Matheus ChaparinI
Durante 36 anos, Vanderlei Cappellari se dedicou ao trânsito de Porto Alegre. Começou como agente, um azulzinho, através de um concurso em 1981. Participou da criação da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), em 1998, e foi seu diretor-presidente durante sete anos.
Em entrevista ao JÁ, Cappellari defende a revisão de isenções no transporte público, proposta pela EPTC, e critica o decreto do prefeito Nelson Marchezan Júnior que retira a gratuidade da segunda passagem, projeto ao qual se dedicou. Apoia medidas restritivas aos automóveis, privilegiando o transporte coletivo, e fala de sua relação com o coletivo ciclístico Massa Crítica, enquanto chefe do trânsito da Capital.
Qual a tua avaliação das medidas da EPTC e do prefeito Marchezan?
O transporte coletivo é um modelo de serviço público muito sensível a qualquer mudança da economia. A crise impactou não somente no transporte, mas em todos nós.
Na verdade, não houve um aumento das gratuidades. Claro, existe um aumento vegetativo. Mas a grande redução de pagantes que ocorreu do ano passado para cá, é por causa da crise econômica. Portanto, tu tens que tomar medidas de correção para manter o sistema saudável financeiramente.
Eu sempre defendi que tem que fazer uma reavaliação das gratuidades, porque tu tem muita injustiça no sistema.
Por exemplo?
Um estudante cuja família paga dois mil reais por mês de mensalidade escolar paga meia tarifa na primeira passagem e não paga na segunda. Este tipo de usuário tem que contribuir com o sistema. Carteiro não precisa ter gratuidade. Quanto custa um Sedex? Os próprios rodoviários, representam 9% das gratuidades. Então, por que as empresas de ônibus não podem contribuir também com o sistema?
Olha o que São Paulo fez, por exemplo. A cidade subsidia diretamente do orçamento. Bom, Porto Alegre tem problema financeiro… Mas o transporte é o coração da cidade.
A mobilidade gera movimento financeiro. Quantas pessoas pensam em sair de casa para ir em uma loja no Centro, na Assis Brasil, na Osvaldo Aranha e desiste porque tem que gastar 8,10 reais.
Eu chamo de coração porque tem que irrigar todo o território, se uma ponta da cidade, se um bairro, uma vila fica sem transporte, tu isola as pessoas.
Neste pacote da EPTC, não faltou uma medida que também inclua as empresas?
Quando fizemos a licitação, buscamos exatamente a parte que ainda não entrou como contribuição para a modicidade, que é o recurso gerado pela antecipação de receita. Estes recursos ficam para o sindicato das empresas.
Outra questão que estávamos finalizando é assumir a publicidade nos ônibus. Estive em várias cidades do mundo e o ônibus é um outdoor ambulante. Alguns modelos chegam a dar 7% do faturamento do custo do transporte.
Qual tua avaliação em relação ao decreto da segunda passagem?
Acho uma injustiça e um retrocesso. Primeiro, um modelo de transporte eficiente tem que atender a todos igualmente. Se tu for em São Paulo, tu pode comprar um bilhete único por um mês e usar da forma que tu achar melhor. Essa liberdade do usuário facilita o planejamento das pessoas.
Outro ponto é a injustiça: tu trata pessoas diferentes com o mesmo serviço prestado. Não se pode prestar um serviço púbico de transporte coletivo, que é obrigação da prefeitura constitucionalmente, e tratar as pessoas desigualmente. Eu acho que isso pode gerar inclusive ações judiciais. Se eu tivesse que pagar dois ônibus, ia avaliar entrar na justiça querendo o mesmo direito do cidadão que paga somente uma tarifa.
Outra: vai cair o número de passageiros. O usuário que tiver que pagar R$ 6,07 para ir trabalhar mais R$ 6,07 para voltar para sua casa, ele vai avaliar bem, porque é um valor altíssimo.
A EPTC aponta a segunda passagem como um dos principais fatores causadores de prejuízos às empresas.
Não é verdade que as empresas tiveram prejuízo. Isso está lá na tarifa. Como é calculado o volume de isenções? O estudante, a cada duas viagens, gera uma isenção, o carteiro, o brigadiano, a pessoa com necessidades especiais, o acompanhante, cada um é uma isenção. Todas as isenções estão dentro do cálculo.
Não tem nada a ver. Isso não existe. Porque a planilha tarifária pega todo ano anterior, calcula os custos das empresas, projeta o ano seguinte e calcula uma tarifa. Se o óleo subir demais, ou os rodoviários tiverem algum aumento, tu tem como corrigir. O desiquilíbrio financeiro da Carris não tem nada a ver com a segunda passagem gratuita.

A Carris historicamente sempre foi uma empresa de referência, muito premiada. E de 2011 para cá ela começou a acumular prejuízos crescentes. O que explica essa decadência tão rápida?
Primeiro a gestão. Falei várias vezes que a gestão lá tem que ser profissional. Outra coisa são as dificuldades de uma empresa pública, ela tem uma série de responsabilidades e dificuldades que a empresa privada não tem.
Mas isso não mudou, né?
Vou te dizer, aconteceu uma série de questões dentro da companhia que o prefeito nos cobrava para que a gente pudesse equalizar. Por exemplo, as empresas privadas tem 6 funcionários para cada ônibus – cobradores, motorista, mecânico, lavagem, tudo. A Carris tem melhor inclusive, tinha 5,48. Aí tu pega a parte administrativa, manutenção e ela tem 298% a mais que a empresas privadas. Ela licita ônibus, não compra, não negocia com o vendedor. A Carris tem cinco oficinas montadas. Um custo de 200% maior que as outras empresas em manutenção.
Houve um período dentro da companhia que o Ministério Público do Trabalho e a Delegacia Regional do Trabalho concederam readaptação de motoristas e cobradores a varrer. Então essa pessoa que passou num concurso para trabalhar de motorista, alegou incapacidade de conduzir o ônibus, houve determinação que ele não fosse mais motorista e a companhia não pode demitir o cara. E este cara está lá parado. O último dado que eu tive tinha quase 300 pessoas entre motorista, cobrador, mecânico, que estavam sem função dentro da companhia.

A queda no número de passageiros gera um ciclo vicioso em relação aos aumentos das passagens. Como fazer o passageiro voltar a andar de ônibus?
Tem que trabalhar na questão da área de estacionamentos da cidade. As pessoas estão usando mais o automóvel. Tu tem que criar algumas restrições para o automóvel, por isso falo em taxação de estacionamento no centro.
Mas o estacionamento no Centro já não é caro?
Ele tem que ser mais caro, na minha opinião. Ele paga lá um ISS, que é irrisório, tem que colocar um imposto específico, para que este recurso venha para o sistema de transporte. E tem que racionalizar o sistema, tem muito ônibus que anda vazio.
Tu és favorável à retirada do cobrador e o fim da passagem em dinheiro?
Sim, mas tu tem modelos hoje que mesmo não tendo bilhetagem eletrônica, tendo cartão de débito, tu pode fazer. Com a tecnologia, o cobrador passou a ser obsoleto e ele custa 20% da tarifa.
Agora, como ele está propondo ele tá dificultado a ação de tirar o cobrador porque tá colocando a obrigatoriedade da pessoa pagar a segunda tarifa. Tira a incentivo da pessoa ir até a loja da EPTC pagar a tarifa eletrônica. Então tá confuso o que o governo está encaminhando. Acabar com a segunda passagem não é condizente com a proposta de tirar o cobrador.
No momento, estás aposentado ou desempregado?
Não consigo me ver como aposentado. Estou desempregado. Continuo fazendo algumas coisas, continuo no Conselho Estadual de Trânsito (Cetran), dando algumas palestras, alguns cursos, mas nada assim de efetivo. Eu queria mesmo tirar um tempo. Devo voltar a faculdade no segundo semestre, fazer administração com ênfase em política pública. E vou continuar procurando emprego.
Queria que tu avaliasse tua maior conquista na EPTC e o que a tua gestão deixou a desejar.
Minha foi gestão foi sete anos, foi muito longa mesmo. A implementação do Plano Diretor Cicloviário foi uma grande vitória. Tivemos o grande desafio de ter a Copa na cidade, que deu muita experiência à equipe. Todas as licitações, do transporte público, de táxi acessível e linhas de lotação, foram feitas por técnicos da EPTC, nunca aceitei contratar nenhum tipo de consultoria. Binários importantíssimos foram implantados na cidade.
A tecnologia que eu consegui trazer. Por exemplo a Nilo Peçanha, hoje tem um sistema de gestão defluxo em tempo real que custou um milhão e meio que é um modelo que equivale a duplicar a Nilo. Antes ela passava o dia engarrafada. Todo sistema de semáforos – 1200 esquinas semaforizadas – eu consegui recurso federal. As redes de sinaleira de Porto alegre eram através de linha telefônica dedicada, hoje é tudo fibra ótica, conectado a uma central. Além da implantação da segunda passagem gratuita, claro.
Eu gostaria de ter feito muita coisa
Algum tema em particular?
Eu gostaria de ter tratado aplicativos diferente. Na verdade eu fiquei conhecido como cara que perseguiu estes aplicativos, Uber, Cabify, 99… Houve uma certa resistência em ter uma lei que regulasse. Isso eu tratei mal na EPTC. Nos deveríamos ter sido mais ágeis, em buscar o que a população queria e quer. Devia ter sido muito mais ágil.
Sobre as ciclovias, o plano prevê mais de 400 quilômetros, foram implantados pouco mais de 40 km.
São 57km.
Não é pouco?
Bom, na verdade o plano diretor ele sugere, mas não foi feito projeto básico, projeto executivo, de que forma ciclovia vai ser alocada dentro da via. Então os 440 km são uma analise superficial indicando que isso é possível. O mais importante foi criar o modelo da contribuição dos empreendimentos para o projeto cicloviário, criamos o Fundo do Plano Diretor.
Como era tua relação com o Massa Crítica?
Tenho uma relação muito amistosa com o Massa crítica. Inclusive acionei eles no Ministério Público, eles me acionaram também, mas isso era natural. A gente discutia coisas importantes. Eu achava que eles deveriam ter um diálogo prévio. Não precisava pedir uma licença, nunca defendi isso. No começo eles até passam o trajeto, depois mudaram completamente. Fora isso, eu sou muito a favor do que eles fazem, porque chama atenção. Agora, eu não ia lá (Massa Crítica) pedalando porque eu ia ser vaiado o tempo todo, né (risos).

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