Ary Cezimbra, o guru das abelhas sem ferrão

GERALDO HASSE

Às véspera da primavera de 2018, recém-entrado no 82º ano da sua existência, o apicultor Ary Cezimbra fez um balanço do seu estoque e viu que poderia alegrar a vizinhança com uma promoção: mel a R$ 10 o quilo pra abrir espaço no porão de sua casa no bairro São Caetano, em Arroio do Meio, no vale do Taquari, já que logo-logo terá nas mãos uma nova safra.

Em poucos dias vendeu 400 quilos. Sobrou um pouco mas ele diz que não se preocupa com o possível envelhecimento do estoque pois, “se for colhido com higiene, o mel não tem prazo de validade”.

Considerado um dos principais precursores da meliponicultura no vale do Taquari, Cezimbra nasceu em 1937 em Ijuí, mas com dez anos de idade mudou-se com a família para Três Passos, no extremo noroeste gaúcho, onde aprendeu a lidar com as abelhas nativas e as imigrantes.

Sua favorita é a jataí, que produz até dois quilos de mel por ano, volume que não chega nem a 10% da produção de uma colméia de abelhas melíferas trazidas da Europa no século XIX. Ele também abriga em sua casa a jandira, a tubuna, a vorá, a mandaçaia, a marmelada, a mambuca…

Das 24 espécies nativas identificadas no Rio Grande do Sul, só não gosta da iratim, que invade os ninhos alheios para roubar mel. Se captura um enxame dessa espécie, que produz um mel amargo, não lhe dá chance de se meter na vida das outras abelhas. Procedimento que ele explica assim: “Deus, quando criou o mundo, deu uma missão para cada ser vivo. Foi o que aprendi na floresta. Em cada pau tinha uma família trabalhando. Antes eu destruía os ninhos, mas depois entendi que o principal trabalho das abelhas é garantir a continuidade da floresta”. Foi assim também que aprendeu a ser humilde diante da complexidade da Natureza. Por isso Cezimbra é constantemente citado pelos técnicos da Emater de Arroio do Meio como um dos precursores da meliponicultura no vale do Taquari.

“Antes aqui ninguém ligava para as abelhas sem ferrão”, diz Cezimbra, cuja experiência estimulou diversas pessoas a criar as nativas, quase invisíveis em seu trabalho de polinização, ao contrário das abelhas melíferas, que têm fama e reconhecimento por produzir mel, própolis e geléia real.

Como explica Elias de Marco, técnico da Emater em Arroio do Meio, o crescimento das abelhas sem ferrão no vale do Taquari tem a ver com a perda de espaço das abelhas européias diante da urbanização de áreas rurais. Em busca do sossego necessário à produção profissional de mel, apicultores do vale foram parar no Pampa, onde muitos fazendeiros abrem matos e campos nativos à fixação de apiários. Saíram de Estrela e Lajeado, as “capitais” do vale do Taquari, alguns dos maiores apicultores da Metade Sul do Rio Grande. Casos de Pedro Ferronatto em Livramento e de Gerson Fensterseifer em Bagé.

Bem diferente é a história de Ary Cezimbra, que fez, de certa forma, um percurso inverso, migrando da região missioneira tomada pela sojicultura para Arroio do Meio, uma cidade pequena (20 mil habitantes) onde se destacam agroindústrias, cooperativas e sítios de pequenas dimensões. Após 52 anos em Três Passos, Ary e sua mulher Cecilia mudaram-se para a periferia de Arroio do Meio a fim de ficar perto dos filhos estabelecidos em cidades do vale do Taquari. Apenas Oracil, o filho do meio, mora em Minas Gerais, onde é metalúrgico.

Pai de sete filhos, Cezimbra ensinou a prole a lidar com todas as abelhas. Segundo ele, até as meninas poderiam tomar conta dos negócios apícolas da família mas, atualmente, quem cuida dp assunto é  José Cezimbra, o mais velho, nascido em 1960. Tempos atrás, José ganhou do pai a máquina de fabricar lâminas de cera que dispensam as abelhas de fazer favos. Ficou, assim, de posse de uma fonte de renda, mas em compensação teve de assumir a administração dos apiários familiares espalhados por alguns municípios onde ocupam terras alheias, sob arrendamento ou permuta amiga.

O apiário mais distante fica em Três Passos, onde Cezimbra ainda é dono do sítio em que toda a família se criou. Quando Ary chegou em 1947, com dez anos, numa família de 15 irmãos, a floresta ainda dominava a área. Foi ali que ele entrou nos segredos das guardiãs da sustentabilidade da floresta. Conta que, ao se casar, no final dos anos 1950, aproveitou o tronco oco de uma enorme canafístula para fazer a despensa da casa, construída ao lado do que restara da árvore abatida.

Dez anos depois, quando a família chegou a nove cabeças, Cezimbra tinha na cabeça a lista mensal de mantimentos guardados na canastra-canafístula: começava com uma lata de banho (18 kg) e terminava com um saco de feijão (60 kg). No início era apenas sete hectares de roça, depois duplicada mediante empréstimo de um amigo, mas nunca faltou bóia. Mesmo com dificuldades, a família se manteve unida. As abelhas com e sem ferrão garantiam alguma renda e o entretenimento, coisas que se mantêm até hoje. “As abelhas são minha terapia”, diz Ary, que caminha com alguma dificuldade, usando bengala, para compensar o “atraso” da perna esquerda, danificada por uma motossera que lhe acertou um tendão. A cabeça está boa. Sua fisionomia evoca a figura de Zorba, o grego celebrizado no cinema por Anthony Quinn.

Em Arroio do Meio, onde mora há 20 anos, Ary cuida de diversos ninhos de meliponídeos em pequenas caixas de madeira. No mato vizinho mantém algumas caixas de abelhas européias. Gosta de ensinar a crianças e adultos os segredos desses insetos. Como o preparo de iscas ou armadilhas – feitas com garrafas plásticas — para capturar enxames. Ele prepara o material e  presenteia a quem se interessa pelo ofício. Sem esconder ou fazer mistério, em tem satisfação em passar dicas, como a de que “não se deve mexer com esses bichinhos na lua nova”. Por que não? Porque sim. São frutos da observação ao longo de décadas.

Quem andou bebendo nessa fonte foi Aroni Sattler, professor de apicultura da UFRGS, que esteve na casa de Cezimbra. Uma das maiores autoridades brasileiras em Apis mellifera, nascido em Travesseiro, a poucos quilômetros de Arroio do Meio, Sattler foi trocar ideias sobre as melíponas. Recentemente aposentado, o sábio da Agronomia de Porto Alegre compartilha com o caipira de Três Passos a preocupação pela manutenção das florestas e pastagens nativas, ameaçadas por atividades agrícolas, comerciais e industriais.

O colapso das abelhas melíferas por agrotóxicos e/ou doenças aumentou o interesse pelas abelhinhas indígenas, cujo mel virou iguaria da culinária ou da indústria de cosméticos ou de produtos farmacêuticos. Um quilo de mel de jataí vale cinco vezes mais do que o da abelha melífera profissional.

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