Paulo Brossard, que morreu aos 90 anos neste domingo, 12 de abril, era certamente o último sobrevivente da geração de grandes políticos gaúchos surgidos na Constituinte de 1947, quando o Estado se reconciliou com a democracia depois da ditadura varguista.
Brossard, recém formado em Direito, não integrou a Constituinte. Não conseguiu se eleger com os 422 votos que recebeu. Só na terceira tentativa, se elegeria deputado.
Mas foi naquela “maré cívica” de 1947 que encaminhou sua carreira política. Tinha 23 anos. Fazia suas refeições na Pensão Preto, no centro de Porto Alegre, onde conheceu João Goulart e Leonel Brizola, de quem se tornaria adversário implacável.
Quando se deu o golpe militar, em 1964, Brossard cumpria seu terceiro mandato na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, pelo Partido Libertador. Era um dos mais contundentes críticos de Jango e Brizola. Apoiou a intervenção dos militares, chegou a integrar o governo estadual, como secretário de Interior e Justiça. Durou seis meses no cargo.
Fora do governo Brossard, gradativamente, foi se tornando mais crítico.
O discurso oficial ainda era o da “intervenção temporária” dos militares. Punidos os subversivos e os corruptos, logo voltariam as eleições e a democracia plena. Brossard,como muitos liberais assustados com o trabalhismo, haviam embarcado nessa..
O que ocorria, no entanto, era uma gradual descida em direção ao autoritarismo. Até que chegou o ano de 1966 com eleições previstas em onze estados.
Rio Grande era caso delicado
No ano anterior, as eleições estaduais haviam sido decepcionantes para os novos donos do poder. Em Minas e Rio de Janeiro, os maiores colégios, o povo votou em candidatos identificados com a oposição.
Agora, entre outros estariam em jogo os governos de São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Sul, que era o caso mais delicado. Terra de Jango e Brizola, com grande número de políticos e militares asilados no Uruguai era ainda “o berço do trabalhismo”.
O general Castello Branco, primeiro presidente do ciclo militar, decidiu não correr riscos. No início do ano, baixou um ato mudando as regras para as eleições de outubro. O governador seria eleito indiretamente pelos deputados. Os prefeitos das capitais seriam nomeados pelos governadores.
A estas alturas já era evidente o candidato que o regime queria no governo do Rio Grande do Sul: o coronel Peracchi Barcellos, levado a ministro do Trabalho de Castello Branco para ganhar projeção e impor-se ao partido.
O problema é que na assembleia que ia eleger o novo governador do Rio Grande do Sul, formada por 55 deputados, a maioria seriam 28 votos. A bancada eleita pelo PTB, toda ela filiada ao MDB, tinha 23 votos.
Somados aos dissidentes do PL (Brossard, Honório Severo e Dario Beltrão), faltavam dois votos para a maioria, que elegeria o novo governador.
Não seria difícil colher os dois votos que faltavam junto à bancada do PDC, em situação incômoda dentro da Arena. “Honório Severo foi o primeiro a quem falei: nós temos a faculdade, temos o poder de eleger o governador”, contaria Brossard muitos anos depois.
Cirne Lima era nome inatacável
A partir daí se intensificaram as conversas. Brossard procurou o pessoal do antigo PTB: “Comecei pelo Marcilio Goulart Loureiro, primo irmão do Jango”. Marcilio levou o assunto a Siegfried Heuser, presidente do MDB no Rio Grande do Sul, onde já despontava Pedro Simon.
Em 23 dias de conchavos chegou-se à candidatura suprapartidária, do professor Cirne Lima, eminente jurista, figura inatacável com fama de notável administrador.
“Foi a coisa mais bonita, inconcebível e quase inacreditável: a maioria absoluta da Assembleia, que nomeava o governador, escolheu um candidato, foi a ele e disse: O senhor é o nosso candidato, não queremos nada, queremos apenas que seja o que é”, conta Pedro Simon.
As 31 assinaturas da oposição garantiam a maioria absoluta na eleição marcada para dia 3 de setembro. Cirne Lima responde em poucas palavras: “Só uma resposta pode caber a um convite desta natureza vindo a um riograndense, da maioria dos representantes do povo gaúcho: estar à disposição do meu Estado”.
O fato, até então, tratado em sigilo ganhou manchete em todos os jornais. Imediatamente, propagou-se uma onda de apoios sem precedentes – da imprensa ao arcebispo, das federações de empresários aos grêmios estudantis, da Associação dos Pais de Família do RS (18 mil sócios) ao Círculo Militar de Porto Alegre e aos “formandos da PUC”.
Os discursos e manifestações lembravam momentos em que os gaúchos deixaram de lado suas históricas rivalidades e se uniram em torno de grandes objetivos – o “Pacto de Pedras Altas”, que pôs fim à Revolução de 1923; a “Revolução de 30”, que culminou com Vargas no Palácio do Catete; a “Legalidade”, quando Brizola sustentou a posse de João Goulart em 1961.
“União pelo Rio Grande”, foi o nome que se deu ao movimento em torno da candidatura Cirne Lima. “Empolgou como se fosse uma campanha em eleição direta”, lembra Pedro Simon.. .
A Ditadura reage
Na manhã seguinte ao lançamento de Cirne Lima, o presidente Castello Branco chama uma reunião de urgência no Palácio das Laranjeiras, no Rio.
Sobre a maioria necessária na Assembleia, afirma: “Isso é tarefa da Revolução”.
O ministro da Justiça, Mem de Sá, gaúcho e libertador, propôe uma fórmula conciliatória, para evitar as cassações que seriam necessárias para eleger Peracchi: o MDB retirava o nome de Cirne Lima (que seria nomeado para o STF) e a Arena retirava Peracchi e os dois lados apoiariam o professor João Leitão de Abreu, chefe de gabinete de do Ministro da Justiça (depois seria chefe da Casa Civil de Médici e Figueiredo).
A fórmula foi rechaçada, Mem de Sá se demite dois dias depois. O governo segue preparando o caminho para garantir a maioria na eleição gaúcha. No dia 30 de junho, baixa o Ato Complementar número 14: os suplentes de deputados cassados não podem assumir..
Peracchi desembarca em Porto Alegre dizendo que “a candidatura Cirne Lima obedece ordens de Montevidéu”, onde estão exilados Jango e Brizola.
Ruy Cirne Lima tinha uma diferença fundamental com as situações anteriores. Ele não era, nunca fora, nem pretendera ser um político. Foi colocado no centro dos acontecimentos sem ter feito um gesto. Foi alijado em seguida por forças que nunca se revelaram inteiramente.
Sua condição de “governador eleito” durou um mês e pouco. O tempo suficiente para a máquina burocrática da ditadura se refazer da surpresa e agir implacavelmente.
Os militares tentavam, desde o início, legitimar o golpe com o argumento de que fora “preventivo”, que a “quebra de legalidade seria momentânea”, apenas o tempo suficiente para “sanear a vida política”. Em seguida o país voltaria à “normalidade democrática”, sem decisões de força, nem atos institucionais, mas com eleições e voto popular.
Ruy Cirne Lima apoiou a intervenção militar. Ele não desdenhava da “necessidade de um governo forte, para manter a ordem e garantir o respeito à lei e principalmente aos direitos individuais”. Achava que o governo Goulart estava fraco, dividido por muitos interesses, indo numa direção perigosa.
Não se manifestou, mas reservadamente mostrava-se compreensivo com o “hiato de autoritarismo”. Chegou mesmo a participar do governo estadual, como Secretário da Fazenda, e quando Castello pretendeu aumentar o número de juízes no STF, para ter mais nomes confiáveis ao regime, ele foi um dos cotados.
Castello entre intransigencia e indecisão
Uma manchete da época afirmou: “Castello não transigirá com a situação política no Estado”.
O texto: “Deslocados os acontecimentos que envolvem a crise política do Rio Grande do Sul para o Rio, mais se acentua a impressão de que o governo, apesar de tudo, continua disposto a cassar muitos mandatos para impedir que Cirne Lima chegue ao Palácio Piratini, o que teria consequências imprevisíveis”.
Castelo, no Rio, recebe Raul Pilla e Mem de Sá. Eles dizem que a “acolhida é muito grande, inclusive entre a oficialidade do III Exército”.
Castello se mantém enigmático, sinal de que são muitas as pressões ao seu redor. Além do comprometimento com a candidatura Peracchi, vitoriosa na Arena e com forte respaldo militar, havia o precedente a ser evitado, pois em São Paulo também havia um movimento em favor de Carvalho Pinto, contra Abreu Sodré, o candidato do regime.
Editorial do Correio da Manhã, influente diário do Rio, acusa o governo de “Indecisão”: “Porque o governo recusa a solução lógica? Se essa tentativa de conciliação, a primeira depois de 64, galvaniza o apoio popular, porque fechar a porta que se abriu para o futuro?”
Conclui que a “pacificação do Rio Grande do Sul seria simbólica” e que “cabe ao governo “estender a mão ao povo gaúcho num gesto de conciliação”. No dia 4 de julho, o presidente da República assina ato cassando o mandato de três deputados do PTB: Darcy Von Hoonholtz, Hélio Fontoura e Alvaro Petraco.
Decisão foi cassar mandatos
No sábado, dia 9, mais quatro cassações. No dia seguinte: votos dados a candidatos de outro partido serão nulos.
Cirne Lima pede ao PMDB que não registre sua candidatura. “Parece-me inteiramente ocioso este registro, ante o descaso do governo federal pelas regras eleitorais que edita, alterando-as tantas vezes quantas necessárias forem a seus propósitos. Ganhará o governo federal a eleição de 3 de setembro. Entendo que deva ganhá-la sem competição, fora das normas democráticas que tão reiteradamente tem conculcado.”
Uma semana antes da eleição, o ambiente político, já sombrio, se torna assustador: o corpo de um homem foi encontrado no Jacuí. Estava manietado e apresentava sinais de tortura. Identificado, era Manoel Raimundo Soares, sargento do exército, ligado ao movimento nacionalista. Descobriu-se que havia sido preso em março, pelo DOPS, suspeito de ligações com os esquemas militares atribuídos a Brizola. Morto numa sessão de tortura, fora lançado ao rio, com as mãos amarradas. Ficou claro: a ditadura não estava só cassando mandatos. Estava matando seus adversários.
Nesse clima se chegou à eleição. Havia ainda um risco. Se apenas os apoiadores de Peracchi comparecessem, a eleição na Assembleia não aconteceria por falta de quórum.
Para evitar o impasse, os deputados do PDC – Sanseverino, Dario Beltrão e Marchezan – comparecem e votam em branco, em protesto. Depois das cassações, a Assembleia Legislativa ficou reduzida a 48 deputados, e os 23 votos em Peracchi não alcançaram maioria.
Como previa o Ato 3, há um segundo escrutínio, no qual Peracchi já não precisa de maioria absoluta. Foram 23 a favor, 3 brancos, 22 ausentes, 7 cassados. Entre os que votaram em Peracchi, dois seriam governadores depois: Amaral de Souza e Sinval Guazzelli. “Ali a chamada revolução perdeu sua honra”, diria Paulo Brossard, que em seguida se filiou ao MDB.
Em 1974, seria um dos 16 senadores que a oposição elegeu e ocuparia a primeira página dos jornais, com o gesto que hoje simboliza o inicio do fim do regime dos generais – a cavalo, em campo aberto, acena com o chapéu levantado, como numa despedida.
Foto: Brossard,em 74,um dos 16 senadores eleitos pela oposição: as urnas davam adeus à ditadura
Brossard: o homem que desmascarou a ditadura
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Comentários
2 respostas para “Brossard: o homem que desmascarou a ditadura”
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