eles, o cartunista gaúcho Augusto Bier, cujo trabalho é focado na existência do gaúcho do campo, idealizado pelo imaginário construído no discurso dos Centro de Tradição Gaúcha. Bier  atualmente promove o relançamento de “Rio Grosso”, álbum de seus cartuns, que custa R$ 50,00, prefaciado por Santiago, e pode ser adquirido através do Facebook  do autor, que remete o exemplar pelo Correio.

Aqui, Bier faz uma apresentação do seu trabalho:

“Os cartunistas Santiago, Byrata (Brasil), Crist e Fontanarrosa (Argentina)
são os mitos fundadores dos meus desenhos de humor sobre gaúchos.
Ainda nos tempos de internato comprei o primeiro livro de Santiago,
“Humor Macanudo” (1976) e, dois anos depois, durante o serviço militar
obrigatório, consegui um exemplar de “Gauchíssima Trindade”, com
cartuns de Santiago, Crist e Fontanarrosa. A revista “Xirú Lautério”, do
Byrata, me chegou às mãos em 1980, em Santa Maria. Em 1982, já
cursando jornalismo na PUC, Airton Ortiz, da Editora Tchê!, convidou-me
para ilustrar o livro de causos “Rapa de Tacho, do Apparicio Silva Rillo
(campeão de vendas da feira daquele ano). Já contaminado pelos mestres,
aquilo marcou meu início como desenhista de humor na abordagem do
gaúcho tradicional.


Apesar da picardia e irreverência do material produzido nas várias
manifestações culturais, eu me perguntava por que aquela quase
escatologia não encontrava eco no desenho de humor. Afinal, as
narrativas e representações verbais muitas vezes passavam dos limites
sem que a moralidade fosse evocada na defesa da boa família gaúcha.
Talvez houvesse uma linha imaginária acordada implicitamente entre o
que era humor e o que era desrespeito. E isso poderia ser um freio para a
produção editorial de algo mais picante.
Muito tempo depois, em 1999, na pesquisa para uma dissertação de
mestrado (UFRGS/Fabico) sobre Estudos Culturais, encontrei alento num
artigo do jornalista Ney Gastal (1987). Ali ele relata que, entre 1959 e
1960, durante um congresso tradicionalista em Cachoeira do Sul, o então
jovem Antonio Augusto (Nico) Fagundes, no intuito de combater o tédio
das palestras, começou a rabiscar os versos daquela que seria considerada
uma das maiores obras da chamada “Poesia Chula” do Rio Grande do Sul,
intitulada “Comendo Égua”. A obra foi finalizada em parceria com Jayme
Caetano Braun (Chimango), Apparicio Silva Rillo (Magro), Claudio Oirandi
Rodrigues (Tio Manduca), Telmo de Lima Freitas e Glaucus Saraiva.
Depois de verificar a obra, pensei: eu também posso brincar com esse tipo
de coisa – só que desenhando.”  Bier.

 

 

O BOM MOÇO E O SEU RIO GROSSO!- Prefácio de Santiago.

” Desde que o mundo é imundo o gaúcho cultiva a malícia, a sacanagem, a empulha, a bufonaria, a picardia (sem ou com trocadilho!), o obsceno, o
licencioso, o desbocado, a impudícia, o fescenino, a brejeirice, a indecência com pouca ciência, a bandalheira fuleira, o nome feio ás vezes com a mãe no meio, o baixo calão na língua do peão, a boca de latrina proibida pra menina. Enfim tudo isso que, em bom português e, melhor ainda, em gauchês, se chama a velha bagaceirice campeira!  Desde que a natureza ou o próprio homem mal intencionado e, com uma pá, inventou o desnível do terreno, que o gaúcho vive aos trancos e nos barrancos com a sua montaria, logicamente desmontado nesse momento de paixão telúrica! Claro que essa hora crucial, pouco cial e muito cru, de puro furor selvagem, ensejou milhares de gracejos, sem traquejos, sobejos em rusticidade e primarismo ancestral. No barranco, no flanco, de tamanco ou de lenço branco, vemos o nosso gentílico do sul em posição muito pouco gentil, até quase vil, mas em prazeres mil.  É farto o imaginário e o repertório visual das façanhas amorosas do nosso campeiro, em peripécias com a china, com a pecuária equina, muar, bovina e ovina, com recursos manuais e digitais, nos pensamentos encardidos ou até com o próprio colega de lides campeiras e de pelegos calientes!

Pois o nosso talentoso Bier, com seu precioso,preciso e atrevido traço, sem régua e sem compasso, nada mais fez que registrar tudo isso nesse gargalhejante e galhofeiro “Rio Grosso do Sul” (título que o nosso estado conservador e reacionário bem merece!). Saiam, portanto, de perto quando o Bier erige sua pena furibunda com muita fúria e pouca bunda, para emprenhar a folha em branco com a sua mordacidade e irreverência sem cerimônias. O rebento que arrebenta a boca do balaio é sempre a risada de galpão, sonora e desabrida, ordinária e lupanar, pois o nosso
indiscreto desenhista levanta a ponta do poncho e mostra que, embaixo dos pelegos, acontecem muitas façanhas que pouco servem
como o modelo à toda Terra!

Ainda cabe dizer o mais importante e agora a sério: o Bier é um dos grandes desenhistas de humor do Brasil. Aqui ele contrasta expressivamente os temas toscos com seu traço elegante, de estilo bastante pessoal e fluente – aliás, é um dos raros que muitas vezes desenha sem esboçar a lápis e caracteriza tipos humanos com enorme riqueza pitoresca”.  Santiago

BIER RESPONDE:

Pergunta: Para quem não conhece, quem é Bier?

RESPOSTA: Augusto Franke Bier, 61 anos, natural de Santa Maria da Boca do Monte (RS). Cartunista publicando desde os 15 anos. Jornalista formado pela PUC-RS, especialista em Educação pela UNIJUÍ e mestre em Comunicação e Informação pela UFRGS. Vários prêmios no Brasil e exterior. Além de ter publicado em diversas coletâneas, é autor de três livros solo: Alles Blau e Alemão Blau – personagem de tiras de humor – e Rio Grosso do Sul, com cartuns sobre o gaúcho “tradicional”. Foi diretor do Museu de Comunicação Hipólito da Costa e trabalhou na imprensa do
Sindbancários por quase 30 anos.

PERGUNTA: Humor de galpão quase não tem mulher. Claro, galpão é um universo masculino. Como é a representação feminina nesse universo.? Há espaço para humor feminino?

RESPOSTA: Culturalmente, o galpão é ambiente masculino, e isso é uma metáfora de todo o arcabouço do tradicionalismo. Talvez porque dois terços da história do RS tenham transcorrido em tempos de guerra, no qual homens e mulheres tinham funções bem distintas e definidas pelo patriarcado machista do latifúndio. No entanto, a mulher sempre esteve presente nesse ambiente – como objeto de discursos -, mas dificilmente ao vivo. Eram os discursos sobre a mulher ideal, a china cobiçada, a escrava… As condições sociais e econômicas da maioria dos homens eram tão precárias, que misturavam esses valores com a apologia da zoofilia, a alternativa que restava. Então, eu acho que a mulher começa a ganhar espaço quando a literatura, a arte e o humor passam a representar a sua caminhada, e isso, bem ou mal, ganha impulso através da fundação do MTG, em 1949. A mitologia criada sobre o gaúcho gentílico, paradoxalmente, colocou luz sobre a figura da mulher, mesmo que de forma estereotipada. O riso obrigou o gaúcho a se olhar diante do espelho e descobrir que, de certa forma, ele podia rir de si mesmo. E que, sem a mulher, isso não seria possível.

PERGUNTA: A questão do comportamento é muito explícita nesse trabalho. Comportamento é a matéria prima de humor?

RESPOSTA: Humor é a representação do comportamento humano, e cada cartum, cada anedota, é uma interpretação. Herrera Flores afirma que, com o riso, que exige sempre pelo menos duas pessoas compartilhando, inseridas numa zona comum de entendimento, celebramos o triunfo da pulsão da vida (eros) sobre a pulsão da morte (tanatos). Isto é, mais do que um fenômeno psicológico e social, o riso também é um fenômeno cultural. Seu funcionamento é uma demonstração da inteligência em que o ser humano consegue entender o deslocamento de sentidosa ponto de cair numa armadilha. Essa armadilha narrativa termina com uma
surpresa, e o leitor (ou ouvinte) não tem outra saída a não ser rir. Eu acho que esta é a melhor parte de se viver em sociedade.

PERGUNTA: No teu trabalho há o gaúcho urbano, da cidade, com a picardia e o espalhamento que tem o gaúcho do campo?

RESPOSTA: Antes é preciso dizer o que eu entendo por “gaúcho”. É todo aquele que nasce no RS, seja ele de origem lusa, castelhana, alemã, italiana, judaica, palestina… Trata- se de uma inserção com a qual o MTG ainda lida precariamente. Já o tipo humano que abordo nos cartuns do livro Rio Grosso, por exemplo, está pousado justamente no que vejo de caricatural na mitologia gauchesca . É o humor jogado num cenário que se julga muito sério e superior, que é o do tradicionalismo. A figura representa o gaúcho bombachudo, falastrão, mulherengo, livre e valente idealizado pelo MTG. É um tipo humano que já desapareceu. Agora temos patrão e peão em dois ambientes: nas lides rurais, com empregadores e assalariados, e nos Centros de Tradição Gaúcha e piquetes, onde uma igualdade idealizada e irreal ainda é celebrada ritualmente. Como gaúcho da cidade, circulei muitas vezes no ambiente tradicionalista e as pesquisas me ajudaram a ter um olhar mais atento sobre o assunto.

PERGUNTA: Como é fazer humor em tempo de pandemia?

RESPOSTA: Fazer humor em tempos de pandemia é um desafio desgraçado, porque a concorrência da estupidez de algumas pessoas e das autoridade é concorrência desleal. Por outro lado, se não tivéssemos riso, seria ainda pior.

PERGUNTA: Teu trabalho atual é influenciado pelos momentos de crise que chegamos?

RESPOSTA: A charge tem como principal matéria prima o noticiário. Enquanto o cartum é uma piada desenhada sobre costumes, a charge é uma linguagem editorial e tem a vida muito mais curta, que pode morrer no dia seguinte. Nem sempre o jornalismo e a realidade se coadunam, então é recomendável que o espírito crítico e o
conhecimento do humorista estejam acima da média.

PERGUNTA: A questão das redes sociais para o teu trabalho. Como funciona?

RESPOSTA:  As redes sociais dão muito mais amplitude para o nosso trabalho, mas geralmente remuneram bem menos. O desparecimento dos suportes em papel, por exemplo, encolheram drasticamente esse mercado, culturalmente ligado ao porte físico do objeto. Muito do que publico é por necessidade vital de continuar produzindo intelectualmente, sem ganhos financeiros.

PERGUNTA: O que tu imagina para o humor pós pandemia?

RESPOSTA: Sobre a pandemia? Um dia nós NÃO vamos rir disso tudo!

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