Belchior, além do mito

Elstor Hanzen
Um nordestino com 22 irmãos nascido em Sobral (Ceará), no dia 26 de outubro 1946, traduziu a essência da condição humana para uma linguagem viva e cortante.
Viveu mais intensamente a coerência de suas letras do que a lógica do nosso mundo. Belchior, um literato popular da poesia e da música brasileira.
De espírito nômade, o compositor foi descrito como homem mais livre dentro do mundo que escolheu viver. Em fuga do espetáculo, encontrou a verdadeira liberdade.
Foi uma escolha, garantem os que conviveram com ele no recente tempo.
Era simples, afável e lia de tudo: teologia, filosofia, literatura à física quântica. Declamou poesia em latim. Leu A Divina Comédia em italiano. Era um poliglota.
No mosteiro, cantou e tocou suas canções para uma plateia de freiras. Para o seu guardião nos últimos quatro anos, chegou a ensinar a técnica do Haicai.
Se estava satisfeito com o que via? Ele mesmo tratou de responder em uma entrevista, em 1983. “Estou em harmonia com o mundo, no sentido mais cósmico, mais profundo. Mas, o que vejo na realidade, evidentemente, por ser uma pessoa atenta, sensível e consciente, não posso gostar. Acho que não é um lugar adequado para o homem comum desenvolver suas qualidades e possibilidades, de forma apropriada”, resumiu.
Atualmente, também não estava nada satisfeito com os rumos do Brasil.
Enfim, um homem de aparência máscula e alma delicada. Um progressista, que queria expressar uma nova cultura do Nordeste, não dar continuidade ao estabelecido. Ademais, era combatente do nivelamento da cultura por baixo, da alienação e da mercantilização do mundo.
Dia 30 de maio, um mês da sua morte, a reportagem e a análise buscam compor um perfil do compositor cearense, autor de letras como Monólogo das Grandezas do Brasil, Como Nossos Pais, Divina Comédia Humana. Se os textos não forem suficientes para entender o rapaz latino-americano, ainda há um recurso derradeiro: mergulhar nas suas músicas.
Ele brincava que seu nome de registro era tão comprido que precisava ser percorrido a cavalo: Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Todavia, após percorrer o mundo e traduzir os sonhos, os desafios, as angustias e até os medos privados de toda uma geração dos anos 70 e 80, entrou para a história da música e da arte como Belchior. “Para vocês verem, trata-se do maior nome da música brasileira”, autodefinia-se.
Já nos anos em que se retirou da cena pública e deixou o mito de lado, fez questão de ser simplesmente – Antônio – um rapaz de alma livre e com pressa de viver. “A gente não via ele como um personagem, era uma pessoa comum como qualquer outro morador. Era isso que ele buscava”, conta Flávio da Silva, 51 anos, vizinho no último endereço onde Belchior e a esposa Edna Prometheu moravam em Santa Cruz do Sul (RS), antes da morte do cantor, no dia 30 de abril.
O casal se mudou para a casa cedida por amigos em outubro de 2015, após ter morado em outros seis lugares diferentes na cidade e no mês do aniversário de Belchior. Sem saber que o morador ao lado era o conhecido autor do álbum Alucinação (1976), Flávio e a esposa Aline iniciaram a amizade com o escritor Antônio e a produtora cultural Edna. Quando, finalmente, revelado o segredo, Flávio lembra que ele sempre preferiu ser chamado de Antônio, sem qualquer adjetivo anexado ao nome. E, assim, a amizade foi se consolidando, sem perguntas pessoais sobre o passado nem cobrança da vida profissional.
Um ano depois, os quatro comemoravam juntos o aniversário de 70 anos do cearense, à base de pizza. “Ele gostava muito de pizza com tomate seco, rúcula e queijo. Sem carne”, recorda o santacruzense.
Desde que chegou a Santa Cruz em agosto de 2013, trazido por um amigo a bordo de um gol preto, vindo de Seberi – região Norte do Rio Grande do Sul -, a vida de Belchior pode ser resumida em poucas palavras: hábitos simples, alma leve e um profundo conhecedor da realidade brasileira. Um ávido leitor, também queria fazer a revolução pela palavra. Tinha extrema sensibilidade social, entendia que a instabilidade política afetava diretamente os mais pobres. “Na época do impeachment, achava que não era o momento de fazer o processo. Considerava que a Dilma teria que terminar o mandato, porque foi eleita democraticamente, para não causar uma ruptura institucional no país. Lamentou a confusão e o alvoroço que o processo gerou para a população”, relata o organizar da estadia e guardião de Belchior na cidade de 126 mil habitantes, no Vale do Rio Pardo, o radialista Dogival Duarte, 50 anos.
“Foi um dinossauro da literatura, da cultura e da arte. Uma cachoeira de sabedoria. Também era muito amoroso, querido e pacato. Um Dalai Lama”, assim Dogival descreve seu ilustre hóspede. Na biblioteca do radialista, o autor da canção Apenas um Rapaz Latino-Americano passava a maior parte dos 365 dias, desde a chegada em 18 de setembro, de 2013, às 19h, à casa. “Lia Dom Quixote, de Cervantes; Juan de la Cruz; Simões Lopes Neto; Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez; e, em italiano, A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Ia de clássicos nacionais e mundiais, a escritores brasileiros, gaúchos. Lia com calma e sem pressa. Ele tinha tempo e gosto para ler”, narra Dogival. Com obsessão, procurava traduzir para linguagem popular os 14.230 versos da obra de Dante Alighieri.
Devido ao conhecimento vasto e ao modo afável no trato, Belchior fez amizade com o bispo dom Sinésio Bohn, 82 anos, cujos encontros se davam, na maior parte das vezes, na casa do anfitrião Dogival. O bispo emérito de Santa Cruz definiu o compositor cearense como um gentheman. Já na cerimônia da virada do ano de 2013/2014, quando o casal Belchior está hospedado no Mosteiro da Santíssima Trindade, dom Sinésio o convidou a cantar Panis Angelicus, cântico católico escrito por São Tomás de Aquino. Belchior aceitou. Irmã Andréa Freire, 51 anos, há 20 no mosteiro, lembra com carinho aquela noite. “Cantou à capela. Foi lindo e encantador”, resume.
Homem simples e gentil
Nos 11 anos que viveu no autoexílio, passou pelo Uruguai, Porto Alegre e cidades da região Metropolitana da capital, até parar em Seberi, no início de 2013. Dali partiu para o interior de Santa Cruz do Sul, no distrito de Rio Pardinho, para morar por três meses na comunidade sustentável – Ecovila Karaguatá. Há poucos quilômetros da ecovila, pela mesma estrada, tem-se acesso ao Mosteiro da Santíssima Trindade, onde Belchior e a esposa chegaram pela primeira vez no começo de outubro, de 2013.
No mosteiro – prado verdejante e ar bucólico – o músico se sentia em paz e, inclusive, foi o único lugar em que tocou e cantou por diversas vezes para as freiras. “Além de cantar várias canções, ele gostava de fazer um breve resumo dos bastidores da composição de cada letra”, lembra Andréia. “As irmãs sempre pediam que tocasse Paralelas. Ele obedecia”, completa.
Apesar de ser difícil saber o que se passava na cabeça dele, irmã Andréia acredita que o melhor caminho para tentar entende-lo é por meio de suas letras. “Ele foi e seguiu o que cantava nas músicas”, ressalta. O próprio Belchior, em uma entrevista produzida pela TV Cultura, em 1983, sinalizou nesta direção. “Não tenho palavra precisa, definitiva. Não tenho como indicar um caminho seguro, porque eu também estou fazendo meu caminho a cada instante. Tudo está nos meus discos, de forma mais lúcida”. As explicações mais definitivas, todavia, parecem estar na letra – Tudo Outra Vez: “Gente de minha rua, como eu andei distante. Quando eu desapareci, ela arranjou um amante. Minha normalista linda, ainda sou estudante. Da vida que eu quero dar”.
“Desde jovem, aos 20 anos, as canções dele foram trilha sonora de muitos momentos importantes na minha vida. A frase ‘Estava mais angustiado que goleiro na hora do gol’, na Divina Comédia Humana, é genial. Tem que ser um grande poeta para ter tal tipo de sacada”, conta o professor Ricardo Maurício da Silva, 60 anos. “Não há semana que não ouço duas três músicas dele. Para mim, o mais importante é a obra que deixou”, acrescenta.
Ricardo Maurício, que é natural de Porto Alegre e mora há 20 anos em Santa Cruz, lembra ainda a primeira vez que viu Belchior no aeroporto Salgado Filho, nos anos 80. “Ele estava sentando e conversando com o pessoal da banda. Logo me venho à cabeça a música Medo de Avião. Ele tinha uma imagem muito delicada, frágil; apesar da aparência máscula – homem corpulento e bigode vistoso”. O professor que é formado em letras vai além, diz que o cantor pode ser comparado a grandes escritores como Mário Quintana, por exemplo, embora o cearense não fosse um autor de livros, mas tinha a essência da poesia. “Era o contrário de uma pessoa pé no chão. Tinha sensibilidade e capacidade de observação. Ele via tudo de forma aumentativo”, salienta.
Sobre a diferença entre poesia e música, Belchior mesmo deu sua opinião numa entrevista na década de 80. “Tenho necessidade de um veículo quente, o palco, para expressar minhas mensagens. O livro não tem a mesma força”. Também ressaltou que a mídia é importante para a divulgação do trabalho, mas, acima de tudo, achava que o artista tinha que ter autonomia e independência na sua produção, e a indústria deveria ser apenas uma intermediária entre o artista e o público.
Todos os ouvidos pela reportagem que conviveram, ou tiveram contato com o autor do Na Hora Do Almoço, não ficaram com nenhuma dúvida quanto à sua simplicidade, gentileza, delicadeza. Também na alimentação, seguia o mesmo comportamento singelo: era disciplinado, comida qualquer comida, menos carne vermelha. Gostava muito de vinho tinto. “Mas, bebia só uma taça por vez, exceto em uma comemoração especial, excedia esse limite”, pondera Dogival.
Um sábio
Antes de se tornar popular na MPB, o cearense estudou no Seminário de Guaramiranga, medicina na Universidade Federal do Ceará e se formou em filosofia. Depois fez história e se tornou uma referência na música, mas não chegou a saborear por muito tempo os bens materiais desse sucesso. “Não tem como saber o que se passava exatamente na cabeça dele. Lembrava muito a época dos festivais, com Fagner e Elis Regina. Falava das viagens. Depois falou sobre cada música que fez. A vida de estudante”, observa Andréia.
No mosteiro, reescreveu uma mensagem de Santa Tereza D’Ávila. Primeiro assinou só Antônio. Com a insistência das freiras, no dia seguinte, acrescentou Belchior. Ele não demonstrava preocupação com nada nem nostalgia, contam as irmãs, mesmo tenho poucas coisas para usufruir. “Ele estava na dele. Tudo estava bom”, salienta Andréia. A irmã acredita que o cantor estava consciente da escolha e satisfeito com a situação. “Parece ter sido uma tentativa de tentar uma nova vida, uma alternativa ao padrão oficial”, reflete.
Em geral, deixou para trás o lado popular e só queria cuidar do erudito. Na casa do professor de filosofia Ubiratan e da empresária Ingrid Trindade, em Santa Cruz do Sul, onde o casal Belchior ficou por alguns meses em 2013 e passou o Natal daquele ano, declamou poesia em latim e estudou física quântica. “Falei que gostava de poesia, ele largou os talheres e desceu uma poesia em latim, no meio da janta. Me emocionei demais”, recorda Ingrid.
Na casa dos Trindade, fora à hora do almoço e no jantar, Belchior passava o resto do dia no segundo pavimento da moradia, lendo, escrevendo, desenhando e conectado à Internet. “Gostava de Fernando Pessoa e de Carlos Drummond. Mas, repentinamente, interessou-se muito por física. Leu artigos sobre o tema, Albert Einstein e pediu emprestado o livro A Dança do Universo, do físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleise. Também era um cientista”, testemunha Ubiratan. Eles se admiraram com tanta intelectualidade. “Na janta ele debulhava a Suma Teológica de São Tomás de Aquino e a Lógica de Aristóteles, discorria com naturalidade sobre teologia. Um homem desse não está preso”, conclui o professor de filosofia.
A rotina não foi muito diferente ao logo do ano em que viveu na casa do Dogival. Gostava de ler, desenhar, assistir a filmes à noite. Além do A Divina Comédia, a obra que o cantor mais apreciava era: 31 poetas, 214 poemas. Uma antologia de uma espécie de volta ao mundo da poesia – em nove línguas. Conduzidos pelo poeta e tradutor Décio Pignatari. Uma da raridade, entre os mais de três mil livros na biblioteca do radialista. “Tinha como arma a literatura e a poesia. Era muito espiritualista, por causa a literatura. Astral muito bom”. Ainda gostava das obras do Alceu Wamosy, o poeta soldado.
Dogival diz que adorava beber na sabedoria dele. Além de falarem diariamente de filosofia, literatura, política, o cearense ensinou ao anfitrião a escrever haicais.
A técnica consiste em poemas curtos que utilizam linguagem sensorial para capturar um sentimento ou uma imagem. Eles normalmente são inspirados por um elemento da natureza, um momento de beleza ou uma experiência comovente. Dogival – que também é escritor – agora está escrevendo um livro dos diálogos com o cantor, que é inédito e deve ser publicado até o final deste ano. Uma espécie de biografia.
Visão política e social
Belchior lamentava a alienação dos estudantes, a passividade deles, em não se importar com o dia a dia da realidade. Além da preocupação, conta o professor Ubiratan, o cearense era lúcido e apontava alternativas. “Entendia que não havia mais o mesmo vigor e resistência dos jovens e artistas na mobilização por mudanças, como nos anos 60 a 90. Achava, por isso, que só mesmo a revolução pela palavra seria possível hoje”. O contexto da tecnologia e da comunicação virtual seria favorável para a “revolução” pelo verbo, para o cearense.
A instabilidade política no Brasil e o reflexo disso na vida das pessoas era outra inquietação para o cantor. “De certa forma, estavam prevendo o que está acontecendo agora”, constata Ubiratan. Também tinham muita preocupação com a seletividade da justiça, principalmente, Edna. “Ficaram muito revoltados com a prisão do José Genoino, naquela época. Sempre atentos ao destino do país”, lembra o professor de filosofia. Para eles, as mudanças em curso no Brasil iriam deixar o país menos igualitário, com isso, quem sofreria as piores consequências seria a população com menos recursos financeiros, como o povo nordestino.
Embora estivesse fora do mundo público, acompanhava todos os acontecimentos pela mídia e internet. “Ele se retirou do mundo, mas se inteirava de tudo que passava no mundo. Estava vivaz e afiado” atesta Dogival. Ademais, estava muito lúcido, contava piada e sempre de bom humor. Também costumava procurar na internet informações sobre seus fãs-clubes. Via com muito carinho a manifestação do público. “Se emocionava ao ver isso e mostrava disposição de voltar aos palcos, mas Edna sempre o dissuadia da ideia”, lembra Ingrid.
Mesmo sem prazo, ele tinha interesse em voltar a fazer shows. O principal motivo seria a instabilidade política e desorganização do país. Segundo os amigos, Belchior estava muito preocupado com a situação do Brasil e não podia ficar mais oculto. E, para ajudar, tinha que voltar a fazer shows politizados. Questionando a realidade e os rumos do Brasil.
Além de ajudar o país no campo político, Ricardo Maurício, fã do autor da canção Coração Selvagem, acredita, caso o cantor resolvesse voltado à ativa, poderia também ter sanado seu eventual problema financeiro, tranquilamente. “Não tem lado B nas músicas dele, todas são muito boas, embora a mídia tenha popularizado mais algumas. As letras dele tinham uma origem na literatura, e ele conseguiu traduzir para uma linguagem popular. Um grande diferencial”, sintetiza.
Mulher controladora
Todos que conviveram com o casal Belchior, nos últimos anos, apontam Edna Prometheu como controladora e responsável pela vida prática do compositor. “Ela não era uma pessoa de fácil convivência. Por isso, foram sendo deslocados de casa em casa, porque depois de um tempo ninguém aguentava ela”, conta Dogival. Se tivesse só hospedado Belchior, ele teria ficado os quatros anos e mais o tempo que quisesse na casa da família, afirma o radialista.  No dia da morte do cantor, por exemplo, Edna foi embora da cidade no carro da funerária sem sequer falar uma palavra nem se despedir de ninguém.
Atualmente, conforme informações obtidas pela reportagem, Edna está hospedada na casa da vice-prefeita de Sobral, Christianne Marrie Aguiar Coelho.
Para Belchior, porém, a rede de proteção criada pela esposa parecia ser confortável. Pois ela tinha o controle do espaço dele, da vida física e ele não se opunha muito às ordens dela. Na análise de Ubiratan, o cantor era uma pessoa lúcida, com todos os poderes intelectuais plenos, e não iria se deixar dominar por ninguém. “Ele tinha acesso a tudo, não estava preso, mas gostava de estar aí. Fez uma escolha pela vida que levava. O homem mais livre de todos os brasileiros, o que as pessoas materialistas e com visão utilitaristas não entendiam”.
A hipótese mais razoável apontada pelos que tiveram contato com o cônjuge, e a de que Edna tenha sido apenas uma espécie de empurrão que faltava para ele seguir uma vida mais livre. “A Edna era a principal fã dele. Ela o elogiava e colocava para cima. Também havia uma admiração intelectual recíproca entre eles”, observa irmã Andréia. Outro motivo indicado pelos amigos, é o de que ele era um eterno menino sem interesse nem jeito para lidar com a vida prática, precisando de proteção, e Edna deu esse apoio a ele.
Ademais, o compositor vivia inspirado e tinha planos. Quando ficou na chácara dos Trindade, único lugar que foi possível fotografá-lo, estava mais alegre ainda que o normal e planejava gravar um clipe no sítio, com a algazarra das crianças de uma escola ali perto, e som do canto dos passarinhos. Por vezes, conta Ingrid, “imitava os pássaros, e eles meio que o respondiam”. Para o marido de Ingrid, Belchior estava em fuga do espetáculo e da mídia. “Fez um reencontro com a infância. Com aquele menino de Sobral que foi para o seminário. Abandonou o mundo da aparência e da posse”.
Que vem de baixo não atinge
Depois de voltar da turnê pela Europa, em 2005, Belchior mandou desmarcar todos os shows no Brasil.  Na mesma época, conheceu Edna. Desde então há muitas versões sobre o seu sumiço, de dividas a problemas imaginários. Para os fãs e amigos com quem esteve nos anos recentes, alegava estar cansado da noite e dos palcos; estava mais interessado, contudo, em ler e desenhar. E, mesmo mal tendo a roupa do corpo e sem endereço fixo, estava bem com a vida que levava, conta irmã Andréia. “Uma pessoa gratuita. Sempre muito simpático e contente. Essa mensagem que ficou dele”.
Esse desprendimento também tinha em relação à crítica. “Fiz um pacto com eles: não me atingem, porque, simplesmente, não compreendem meu trabalho. Quando não tem competência não se estabelece. Por isso, sequer merecem uma resposta minha, pela razão de não terem tocados em nenhum ponto fundamental do meu trabalho”, declarou Belchior, sobre a crítica ao álbum Paraíso (1982), na entrevista à TV Cultura, em 1983. Na mesma entrevista, definiu assim sua produção: “Sou partidário de uma arte viva, uma arte atual, arte forte que entra na vida das pessoas. Essa minha postura foi levada para o lado pessoal, por isso, dizem que sou agressivo. Mas não sou nada disso, naturalmente”. A crítica não o atingia, porque não compreendia a essência de seu trabalho, simplesmente.
Talvez, parte da resposta de Belchior, diante de todo o processo, esteja na letra Tocando por Música: “Aluguei minha canção / pra pagar meu aluguel / e uma dona que me disse / que o dinheiro é um deus cruel / […] hoje eu não toco por música / hoje eu toco por dinheiro / na emoção democrática / de quem canta no chuveiro / faço arte pela arte / sem cansar minha beleza / assim quando eu vejo porcos / lanço logo as minhas pérolas” Enfim, entre necessidade e a vida abundante, ficou com a última. Ou consciente como nas Paralelas: “E no escritório em que eu trabalho e fico rico, quanto mais eu multiplico. Diminui o meu amor”.
 
ARTIGO: A contracultura ao mundo do espetáculo
Elstor Hanzen*
Belchior jamais pôde ser limitado a um movimento cultural nem enquadrado no nome que a indústria do entretenimento e do espetáculo lhe tentaram atribuir. Coerente e autêntico, o cantor cearense não se acomodou às etiquetas da arte nem aos estereótipos da imagem; resolveu mergulhar na vida e praticar na plenitude o que pregava nas letras. Viveu como nômade os últimos anos de sua vida no Rio Grande do Sul. Contudo, permaneceu lúcido e intransigente até o fim contra a ideia de separar o sujeito da obra, o prazer como mercadoria, a arte como simples moeda de troca, práticas tão corriqueiras na atual sociedade do espetáculo. “É preciso muita lucidez para não ceder, ficar com a cabeça no lugar. Eu, por exemplo, tinha uma série de fatores considerados negativos pela indústria do disco: a voz que era estranha, o fato de abordar temas, como dizer, ásperos, o fato de não ser exatamente um cantor galã. Eu podia ter amaciado meus temas, feito jogadas. Mas não fiz.”, revelou em uma entrevista, em 1977.
Essa consciência e a postura de não obedecer nem reverenciar a lei do mercado não é bem vista pela sociedade da produção e do consumo e, por isso, parece ser imperdoável. Em contraposição, seus colegas da Bahia se enquadraram melhor no script da indústria fonográfica, consequentemente, tornaram-se “medalhões” e bem-sucedidos comercialmente. O próprio Caetano reconheceu essa diferença em um artigo ao Globo. “Sugeriam que nós, os baianos, já representávamos o estabelecido, o velho, enquanto ele seria o novo e a verdadeira rebeldia. Me parecia uma interessante reação ao habitual “tudo amiguinho, tudo certo’”, escreveu, após a morte de Belchior.
Dentro do movimento Tropicália no final dos anos 60, no século passado, quando Gilberto Gil e Caetano Veloso cantavam alegria, alegria e mundo maravilhoso e divino; Belchior contra-atacava e apresentava uma interpretação mais progressista e viva diante do exposto. “Mas trago na cabeça uma canção de rádio/em que o antigo compositor baiano me dizia/ – ‘Tudo é divino! Tudo é maravilhoso’/Mas sei que nada é divino/Nada/Nada é maravilhoso, nada/Nada é misterioso…”, na parte que encerra a canção, “Apenas um rapaz latino-americano”. Belchior acrescentava que tudo o que retratava na letra ainda era pouco, perto da vida real. Posteriormente, o cantor afirmou não se tratar de uma simples contestação da letra, mas, cujo intuito era deslocar o ângulo de visão e ampliar a compreensão do público sobre aquela realidade. O mesmo contraponto fez na letra: “E Que Tudo Mais Vá Para o Céu”, para a música do Roberto Carlos – “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”.
A leitura consciente da complexidade do mundo e de expor suas cruezas – como de fato é a realidade – não se encaixa bem no mundo que vive das aparências, porque é visto como perda de tempo já que trava o ritmo dos negócios. Por isso, quando mais raso, flexível e passível o artista for melhor é para transformá-lo em produto e, deste jeito, um medíocre, graças à força da mídia, vira sucesso e se transforma em celebridade, enquanto talentos genuínos ficam sem vez. O mesmo teria acontecido com o cearense de Sobral, caso dependesse da mídia e não tivesse tanto talento e capacidade artística, teria entrado na história como um personagem romântico, voz fanha e um bigodudo – uma figura.
Essa dissimulação do mundo em prol da lei do mercado, com a qual Belchior não se identificava nem se amaciava, não se limita a questões isoladas nem pontuais, está inserida num contexto mais abrangente, a sociedade do exibicionismo, que já foi prevista por Guy Debord, em 1967, no “A Sociedade do Espetáculo”. No livro, o autor faz uma crítica direta contra a nova fórmula do capitalismo se expandir e alterar o comportamento das populações mundo afora. Coincidentemente, na mesma época em que o francês escreveu sua obra, os músicos brasileiros projetavam seus trabalhos no cenário nacional.
Debord previu há 50 anos, portanto, o que vivemos hoje na plenitude: a oposição do mundo da aparência ao da essência; a fofoca à verdade; a opinião ao fato. Enfim, de forma mais contextual e nas palavras do autor. “O espetáculo, compreendido, na sua totalidade é o resultado e o projeto do modo de produção existente. É o coração da irrealidade da sociedade atual. Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. A forma e o conteúdo do espetáculo são a justificação das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência”.
Dois mundos
A partir dessa lógica se separou o mundo real do mundo representado pelo espetáculo. Este último, graças à técnica, recorta uma imagem da realidade e cria uma “realidade” melhor do que a realidade em si. Ou seja, o que foi chamado de hiper-realismo e de simulacro, por outro francês, Jean Baudrillard. Segundo Baudrillard, vivemos em uma era cujos símbolos têm mais peso e mais força do que a própria realidade. Desse fenômeno surgem os simulacros, simulações malfeitas do real que, contraditoriamente, são mais atraentes ao espectador do que o próprio objeto reproduzido. O que acontece, por exemplo, quando assistirmos a um show e a um jogo pela televisão, temos imagens e ângulos melhores do que fossemos ver no lugar do evento.
Tal cultura de viver o mundo simulado em detrimento do real foi potencializado ainda mais pelo imediatismo das redes sociais, a troca de mensagens em tempo real, os grupos produtores de notícias falsas e a massa de distribuidores dessa gama de informações. Quando, em geral, tudo isso é apenas uma realidade dissimulada e projetada para o espetáculo, não havendo nenhuma relação histórica dos fatos. Isso traz uma aceleração de todo tipo de sentimento e de emoção, além é claro, da ansiedade e do ódio, construindo um contexto em que a opinião, a convicção, os adjetivos, as versões dos fatos e as aparências funcionam melhor à verdade e aos fatos. Diante disso, surge uma nova realidade social: a pós-verdade.
Para Debord, essa falsa realidade gera uma contrapartida selvagem, por ele nominado de boato. “No início, o boato foi supersticioso, ingênuo, autointoxicado. Mas, em nosso tempo, a vigilância começou a infiltrar na população pessoas suscetíveis de lançar, ao primeiro sinal, os boatos que lhe convêm. É a aplicação prática de uma teoria formulada há anos, cuja origem está na sociologia norte-americana da publicidade: a teoria dos indivíduos chamados ‘locomotivas’, isto é, que são seguidos e imitados pelos outros do mesmo meio; desta vez, passando do espontâneo ao praticado”. Ou como agora, as conhecidas celebridades, que têm a mesma função, embora o nome tenha mudado. Ademais, há, agora, inclusive recursos orçamentários, “profissionais” e massiva distribuição das falsas notícias que, infelizmente, beneficiam poucos e prejudicam muitos.
No atual momento em que estamos, como se sabe, o apelo às emoções e às crenças tem mais importância aos fatos objetivos na modelagem da opinião pública. O fenômeno já está tão presente no cotidiano, por exemplo, que até a justiça se manifesta em público dizendo ter convicções, mas não provas de determinados acusados. Como se percebe, é o pacote completo do espetáculo e da sociedade de consumo, que não é coisa recente, apenas o nome pós-verdade foi incorporado ao dicionário em 2016.
Oculto é mais importante
O discurso do espetáculo vende uma cultura de nos fazer esquecer que somos únicos, mortais e frágeis; quer nós fazer acreditar que somos grandiosos, potentes e poderosos. É uma ideia virtual e dissonante da realidade do fato. Pois, foi exatamente essa alienação que as canções do compositor cearense debateram, desde os anos 1970, além das relações mercantis e a própria indústria cultural. Sua critica a esse estilo de vida venho em versos. “A minha alucinação é suportar o dia a dia, e meu delírio é a experiência com coisas reais”, Belchior entendia a experiência com o real como a verdadeira emancipação do ser humano.
Com a industrialização e a tecnologia, a vivência foi terceirizada, assim fomos reduzidos a meros espectadores a contemplar passivamente as imagens virtuais projetadas pela sociedade do espetáculo e, no máximo, agimos para cumprir ordens e para consumir. “No plano das técnicas, a imagem construída e escolhida por outra pessoa se tornou a principal ligação do indivíduo com o mundo que, antes, ele olhava por si mesmo, de cada lugar aonde pudesse ir”, lembra Guy Deborad. O sistema social que separa o homem de sua produção e natureza, conclui o autor – impede o reconhecimento recíproco entre sujeito e objeto –, consequentemente, não emancipa a pessoa nem traz felicidade.
O mundo da permanente renovação tecnológica, da generalização do segredo, da mentira sem contestação e do presente perpétuo, foi previsto por Deborad também. Segundo o ele, o fato de a mentira não ter contestação, ela ganha uma nova qualidade: vira verdade. “Ao mesmo tempo, a verdade deixou de existir quase em toda parte, ou, no melhor do caso, ficou reduzida a uma hipótese que nunca poderá ser demonstrada”, previa.
Em uma sociedade na qual a mentira e o boato eram para ser exceções e uma espécie de contrapartida ao espetáculo social, elas ultrapassaram o limite e se transformaram em regra. Belchior sabia, no entanto, que o espetáculo era feito para distrair com o óbvio e o banal, consciente que o mais importante sempre ficava oculto ou incomunicável, assim como seu sumiço voluntário da vida pública.
Talvez, por preferir viver a vida de forma autêntica, dar mais relevância à essência das coisas em oposição aos bens materiais e ao espetáculo da vida, tornou-se um incompreendido para a sociedade do pensamento único e da cobiça pela posse. Ou quem sabe, Belchior tenha adotado semelhante lógica de vida ao do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica. Porém, sem a mesma paciência nem disposição de comunicação do uruguaio. O fato é que, Belchior, não quis ser um pássaro na gaiola nem fazer as concessões e atender as expectativas do mercado. Enfim, uma espécie de contracultura da ordem oficial do espetáculo.
* Jornalista e especialista em convergência de mídias
 

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