Geraldo Hasse
Em 2008, ao realizar a velha ideia de escrever um livrinho sobre a história da navegação no Rio Grande do Sul, me dei conta da centralidade do Cais Mauá na história de Porto Alegre. Nunca é tarde para ver caírem as fichas.
Desde criança em vinha margeando a história do transporte hidroviário no território gaúcho.
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Me criei em Cachoeira, na beira do rio Jacuí (onde havia um porto fluvial que agonizava enquanto eu crescia e estudava nos anos 50), depois morei em Pelotas (onde o movimento do porto local estava diariamente na minha pauta como repórter de rádio dos anos 60) e, após muitas andanças pelo Brasil (nos anos 90 morei em Vitória, que tem um grande movimento portuário), acabei entrando no século XXI em Osório, cidade cercada por lagoas que serviram como vias de navegação antes da construção das rodovias que aí estão.
Era inevitável que ao retornar à querência eu tivesse o impulso de, como deve ter feito o escrivão da frota vascaína ao voltar da Índia, vasculhar a memória regional em busca de uma síntese útil sobre algo fundamental no cotidiano riograndense.
Assim nasceu o livro Navegando pelo Rio Grande (JÁ Editores, 2008). É um barquinho de papel (102 páginas) que dá uma viajada legal pela história dos ancoradouros, rios e lagoas do Rio Grande do Sul.
Na introdução, o editor Elmar Bones botou o dedo na ferida ao lembrar a contradição histórica em que estão mergulhados os gaúchos: embora vivam num ambiente rico em estradas líquidas formadas por lagoas e rios, passam a maior parte do tempo falando de gado, campo e lavoura.
Ora, direis, o que tudo isso tem a ver com o Cais Mauá?
Aí é que está: o Cais Mauá é um dos maiores emblemas da história de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Um pedaço da alma da cidade, como o Gasômetro, a Rua da Praia, o Theatro São Pedro, o viaduto Otávio Rocha, os estádios Olímpico e Beira Rio, a Ilha da Pintada.
Esse nome, Cais Mauá, tem apenas um século e homenageia o pioneiro João Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, mas foi na beira do Guaíba que a capital começou no século XVIII (a maioria das cidades começou assim, na beira de um corpo d’água).
Na fundação desse belo patrimônio histórico, os armazéns, a via férrea, o acostamento e tudo mais acompanhavam a linha d’água. A cidade era dominada pela horizontalidade. A única coisa vertical por ali eram os guindastes, que se tornariam obsoletos em face da evolução dos sistemas de carga e descarga de navios.
Ao longo do século XX, a zona portuária da capital foi enriquecida com a construção de prédios verticais que abrigaram residências, escritórios e repartições públicas. Por que tanta construção? Claro, havia a atração das águas, mas a razão mais poderosa para tanta edificação é que o porto era o lugar mais rico da cidade. Por ali passavam os melhores produtos, as grandes cargas.
Observem a Avenida Sepúlveda, que nasce diante do portão do porto na Avenida Mauá e não tem nem 100 metros de extensão.
Dois prédios históricos estão frente a frente. De um lado, a Alfândega Federal. De outro, a Secretaria da Fazenda do Estado. São duas fortalezas fiscais à espreita da riqueza que circulava entre o porto e a cidade.
A riqueza que circulava ali e, a partir dos anos 1950, passou a circular, principalmente, pelas rodovias, hoje responsáveis por 80% do transporte de cargas do RS, o estado mais bem provido de vias navegáveis, depois do Amazonas.
O símbolo do progresso, o novo emblema rodoviário chamado Ponte do Guaíba (inaugurada em 1958) virou um problema porque, além de atrapalhar a navegação, não dá conta do tráfego de caminhões, tanto que o governo federal está construindo uma nova ponte.
O Cais Mauá foi abandonado pela maioria dos navios que se foram para o Cais Navegantes, para a foz do rio Gravataí, para o terminal Santa Clara no Jacuí em Triunfo e, mais ainda, para Rio Grande. O Mauá foi esvaziado pela migração das cargas para outros locais com maior calado, entre outros itens considerados importantes pelos operadores portuários, os armadores e os donos das cargas.
Em consequência, a cidade de Porto Alegre viu a zona portuária perder o antigo movimento. Hoje, temos mais de um quilômetro de cais para os catamarãs e o barcão Cisne Branco. E para as embarcações de fiscalização da inglória Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), herdeira do poderoso Departamento de Portos, Rios e Canais (Deprec).
O centro de Porto Alegre permanece vivo em torno do Mercado Público, das repartições públicas, dos escritórios e das lojas.
Quem chega de avião ou se aproxima pela BR-290 ou pela BR-116 identifica no aglomerado de prédios do centro uma semelhança com Manhattan, mas ao cair dentro do labirinto central a maioria das pessoas não compreende como o miolo da capital gaúcha se tornou essa mescla de antiguidade, modernidade e decadência.
Com um pé em cada canoa, o Cais Mauá é um reduto histórico que corre o risco de deteriorar-se como outras taperas da nossa história.
À luz da lógica da economia de mercado, erguer duas ou três torres de vidro pode dar uma sobrevida à avenida. Ela precisa mesmo de uma revitalização. Como o poder público não tem recursos para tanto, a responsabilidade foi transferida há cinco anos para a iniciativa privada, que só investe se houver um horizonte de remuneração.
No Mauá parece haver perspectiva de lucro. Não fosse assim, os empresários não estariam revoando. Mas o projeto não anda. Ou faltam condições legais, ou escasseiam os parceiros ou entra areia graças a novas demandas judiciais.
O debate em torno do cais Mauá tem sido distorcido por divergências de interesses. A palavra revitalização assusta porque sugere o desmanche do velho para que nasça o novo. Naturalmente, nessa mudança, tendem a ser privilegiados aqueles que já desfrutam de vantagens na sociedade. Então como é que ficam os pobres, a classe média baixa – a maioria da população?
Não tenho dúvida de que o urbanista Jaime Lerner é bem intencionado, mas atrás de seus projetos e consultorias costumam atuar alguns tubarões do mercado imobiliário que, se não forem contidos, entupirão a orla de torres e shoppings centers.
Uma torre de aço e vidro a cada 500 ou 1000 metros da orla seria um novo marco da urbanização no estilo do século XXI. Torres (em fortalezas) fazem parte da história da humanidade. A torre do Gasômetro tem 90 anos e ninguém pensa em derrubá-la para restabelecer a horizontalidade da orla.
Mas quem sabe o que vai acontecer com as orlas do mundo?
No Guaíba existe até um muro para segurar enchentes, mas os empreendedores da revitalização do Cais Mauá (e do Pontal do Estaleiro) pensaram no risco representado pelas mudanças climáticas? Se os oceanos subirem o tanto que se fala, a Lagoa dos Patos vai subir também e, com ela, o Lago Guaíba.
Se o Cais Mauá for tomado pelos tubarões, corremos o risco de perder a memória da cidade. Não apenas a memória predial, arquitetônica, mas até os arquivos que dormem nos prédios ligados à navegação.
Minha maior surpresa na pesquisa para o livro da navegação foi descobrir que, dentro do edifício (quatro andares) da administração do porto da capital, existia uma senhora biblioteca com farta documentação sobre a história dos portos, rios e canais do Estado.
Nunca é demais lembrar que, embora mudem os locais de atracagem dos navios e deposição das cargas, la nave va — a navegação continua.
Mas não olhemos apenas para o cais Mauá. É preciso encarar toda a orla.
À margem da Av. da Legalidade e da rua Voluntários da Pátria há uma porção de prédios apodrecendo e de terrenos baldios. No miolo central há dezenas de prédios vazios, sendo que um ou outro começam a ser alvo de ocupações com fins residenciais.
Enquanto isso, restam duas perguntas:
1 – Por que o poder público não toma nenhuma iniciativa para revitalizar os arredores do Cais Mauá e do Cais Navegantes?
2 – Por que a inteligência da cidade tem de ficar atrelada às iniciativas do capital?
Cais Mauá, um emblema da história do Rio Grande
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Comentários
2 respostas para “Cais Mauá, um emblema da história do Rio Grande”
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Excelente, parabens.
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ótimo texto, porém hoje em dia, tudo que é construção que fazem em Porto Alegre, é feia. Basta olhar para aquelas 3 caixas de fósforo que o Sr. Rossi construiu ao lado da Ferramentas Gerais. Pensando apenas em seu próprio lucro e não pensando nem um pouco na cidade (e por que deveria? ele nem é daqui mesmo, não esta nem ai) conseguiu enfeiar aquela linda área.
Também vá no terminal do aeroporto e olhe para o horizonte. A parte antiga da cidade, a direita, é linda, mesmo com aparência um pouco antiga, agora olhe para a esquerda, um monte de caixas de fósforos altas e beges recém construídas, que estão transformando minha Porto Alegre em uma São Paulo. A menos que se crie um estilo arquitetônico padrão para a cidade e os arquitetos passem a utiliza-lo, acredito que as coisas só vão pioras.
Quanto ao shopping no cais Mauá, melhor não fazer nada, que fazer porcaria e ainda prejudicar muita gente.
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