As demandas das mulheres no estado mais conservador do país

Por Jessica Gustafson e Paula Guimarães
Portal Catarinas
Santa Catarina ocupa posições de liderança em índices de violência contra as mulheres. É o primeiro em violência doméstica com uma taxa de 225 casos para cada 100 mil habitantes, e o segundo em violência doméstica quando as vítimas são somente mulheres, com taxa de 368,1, atrás apenas do vizinho Rio Grande do Sul que tem 398 – enquanto a média nacional é de 183,9.
O único estado com nome de mulher do país – e santa – é também o primeiro em tentativa de estupro com índice de 10,8, e o segundo em estupro com 57, perdendo apenas para Mato Grosso do Sul que registrou em 2017 o número de 66 casos para cada 100 mil habitantes – duas vezes mais que a média nacional que é de 29,4.
Os dados são da última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicada em agosto e retificada em setembro deste ano.
“As autoridades dizem que somos o segundo em estupro, mas pode ser que passemos a ser o primeiro, porque as mulheres estão denunciando mais. Mas a pergunta é: o que o estado está fazendo para prevenir e erradicar essa violência, o estupro de mulheres e meninas? Não podemos esquecer que dentro desses dados estão as meninas. Essa violência contra as crianças é intrafamiliar”, afirma Sheila Sabag, integrante do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM) e presidenta do Conselho Estadual dos Direitos da Mulheres em Santa Catarina (CEDIM).
Uma das principais reivindicações do movimento de mulheres no estado é a criação de uma secretaria estadual específica e do plano estadual de políticas para as mulheres, pautado desde a última Conferência Estadual de Políticas para Mulheres.
“As pautas das conferências e reivindicatórias das mulheres de SC não têm retorno do Estado. Falta o Estado enxergar as políticas sociais como deveria. Não governa para as pessoas porque não ouve as pessoas. Um Estado com um ótimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tem índice altíssimo de violência contra as mulheres”, coloca a presidenta do CEDIM.
Antes vinculada à Casa Civil, recentemente a Coordenadoria Estadual da Mulher passou a integrar a Secretaria de Assistência Social que não prevê recursos específicos para a pasta. “Enquanto não houver uma secretaria de estado da mulher não teremos execução de política para mulheres em Santa Catarina. Tanto a coordenação quanto a secretaria de assistência social não executam política para as mulheres, porque não têm recursos para isso. O conselho não têm recursos nem mesmo para trazer conselheiras de fora da capital para as reuniões e seminários”.
Mais de uma década depois da Lei Maria Penha, Santa Catarina ainda é o único Estado da região Sul que não implantou atendimento policial especializado para mulheres por meio das delegacias exclusivas como prevê a legislação. O CEDIM demanda esforços para a assinatura pelo governo do Pacto Maria da Penha, que consiste na articulação da rede estadual de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres.
Elaborado a partir de audiências públicas com a participação da bancada feminina da Assembleia Legislativa e conselheiras estaduais, o pacto foi proposto como forma de diminuir os danos resultantes da falta de atualização dos pactos nacionais.
“Não podemos ficar a mercê do governo federal, perdemos absolutamente tudo que tínhamos adquirido desde a criação da secretaria PM, em 2003. O Estado coloca a violência contra a mulher como caso de segurança pública. Mas não é somente, tem outras ações e secretarias que precisam atuar em rede para fazer prevenção e enfrentamento”, defende a presidenta do conselho.
FAMÍLIA PATRIARCAL, A BASE DO CONSERVADORISMO
Conforme a historiadora e professora da UDESC, Marlene de Fáveri, o estado de Santa Catarina tem uma história fundada pela força das oligarquias desde a colônia, passando pelo império e adentrando na República até os dias de hoje.
“Os sulistas de maior referência são de direita ou extrema direita. Temos uma história pautada pelo conservadorismo muito forte e que beira o fascismo porque somos um estado com uma imigração branca e que por dois séculos vem excluindo e tratando com preconceito as populações não brancas. Elites políticas têm se revezado no poder, sem nenhuma preocupação com as pautas sociais. A preocupação é com a manutenção de si no poder, fazendo uso privado do bem público”, explica a historiadora.
Considerado o estado mais conservador do país porque seus cabos eleitorais indicam a maior força do conservadorismo ao longo do tempo, não por acaso é o terceiro com maior adesão ao candidato Jair Bolsonaro, que tem 40% de intenção de voto.
“SC tem uma continuidade política incrível, normalmente bipartidária. Dependendo da época esse bipartidarismo costuma carregar 90% dos votos”, analisa Reinaldo Lohn, também professor do departamento de história da UDESC.
“A mensagem do Bolsonaro está caindo num terreno fértil, que vem sendo preparado há muito tempo, e que beneficia as elites de SC. O Bolsonaro é caudatário desses benefícios todos que essas elites têm, ele exprime isso. Ele materializa uma série de trajetórias sociais e políticas do estado, as mais estruturais porque ele se apresenta como candidato da família, da honestidade, tem também o aspecto religioso que é significativo”, explica Lohn.
Em um estado de proprietários “no sentido simbólico e não material”, constituído a partir da distribuição de lotes de terras pelos colonizadores às famílias no século 19,  a população tem como horizonte social a propriedade. Nesse contexto, a família patriarcal tem um peso social significativo e funciona como mecanismo de controle social e eleitoral – o que explica os altos índices de violência contra mulheres e meninas.
“Há um predomínio patriarcal seja do pai ou do marido. Em muitos municípios, o poder é materializado em três figuras: o padre, pai e patrão. A figura do pai que é proprietário, gestor, e ao mesmo tempo patrão da família porque acaba gerindo o destino dos filhos e como se dá a distribuição das tarefas e funções domésticas. Em vários rincões redes familiares dominam comunidades inteiras e formam verdadeiras linhagens político-eleitorais. A base social está nas pequenas comunidades do interior, onde se pratica ostensivamente a violência doméstica”, esclarece o professor.
Ainda que haja pobreza e desigualdade social, a boa colocação do IDH do estado acaba por reforçar a eficiência desses mecanismos de controle social e político. Apesar disso, ao longo dos anos 2000 a direita perdeu força à medida que a esquerda passou a se destacar com alguns quadros como Lucy Choinacki (PT) que se elegeu senadora, e José Fritsch (PT) que fez uma campanha competitiva ao governo do estado, assim como foram eleitos prefeitos de centro esquerda e esquerda em Lages, Florianópolis, Blumenau e Chapecó.
A possibilidade de uma terceira opção política teve como resposta a união de todos os espectros da direita em um único bloco de poder em torno do ex-governador Luiz Henrique da Silveira do MDB. “O bloco sufocou o crescimento das esquerdas no estado, aliado ao extremo monopólio da mídia e a um processo de desconstrução do PT que é nacional, mas que aqui isso se avoluma. Com o desgaste em torno da aliança do blocão, dois nomes voltam a dividir o conservadorismo, relativamente desconhecidos, o que torna a eleição mais emocionante”, disse Lohn referindo-se às eleições deste ano.
Essa concentração de poder encontra no monopólio da mídia seu principal aliado para que os patriarcas se mantenham hegemônicos, asfixiando valores democráticos. “É ostensivo e vergonhoso o monopólio da mídia no estado. A gente achou que essa concentração seria reduzida no século 21, mas se agravou. Isso faz com que tenhamos uma voz uníssona. Situação em que fazer oposição é inócuo e até arriscado em algumas cidades, onde ocorrem intimidações próprias de situações políticas autoritárias que acabam predominando sobre relações democráticas. SC parece ser terreno propício para esse tipo de coisa”.
Para o historiador há uma convivência complementar entre as redes sociais e o monopólio da mídia na produção e disseminação das chamadas fake news que contribuíram para a liderança do candidato do PSL.
“Vivemos pela primeira vez uma eleição do século 21 com o peso enorme das redes sociais e da dominação de um país ainda por um monopólio de mídia. Então as redes sociais produzem as pequenas fake news e os monopólios de mídia produzem as grandes fake news”.
AS PERDAS NO PÓS-GOLPE
O cenário em que as eleições de 2018 acontecem são extremamente complexos e ainda refletem os efeitos do golpe de 2016, que retirou a presidenta Dilma Rousseff do poder, primeira mulher a assumir o cargo. Após o golpe, o Plano Nacional de Políticas Para as Mulheres deixou de ter validade por ausência de atualização e o orçamento federal voltado à essa agenda foi reduzido em 60%.
Conforme Sheila Sabag, integrante do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), o resultado da 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em maio de 2016, sequer foi publicado pelo governo. No próximo ano serão realizadas as conferências municipais e estaduais de políticas para as mulheres as quais terão como desafio reestruturar as políticas públicas que foram sonegadas nos últimos anos e garantir os direitos previstos em lei.
“Nos últimos dois anos perdemos mais de doze anos de políticas para as mulheres. Essas políticas só vão voltar com a nossa responsabilidade através do voto. Dependendo de quem a gente vote não vamos ter garantia de política pública. Se não tiver a pauta da questão de gênero bem definida não avançaremos. Não é só atuar para diminuir a violência, é preciso também propor ações de autonomia social e econômica dessas mulheres, e garantia dos direitos sexuais e reprodutivos”, afirma Sabag.
Exemplo do retrocesso para as mulheres marcado pelo período pós-golpe é a não continuidade da implantação e implementação da Casa da Mulher Brasileira, prevista para ser construída em todos os estados da federação e Distrito Federal. Um dos eixos do programa “Mulher, Viver sem Violência”, a casa foi proposta em 2015 como uma inovação no atendimento humanizado às mulheres. No espaço seriam oferecidos todos os serviços especializados para os mais diversos tipos de violência.
A primeira casa inaugurada em Mato Grosso do Sul é a única em funcionamento atualmente. Em outros estados como Paraná, São Paulo, e no Distrito Federal, o espaço foi construído, mas não oferece atendimento conforme prevê o programa. Em Santa Catarina, um terreno chegou a ser disponibilizado pelo estado para a construção, porém o projeto não teve continuidade porque não houve liberação dos recursos federais, conforme previsto.
IGUALDADE DE GÊNERO NA POLÍTICA
Nesta conjuntura, a igualdade de gênero se tornou tema central nas eleições, expressão que ficou nítida no dia 29 de setembro, quando cerca de um milhão de mulheres tomaram as ruas do País contra o primeiro colocado nas pesquisas para a presidência, Jair Bolsonaro (PSL), que utilizou o discurso de ódio como ativo político, proferindo inúmeros discursos de cunho machista, racista, homofóbico e xenofóbico.
As mulheres são a maioria do eleitorado (52,5%) e foram às ruas dizer #EleNão, porque o candidato representa o retrocesso frente a conquistas duramente alcançadas ao longo de séculos e promete barrar os avanços futuros. Se por um lado, o fascismo ganha um rosto e muitos adeptos, por outro, as candidaturas femininas nunca foram tão expressivas.
A lei de cotas garantiu que os partidos tivessem no mínimo 30% de mulheres disputando as vagas proporcionais, assim como os recursos dos fundos partidários e eleitoral fossem destinados para o mesmo percentual.
“A dificuldade se inicia a partir da educação sexista desde a infância, que busca restringir as mulheres aos espaços domésticos e a trabalhos relacionados ao cuidado da família, enquanto os homens são incentivados aos espaços públicos. Essa educação sexista faz com que as mulheres tenham mais dificuldade de se posicionarem nos debates ou, quando se posicionam, muitas vezes são silenciadas, ignoradas ou menosprezadas, inclusive nos espaços de militância de esquerda”, disse Caroline Bellaguarda, que foi candidata a vice-governadora pelo PCB em coligação com o PSOL.
A sociedade, boa parcela dela, tem indicado que a redução da desigualdade de gênero é essencial para a democracia. A existência de um fosso entre o que a população brasileira quer sobre a igualdade de gênero e a atuação do poder público para promovê-la é um dos resultados da pesquisa de opinião pública sobre mulheres na política, realizado pela ONU Mulheres Brasil, em parceria com o Ibope e o Instituto Patrícia Galvão, e divulgada em setembro.
Entre as pessoas entrevistadas, 70% delas concordam que só existe democracia de fato com a presença de mulheres nos espaços de poder e decisão. “O Brasil está mudando, e as mulheres são decisivas. A política brasileira precisa acompanhar os anseios da população e eliminar as barreiras entre homens e mulheres nos partidos políticos, na decisão do voto e na gestão das políticas públicas”, diz Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil.
A pesquisa, desenvolvida a partir de 2.002 entrevistas em 141 municípios do País, entre 16 e 20 de agosto de 2018, demonstrou que 81% de brasileiros e brasileiras querem políticas federais de promoção à igualdade. Como destaca o estudo, oito em cada 10 pessoas entendem que a presença de mulheres na política e em outros espaços de poder e decisão aprimora a política em si e os próprios espaços. Os índices apresentam diferenças por regiões, sendo o maior na Região Nordeste, com 84% das respostas em concordância com a afirmação. No Sul, foram 81%, no Norte, 80%, e Sudeste, com 79% dos entrevistados.
Em contraponto ao cenário eleitoral de 2018, que apresenta nacionalmente apenas 31,6 de candidatas mulheres, 77% das pessoas entrevistadas avaliam que deveria ser obrigatório que os parlamentos em todos os níveis tivessem composição paritária, com a correspondência equitativa entre homens e mulheres.
Os altos índices de engajamento e interesse dos brasileiros e brasileiras sobre a igualdade de gênero apresentados pelo estudo levam a uma reflexão sobre as contradições sociais existentes atualmente e, principalmente, sobre o esforço reacionário de uma parcela da população para tentar barrar exatamente esses avanços evidentes sobre as questões de gênero.
Um dos resultados mais surpreendentes da pesquisa refere-se à promoção e ao ensino dos direitos humanos e das mulheres, que foi considerada necessária para 76% das pessoas. Entre quem vive na Região Nordeste, o índice sobe para 79%. Sobre esta temática, a pesquisa também aplicou o recorte religioso, que apresentou pouca diferença entre os índices:  entre as pessoas católicas, 76% entendem que a discussão em sala de aula dos assuntos é de extrema importância, entre os evangélicos o percentual foi de 77%, e pessoas com outras religiões figuraram com 78%.

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