ELMAR BONES/ Embarcadero

Em artigo publicado hoje no GZH, Daniel Scola, diretor da Rádio Gaúcha, saúda a inauguração do Cais Embarcadero, empreendimento comercial que vai ocupar 19 mil metros na extremidade do Cais Mauá, junto à Usina do Gasômetro.

Sem desmerecer a saudação, pelo alcance do veículo, pelas credenciais do autor e a relevância do tema, algumas considerações são indispensáveis.

“O ponto principal da novidade é o aproveitamento comercial de um dos armazéns do antigo porto, com seis pavilhões para lazer e gastronomia”, diz Scola.

Aqui uma omissão importante: uma emenda ao contrato original incluiu a possibilidade de lojas de varejo – já foram anunciadas uma filial da rede Pompéia e outra da Gang.

Esse “detalhe” motivou uma iniciativa do Ministério Público de Contas, cuja função é exatamente zelar pela legalidade dos contratos que envolvem o interesse público. O procurador geral do MPC, Geraldo Da Camino, quer uma investigação para esclarecer essa mudança que extrapola os objetivos do contrato, como foi divulgado.

Em função disso, os empreendedores decidiram antecipar a abertura do espaço, cuja inauguração vinha sendo adiada por conta da pandemia.

Intempestivamente, a abertura do espaço foi anunciada para a quinta-feira, dia 20, e, de repente, numa decisão anunciada de véspera, precipitou-se para o meio-dia desta terça, 18, com obras ainda em andamento.

Um claro esforço para criar um fato consumado ante um questionamento de ordem jurídica, legal. O pedido do procurador, que inclui a paralisação de obras, está em análise pelo Tribunal de Contas do Estado. Coube ao conselheiro Iradir Petrosky analisar o pedido e seu parecer certamente passará pelo Pleno do tribunal.

Scola lamenta que “ainda não é o Cais todo, mas é um bom começo para o processo de desfecho da maior novela de Porto Alegre”.

Primeiro, o Cais Embarcadero resulta de um contrato da Superintendência do Porto de Rio Grande, à qual foi afeta a área do Cais, área pública, tombada,  com um grupo privado, sem licitação. É um bom negócio, é uma maneira de dar uma partida num processo emperrado, sim, é.

Mas pode servir de modelo para a revitalização de todo o cais?

Para Scola  “as imagens do empreendimento e os relatos de quem está envolvido no projeto indicam que a Capital terá a partir desta semana uma área que nunca foi explorada desta forma, num ponto central da cidade, de frente para o Guaíba”.

Como diria o saudoso Southier: OPN.

“É verdade, diz o articulista, que a área do Cais é envolta em burocracia estatal, mas a resistência à entrada da iniciativa privada impediu que o local se transformasse antes”.

Acompanho esse processo há 30 anos e sou obrigado a registrar que em nenhum momento a “resistência à entrada da iniciativa privada” foi o que impediu que “o local se transformasse”.

A resistência forte, que mobilizou 62 organizações comunitárias e ambientalistas, foi sempre à falta de transparência, às decisões de gabinetes, sob a influência de grandes interesses.

Foram importantes e didáticas as mobilizações e os protestos da AMACAIS, mas seria um exagero dizer que elas impediram que “o local se transformasse”.

O último projeto ficou quase dez anos travado pelo açodamento do governo do Estado ao assinar o contrato de concessão com a Cais Mauá do Brasil,  sem consultar a Antaq, a autarquia federal responsável pelos portos.

O Cais Mauá, onde Porto Alegre nasceu e ganhou seu nome,  era um dos maiores portos do Brasil, sujeito evidentemente a toda a legislação que envolve os portos, pontos estratégicos em qualquer parte do mundo. Sobrepunham-se prerrogativas federais, estaduais e municipais.

Candidata à reeleição, a governadora Yeda Crusius assinou o contrato e criou um imbróglio que durou anos.

Também não dá pra dizer que foi “uma resistência baseada na crença de que o poder público é quem deveria explorar a área”.

Dois dos seis projetos tentados para a revitalização do Cais Mauá colocavam o poder público como agente da revitalização. Não se viabilizaram. Todos os demais partiam da concessão à iniciativa privada e a resistência não se concentrava nisso.

O que mobilizava a resistência eram as soluções megalômanas, de grandes torres, shopping, que exigiam investimentos de 1 bilhão de reais, para criar “paraísos privados”, sem consulta à população.

Lamento discordar do nobre articulista, mas Porto Alegre não “perdeu tempo com uma discussão que poderia ter sido resolvida antes”. Não foi a discussão que atrasou, talvez tenha sido a falta de discussão, a falta de informação.

Entregou-se o espaço mais simbólico da cidade a grupos aventureiros, partindo do princípio de que a iniciativa privada é sempre mais eficiente.

Uma história que não se esclareceu, sobre a qual se jogou um “manto de silêncio”.

Quero dizer o seguinte: o Cais Embarcadero está aí, se impõe como realidade, tem o apoio explícito do maior grupo de comunicação do Estado, será um sucesso certamente.

Mas não se pode “construir” um histórico para justificá-lo.

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