Guilherme Kolling
O médico e escritor Moacyr Scliar teve a espinhosa tarefa de falar na mesma noite em que a jornalista Asne Seierstad, no ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento, em Porto Alegre. A autora de O Livreiro de Cabul encantou o público com histórias sobre o Afeganistão, Chechênia, Sérvia, Rússia e Iraque.
O gaúcho optou então pela máxima: “cante sua aldeia que serás universal”. Foi o que fez, ao abordar a imigração judaica para o Rio Grande do Sul, terreno em que esteve a vontade o tempo inteiro, provocando risos do público com seus causos do bairro.
Depois da aula de Asne sobre os conflitos gerados por diferenças étnicas, religiosas e culturais, Scliar apresentou a tese de que pessoas que não são iguais podem viver de forma harmônica, apresentando como exemplo emblemático o Bom Fim, de sua infância.
Foi o bairro que abrigou os imigrantes depois de eles terem vindo da Bessarábia para as colônias de Quatro Irmãos (Erechim) e Philipson (Santa Maria). Era um local multicultural – além de judeus, o Bom Fim abrigava negros, descendentes de alemães, entre outros.
Um fator decisivo que pesou e muito nessa convivência harmônica foi a vontade dos imigrantes de que a vida desse certo na nova terra, fato ilustrado com bom humor por Scliar.
“Houve uma integração cultural, o Brasil era visto como um paraíso pelo seu clima, a floresta, as frutas… Na Bessarábia, acontecia de uma família com nove pessoas dividir uma única laranja de sobremesa. Só os ricos compravam. E depois, por aqui, encontraram essa abundância”.
Scliar execerceu o ofício de escritor:
“Perto da Vasco da Gama vivia uma mulher que nunca tinha visto um abacate na vida. E lá onde ela vivia, na Europa, essa fruta era só para nobreza. O sonho dela era comer um abacate. De modo que depois de passar semanas sofrendo em um navio superlotado, a primeira coisa que ela falou ao marido quando chegou a Porto Alegre foi: ‘Eu quero um abacate’. E mesmo sem falar português, não se sabe como, o homem deu um jeito de conseguir o tal abacate. A mulher ficou emocionada. Mas nunca tinha provado,e comeu com casca e tudo. O marido, depois de um tempo observando as caretas de sua esposa perguntou: ‘Que tal o abacate?’. E a mulher: ‘Não é o que eu esperava, mas vou me acostumar’”.
Com essas narrativas, Scliar demonstrou a vontade do imigrante em se adaptar, o que permitiu uma perfeita integração cultural. O escritor contou outras passagens que marcaram sua infância, como a da mãe judia que estava sempre a alimentá-lo. Outras que ele aprendeu numa época em que as pessoas se reuniam ao fim do dia, em frente às casas, sentados em cadeiras na calçada, formando rodinhas na Felipe Camarão, Henrique Dias, Ferandes Vieira…
*Esta reportagem é um dos destaques da edição 376 do JÁ Bom Fim/Moinhos, que já está circulando nos pontos de comércio da região central de Porto Alegre.
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