Bem-vindos ao século XXI

Na década de 1990, os ativos financeiros adquiriram uma expressão sem precedentes na história do capitalismo mundial. Observou-se um crescimento significativo da participação dos haveres financeiros na composição da riqueza privada.

“Essa maior participação dos haveres, tanto nos ativos das famílias como nos das empresas, fez com que a taxa de juros passasse a ser uma variável determinante nas decisões de consumo e investimento. Esse movimento caracteriza-se como o fenômeno da financeirização das economias capitalistas”, escreveu Antônio Corrêa de Lacerda, doutor em economia pela Unicamp, no livro “Globalização e investimento estrangeiro no Brasil”.

O valor da massa de ativos financeiros transacionáveis nos mercados de capitais de todo o mundo cresceu de US$ 5 trilhões no início dos anos 1980, para US$ 35 trilhões em 1995, segundo o Bank of International Settlements (BIS).

O especialista em cenários de risco global em uma instituição financeira de Londres, Toni Timoner, escreveu num artigo publicado por Letras Libres, traduzido pelo Centro de Promoção de Agentes de Transformação (CEPAT), Instituto Humanitas Unisinos: “A Covid-19 é o espinho na globalização. O que a crise de 2008-09 e a revolta identitária não tinham conseguido em uma década, um vírus alcançará em meses. O mundo será instável, compartimentado e suas partes sob suspeita mútua. Haverá empobrecimento geral e desaceleração tecnológica. Se antes havia sincronia e concerto, agora haverá assincronia e desordem. Navegação em águas turbulentas. Bem-vindos ao século XXI.”

O economista Paulo Nogueira Batista Jr., que trabalhou 10 anos no FMI e nos Brics, em live esta semana no Brasil 247, juntamente com o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, e o ministro no governo Lula, José Dirceu, disse que a desglobalização já está ocorrendo. “A globalização durou 30 anos e desde 2000 vem sofrendo repetidos baques. O primeiro foi na crise do subprime, em 2008 e 2009, quando houve um grande exercício para preservar o paradigma liberal. Depois o segundo grande baque das lideranças de direita foi a briga com a China. Agora, o coronavírus.  É o momento de mudar o paradigma.”

Para Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, temos uma crise da hegemonia dos EUA: “É só olhar o comportamento do presidente Trump, de quem está perdendo. São reações desproporcionais, como o anúncio da suspensão do financiamento dos EUA à Organização Mundial da Saúde. Ironicamente, essa hegemonia está sendo perdida pela forma de expansão do poder norte-americano a partir dos anos 1980. Veja só, a 3M está fornecendo máscara produzida na China. Esse é um movimento do capitalismo norte-americano que ajudou o projeto nacional de desenvolvimento chinês. A globalização dos Estados Unidos permitiu que a China realizasse seu projeto econômico nacional. Nesse jogo, os Estados Unidos acabaram construindo um rival que está conseguindo superá-lo na sua capacidade de construção interna.  E não é só a China, mas também seus aliados asiáticos. O Brasil está numa posição muito ruim em relação a isso, pois quer se aliar com um país declinante. Não é que os Estados Unidos vão ficar um país fraco, mas está perdendo hegemonia.”

No artigo “Schumpeter, o Dinheiro e a Moeda”, publicado em fevereiro passado no Valor Econômico, Belluzzo diz que a dita “financeirização” não é uma deformação do capitalismo, mas um “aperfeiçoamento” de sua natureza. Na incessante busca da “perfeição”, ou seja, na busca de dinheiro a partir do dinheiro, o capitalismo excita esperanças de enriquecimento e solapa as ilusórias realidades da “economia real”.

E finaliza: “O mundo das finanças viveu uma relativa calmaria nas três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Há quem sustente que a escassez de episódios críticos deve ser atribuída, em boa medida, às políticas de “repressão financeira”. Nascidos da Grande Depressão, esses controles impuseram a separação entre os bancos comerciais demais intermediários financeiros, direcionamento do crédito, tetos para as taxas de juro e restrições ao livre movimento de capitais entre as praças de negócios de moedas distintas. Tentaram disciplinar o Espírito Dinheirista para dar curso à Boa Alma Moedeira. O Espírito escapou.