Geraldo Hasse
Havia tão pouca gente, apenas umas 30 pessoas no auditório da Câmara Municipal, que o menestrel porto-alegrense Raul Ellwanger não se animou a cantar mais do que uma canção – “Pealo de Sangue”, seu hino à terra gaúcha, composto em 1979, na volta do exílio – na abertura da audiência pública convocada na noite de quarta-feira (12) pela vereadora Sofia Cavedon (PT) para encaminhar o pedido oficial de tombamento da Fundação Piratini como patrimônio cultural de Porto Alegre.
“Esse é um ato de resistência contra a destruição de parte da nossa cultura e da nossa identidade”, disse Sofia Cavedon antes de franquear o microfone aos participantes da audiência.
Mesmo com escassa presença de público numa noite de clássico Inter x Corinthians no Beira Rio, a sessão estendeu-se por mais de uma hora, fechando mais um capítulo da luta comunitária para impedir que se concretize a extinção da Fundação Piratini, mantenedora da TVE e da FM Cultura, conforme decreto de janeiro do governador José Ivo Sartori.
Em nome dos servidores da TVE, a jornalista Cristina Charão disse que a proposta de tombamento da Fundação Piratini coincide com a luta pelo reconhecimento da comunicação pública como um direito da cidadania. “A TVE possui 35 mil horas de material gravado sobre a realidade do Rio Grande do Sul”, lembrou, salientando que tamanho patrimônio não pode ser simplesmente extinto por decreto.
Ela admitiu que o governo estadual “recuou no discurso da aniquilação”, trocando a extinção por “um novo modelo de gestão” que consistiria na transferência da Fundação Piratini para o gabinete do governador, que passaria a gerir a TV e a rádio, “sem mecanismos de controle público”, com a interveniência da Associação dos Amigos da Fundação Piratini.
“Não é por acaso”, denunciou Cris Charão, “que temos recebido ‘colegas’ que saíram de órgãos privados por contenção de despesas e passaram a ocupar cargos que eram ocupados por profissionais concursados”.
Batendo na mesma tecla, Alexandre Leboutte, funcionário da TVE, esclareceu: a mudança do plano governamental – remodelação em vez de extinção – “está configurada pela presença na direção da Fundação de nomes como Flavio Dutra, coordenador da campanha de Sebastião Melo à prefeitura de Porto Alegre pelo PMDB”.
A nomeação de não-concursados para cargos comissionados não chega a ser uma novidade na TVE e Rádio Cultura, mas desta vez notam-se diferenças: em vista das reações da sociedade contra a extinção, “o governo tem um plano B”, cujo controle gerou “uma disputa de grupos dentro do PMDB”.
Nesse ponto de sua intervenção, Leboutte denunciou o que lhe parece uma irregularidade: recursos captados via Lei Rouanet pela TVE+FM Cultura estariam sendo administrados pela Associação dos Amigos da Fundação Piratini, numa “privatização ilegal”.
Como presidente da audiência pública, Sofia Cavedon disse que vai pedir ao Ministério Público de Contas uma investigação sobre esse imbróglio (em artigo publicado na terça-feira no Correio do Povo, o jornalista Milton Simas Junior, presidente do Sindicato dos Jornalistas, afirmou que os recursos captados somam R$ 4 milhões).
“A luta é muito maior do que a simples defesa de empregos conquistados por concurso”, disse Paulo Gilberto Lopes de Azevedo, representante do Sindicato dos Jornalistas. Ele lamentou que a discussão tenha começado tardiamente, mas disse que “nossos filhos e netos precisam saber que temos uma instituição que faz comunicação de caráter público”. E finalizou: “O que Sartori quer fazer vai ser bom para algumas famílias e muito ruim para a maioria do povo gaúcho”.
O cineasta Guilherme Castro, que já trabalhou na TVE em duas ocasiões, está convencido de que “não dá para embarcar” no “novo modelo de gestão”, mesmo porque as mudanças articuladas para manter a TVE estão sendo debatidas em circuito restrito, ao qual não teve acesso.
Pelo que captou em conversas, debates e manifestações desde agosto do ano passado, quando o projeto de extinção das fundações públicas começou a ser difundido nos meios políticos e empresariais, o governo estadual “está convencido ideologicamente de que é preciso acabar com a TVE e a Rádio Cultura”.
É o que a vereadora Fernanda Melchiona (PSol) chamou de “lógica liberal privatista”, apontada como responsável pela atual crise fiscal “iniciada em 1998 pelo governador Britto e o presidente Fernando Henrique Cardoso”, referência ao acordo de renegociação da dívida estadual, “que era de 9 bilhões de reais e está agora em 54 bilhões”. Ela defendeu um novo acordo mediante um encontro de contas – a dívida com a União e os créditos do Estado com a Lei Kandir –, mas lembrou que “sem mobilização não se conseguem as coisas”.
No final da audiência, Sofia Cavedon conversou com Eduardo Paim, chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Cultura, que fez parte da mesa mas não se manifestou senão para agradecer a oportunidade de tomar conhecimento do assunto.
A pedido da vereadora, o assessor ficou de levar ao secretário Luciano Alabarse um pedido de apoio à demanda pró-tombamento.
Ficou no ar o refrão do “Pealo de Sangue” de Raul Ellwanger:
“Quem viver saberá que é possível
quem lutar ganhará seu quinhão”
Audiência pública busca caminhos para tombamento de TVE e FM Cultura
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