Farsa do “Ritual Satânico”: a polícia cortou na própria carne, a imprensa nem pediu desculpas

Delegado chegou a prender cinco pessoas e indiciar outras duas pelo crime. Era tudo uma farsa. Foto Arquivo/JÁ

Aos 70 anos, o delegado Moacir Fermino Bernardo, da Polícia Civil, foi condenado a seis anos de prisão. Ele ainda pode recorrer.

A condenação é o desfecho melancólico de um caso que deu notoriedade internacional ao delegado Fermino com a história de um “ritual satânico” no qual duas crianças teriam sido sacrificadas.

Ele chegou a prender cinco pessoas e indiciar outras duas pelo crime. Era tudo uma farsa.

Junto com o delegado, foi condenado também o “profeta” Paulo Sérgio Lehmen, dono de um ferro velho em Novo Hamburgo. Ele foi o informante que convenceu o delegado e forneceu as testemunhas que confirmavam a hipótese do “ritual satânico”.

Enquanto isso, voltaram à estaca zero as investigações sobre a morte das duas crianças cujos corpos, aos pedaços, foram descartados nos arredores de Novo Hamburgo, em setembro de 2017.

Até hoje a polícia não tem qualquer pista dos autores, nem das motivações do crime hediondo.

Condenados por terem desviado as investigações, forjando testemunhos e provas, o delegado e o informante ainda vão responder por dano moral às pessoas que acusaram e que foram presas injustamente.

A imprensa contribuiu ao engolir sem críticas a versão mirabolante que eles montaram e produziu uma sucessão de bombásticas manchetes falsas, tendo como única fonte – o delegado Fermino.

A ficha só caiu quando o delegado, dando o caso por resolvido, convocou uma grande entrevista coletiva para contar os detalhes da investigação.

Com 44 anos de carreira, a caminho da aposentadoria, Fermino tinha na mão um caso de repercussão internacional e estava emocionado. A certa altura da entrevista, embaraçado por perguntas, revelou que chegara à solução do caso por “inspiração divina”, por meio de “profetas” que lhe apontaram as testemunhas.

Aí acendeu a luz de alerta na própria polícia e a corregedoria promoveu uma investigação sobre a investigação, concluindo que era uma grosseira farsa a história do ritual satânico. “A polícia cortou na própria carne”, disse um dos corregedores.

E a imprensa, toda ela, que assumiu sem questionar e, pelo destaque que deu, alimentou a versão do “ritual satânico”, sequer pediu desculpas pela enxurrada de fake news que difundiu.

Relembre como foi montada a farsa

O expediente estava começando na delegacia de Novo Hamburgo no dia 4 de setembro de 2017, quando um morador ligou dizendo que havia visto à beira de uma estrada uma sacola com pedaços de um corpo humano.

A sacola foi recolhida e, 14 dias depois , a polícia fez novas  buscas no local e encontrou  outros pedaços em caixas de papelão, completando os membros e o tronco de dois corpos, sem as cabeças.

A perícia constatou  que eram uma menina com cerca de 12 anos e um menino em torno de oito anos. Seriam irmãos ou parentes pela consanguinidade.

Nenhuma outra pista foi encontrada pelos investigadores. Nem registro de crianças desaparecidas, nada.

Três meses depois, quando o caso ganhava destaque na imprensa pelo mistério que o envolvia, começou a farsa.

O delegado Rogério Baggio que conduzia o inquérito entrou em férias e o substituto, o veterano delegado Moacir Fermino, deu um novo rumo às investigações.

Antes mesmo de assumir o caso, ele havia recebido ligações de uma pessoa de sua confiança, cujo nome foi revelado posteriormente, Paulo Sérgio Lehmen, e se convenceu da versão do ritual satânico, no qual as duas crianças teriam sido sacrificadas.

Poucos dias depois de encontrados os corpos, o delegado Fermino registrou ocorrência, de testemunha anônima que afirmava ter visto um “ritual satânico” num sítio em Morungava, em Gravataí, a 30 quilômetros do local onde foram encontrados os corpos.

A partir daí, segundo os corregedores o delegado manteve uma investigação não autorizada, paralela ao inquérito oficial conduzido pelo delegado Rogério Baggio, da Homicídios de Novo Hamburgo.

Quando o titular saiu em férias, no dia 10 de dezembro, Fermino assumiu o caso com a história já pronta. Nove dias depois pediu a prisão temporária de sete pessoas.

Até então, segundo concluíram os corregedores o delegado não tinha nenhuma testemunha, nem indício material.

Apenas o relato do “profeta” Paulo e uma história montada com base num livro de magia negra, do qual trechos inteiros foram transcritos no relatório que o delegado apresentou para justificar a prisão temporária dos sete suspeitos.

“A história foi sendo montada aos pedaços, à medida da necessidade de apresentar elementos que justificassem as prisões”, diz o delegado Antonio Pitta.

As três testemunhas reais arroladas no inquérito apareceram depois do dia 4 de janeiro, quando o delegado já dava o caso por resolvido.

Elas corroboram a história em linhas gerais, mas seus depoimentos têm tantas contradições que não resistiram ao interrogatório dos corregedores e, ao final, confessaram as mentiras.

Eram aliciadas e instruídas por Paulo com promessa de benefícios do sistema de proteção à testemunhas. Uma delas reclamou que haviam prometido 3 mil mensais e não estava recebendo nem mil reais.

A terceira testemunha se apresentou à polícia no dia 22 de janeiro, num momento crucial da investigação, era o próprio filho de Paulo, que apontou ao delegado o sétimo envolvido no ritual, elo que faltava para ligar o “bruxo” Silvio Rodrigues com os outros acusados.

Márcio Brustolin, o sétimo acusado, teria apresentado o bruxo aos dois sócios que contrataram o ritual. Era mais uma armação. Os corregedores encontraram uma mensagem de Paulo ao delegado Fermino, na véspera: “Mais uma missão cumprida… a testemunha vai se apresentar”.

Além de Paulo que o ajudava a construir a história, o delegado Fermino contava com um segundo profeta: um pastor evangélico, de antiga amizade, que ele escuta como um “guia espiritual”.

No dia em que comandava escavações no local onde foram encontrados os corpos, o delegado contou que recebeu uma mensagem deste pastor: “Não sei onde você está, mas cave mais para a esquerda”. A polícia não considera esse pastor envolvido nos crimes do delegado.

Paulo Sérgio Lehmen foi preso durante o inquérito, depois solto e responde em liberdade. Paulo, que Fermino chama de “profeta”, se diz “estudioso de física quântica”.

Silvio Rodrigues Fernandes, o “Bruxo” que, segundo o delegado,  teria conduzido o ritual satânico, na época contratou os advogados José Felipe Lucca e Marco Alfredo Mejia,  para buscar reparo aos danos morais e materiais que sofreu.

Na época os advogados informaram que iriam processar o delegado Moacir Fermino e a imprensa pelas reportagens sensacionalistas que  apresentavam seu cliente como assassino.

“Nosso cliente ficou 40 dias preso sem motivo, sendo sete dias na delegacia, isolado, sem banho, sob tortura psicológica, sem saber direito de que era acusado. Não pode ficar por isso mesmo”, disse na época ao JÁ o advogado José Lucca.

Ele contou também que seu cliente sofreu prejuízos materiais com depredação do seu templo religioso, inclusive com quebra de imagens.
Por conta disso, segundo o advogado, seria ajuizada também uma ação específica contra alguns jornais e veículos de comunicação que assumiram e até exageraram a versão do delegado. “A nossa versão dos fatos não era considerada. Não nos ouviam ou quando ouviam não publicavam”, disse Lucca.

Depois da condenação do delegado e do informante, não conseguimos contato com os advogados para saber se eles levaram adiante os processos.

Quais os motivos de Paulo ao criar toda essa história e o delegado Fermino a acreditar nela, mesmo sabendo que era falsa?

As conclusões dos corregedores são hipóteses. Eles acreditam que Paulo foi motivado por uma dívida. Paulo foi contratado por Jair Silva e seu sócio para limpar um terreno, onde seria feito um loteamento. Ele cobrou 20 mil para retirar um lixão que ocupava grande parte da área. Recebeu o dinheiro e não fez o serviço. Jair começou a pressioná-lo. Quando surgiu o caso das crianças esquartejadas nos jornais ele teria urdido a trama para se livrar do problema.

O delegado Moacir Fermino, com 44 anos de polícia, teria motivos religiosos para apostar na história. Evangélico, ele buscaria “ascensão religiosa”.

Os corregedores chegaram a mencionar a “vaidade” do delegado que o levaria a buscar um caso de grande repercussão e que ainda o credenciaria como homem de fé.

Sobre uma pergunta, se a história não teria sido criada por Paulo para encobrir os verdadeiros executores do crime, o delegado Antônio Lapis respondeu: “O conjunto probatório que reunimos não aponta neste sentido”.

No depoimento que prestou aos corregedores Fermino foi lacônico. Disse que acreditou na história e procurou comprová-la. “Muitas perguntas ele respondeu com evasivas”, disse um dos corregedores. O delegado, que já foi candidato a vereador, teria algum interesse político? Os corregedores não encontraram nada neste sentido.

Os corregedores disseram que com esse inquérito a instituição policial estava “cortando na própria carne”.

Uma cópia do relatório dos corregedores foi para a Justiça, outra para o Conselho Superior de Polícia. A decisão da Justiça foi a que saiu agora condenando o delegado e o informante.

Ainda há um crime hediondo que parece perfeito: duas crianças esquartejadas, sem cabeça, dentro de caixas de papelão, no meio do lixo à beira de uma estrada deserta. Nem imagens de câmeras, nem testemunhas, nem registro de crianças desaparecidas, nem impressões digitais, nem as cabeças, apesar das buscas e escavações.

 

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