Matheus Chaparini
O cotidiano pesado de um dos maiores e piores presídios da América Latina pode agora ser conhecido através das grandes telas das salas de cinema do país. O documentário Central entra em cartaz nesta quinta-feira.
Foram mais de 200 horas de gravação, ao longo de três anos, entre 2013 e 2016. Para possibilitar o filme, a equipe teve que enfrentar dificuldades de acesso ao presídio e tentativas, de todas as partes, de influenciar no direcionamento do documentário.
A administração do presídio quer mostrar as melhores galerias, onde ficam abrigados poucos presos, em melhores condições. Aos presos, interessa denunciar as condições a que são submetidos no sistema prisional.
Já para os líderes de facções, não interessa mostrar a superlotação das galerias: quanto mais presos, maior o ganho da facção. Um documento da facção Os Manos encontrado pelo Ministério Público recentemente definia em R$ 200 mensais o pagamento por preso.
Os diretores do documentário chegaram a se reunir com os 26 chefes de galerias do presídio. Outra reunião foi realizada com os quatro principais líderes de facções dentro do Central para negociar a viabilidade do filme.
Além de entrevistas com presos, especialistas e profissionais que lidam com o sistema carcerário, o filme traz entrevistas conduzidas e gravadas pelos próprios presos. Não se trata apenas de uma opção conceitual, mas de um imperativo da situação: “Nas galerias ninguém entra, nem jornalista, nem juiz, nem polícia”, afirma a diretora Tatiana Sager.
A estreia vem em um momento adequado. No início deste ano, uma série de rebeliões em diversos presídios brasileiros colocou a situação do sistema carcerário na pauta do dia. Mais recentemente, a descoberta de um túnel para uma fuga em massa, fez do Presídio Central notícia em todo o país. Antes disso, o presídio havia ganho projeção nacional em 2008, quando foi considerado pelo Congresso Nacional como a pior casa prisional do país.
O documentário já foi premiado em festivais e teve sessões de pré-estreia no Rio de Janeiro e São Paulo, onde lotou as salas. Além destes convidados, apenas um grupo de pessoas teve o privilégio de conhecê-lo antes de entrar no circuito. Semanalmente, a diretora Tatiana Sager, apresenta o filme para menores internos da FASE, a antiga Febem. Ela estima que quase todos os internos tenham assistido.
A reportagem do Jornal JÁ conversou com a diretora Tatiana Sager e com o jornalista Renato Dorneles, autor do livro Facção Gaúcha, que inspirou o documentário. O livro trata do surgimento do crime organizado no Rio Grande do Sul e já havia originado o curta-metragem O Poder entre as Grades.
Tatiana é fotógrafa e cineasta e já trabalhou em jornais como Correio do Povo, NH e Pioneiro. Renato Dorneles é repórter de polícia há 30 anos, atualmente trabalha no Diário Gaúcho.
O filme acabou saindo em um momento que o contexto ajuda, né?
Renato: Pois é, as confusões com mortes em Manaus, Roraima e Rio Grande do Norte e o túnel aqui do Central, que foi assunto nacional, ajudaram bastante para que o filme se torne bem procurado. A gente percebeu isso bastante no Rio e em São Paulo.
Desde quando tu acompanhas o presídio Central?
Renato: Comecei a me interessar pelo assunto em 1987. Teve um motim e a partir daí se soube que estava sendo criada a Falange Gaúcha, uma primeira facção criminosa aqui no Sul. Pouco antes deste motim foi quando os assaltantes de banco resolveram se unir aos traficantes, copiado uma ideia da Falange Vermelha, que depois virou o Comando Vermelho. A união se deu dentro das cadeias. Estavam no Central o Vico, que era o maior assaltante de banco, e o Carioca, que era o traficante que dominava o Morro da Cruz.
Papagaio e Melara vieram em uma geração posterior?
Renato: Isso. O Melara já estava, mas nesta época era coadjuvante. Se falava no Melara por causa de um episódio de 1985 em que ele e o Celestino Linn mataram dois agentes penitenciários dentro de um ônibus para libertar um companheiro deles do assalto a banco. E nessa época ele já começava a mostrar que era bom de fuga, havia fugido da PEC.
O nome Falange Gaúcha eles usavam ou foi criado por ti?
Renato: As duas coisas. Os presos descreviam como uma falange, porque no rio ainda chamavam Falange Vermelha. Então eu disse que era uma espécie de Falange Gaúcha e eles também passaram a usar.
Essa organização que surgiu há 30 anos é uma das facções que ainda existem?
Renato: Ela se subdividiu e a sequência dela é a facção Os Manos, até porque foi o Melara que criou essa facção e era um remanescente da Falange.
Dá pra se dizer que Os Manos é a facção mais bem articulada hoje?
Renato: Sem dúvida. É a mais bem articulada tanto que ela já se afastou da guerra das ruas. Ela já está em um patamar mais elevado, mais próximo do PCC.
Eles se envolvem na política formal?
Renato: Já houve denúncias de eles terem eleito vereadores pelo interior. É um primeiro passo, eleger vereador, depois deputado. Hoje são basicamente três facções. Tem os Abertos, que é mais uma facção de presídio. É aberto porque é daqueles que não integram as demais facções. Hoje tem três principais: Os Manos, os Bala na Cara e a outra não é bem uma facção, é os Anti Bala, que é uma aliança entre quadrilhas.
Os jornais muitas vezes evitam dar o nome das facções nas notícias. Isso não desinforma?
Renato: Eu sou a favor do meio termo. Tu não pode publicar só por publicar, porque pode virar um marketing. Mas por outro lado, determinadas reportagens eu vejo como inevitável e aí há um exagero em omitir. Aqui acontece isso, mas no Rio e São Paulo é mais radical ainda. Tu vai dar uma entrevista e eles recomendam: não fala nome de facção.
Isso aconteceu contigo em entrevistas?
Renato: Sim, diziam que era uma política não falar em nome de facção.
Nestes 30 anos em que tu acompanha os presídios gaúchos, o que tu nota de mudanças?
Renato: Na década de 1990, dava mais de 30 mortes violentas por ano no presídio Central. Hoje, quando muito, dá uma ou duas. Lá dentro o crime se organizou. Cada facção cuida de uma ou duas galerias, ali elas mandam, ali elas faturam e não se envolvem com as rivais. Mas a regra só vale até o portão do presídio. E isso interfere até no número de assassinatos do lado de fora.
Outra coisa é a relação à administração do presídio. Antes era extremamente problemático, sempre tinha conflito, denúncias de tortura, agressões. A Brigada Militar foi amadurecendo esse tipo de conversa com a massa carcerária e hoje esses conflitos quase não existem. Isso através do sistema de plantões, onde um líder de cada galeria faz a intermediação.
E o jornalista na cadeia. Como é visto pelos presos? Não cai uma pecha de cagueta?
Renato: Há um certo respeito. Eles nunca reclamaram do meu trabalho. Teve só uma vez, que eu escrevi uma coluna dizendo que quem mandava nos presídios eram os presos e recebi de um advogado um manuscrito dos presos pedindo direito de resposta – depois eles desistiram e pediram para não publicar. Neste ponto eu senti um certo respeito.
Trabalhando com jornalismo de polícia não acontece de cobrir a prisão e depois encontrar a pessoa na cadeia ou na rua?
Renato: Acontece. No julgamento do traficante Carioca foi uma situação meio constrangedora mas depois eu dei risada. O Tribunal do Júri funcionava no Palácio da Justiça. O Carioca estava sendo julgado e do lado de fora tinha muitos policiais do Choque armados, esperando que os traficantes do Morro da Cruz invadissem para tentar resgatá-lo.
Quando eu entrei no Juri, ele me viu e fez um gesto de positivo. Todo mundo parou e ficou olhando, até o juiz. Eles pensaram: vão atacar agora!
Tem uma vista grossa por parte da fiscalização em relação à droga?
Renato: Tu imagina, são 400 numa galeria, tu não tem nenhum momento de individualidade. Isso não tem como não afetar o psicológico. Aí eles recorrem à droga para acalmar o preso. É o que diz um dos entrevistados: se não usar droga, o presídio explode, morre cinquenta por dia. Ele diz ‘proíbe entre aspas’. E o diretor da época disse ‘olha, eu não posso dizer isso porque vou estar cometendo crime. A gente tenta coibir, não vou dizer que conseguimos 100%’.
Eles têm essa consciência de que se eles cumprirem 100% esse trabalho e evitarem a entrada de drogas isso pode gerar uma situação ainda mais complicada?
Tatiana: A partir destes relatos acho que sim. E não tem como evitar. A corrupção existe, a coisa toda é maquiada e ninguém quer investigar exatamente. Quem é que vai querer chamar a atenção da sociedade se as lideranças de galeria estão ganhando em torno de R$ 500 mil reais por mês?
Renato: Teve um vídeo que conseguimos, da cheiração de cocaína no presídio em uma festa de natal. Eu publiquei o vídeo e as autoridades trataram como normal os presos cheirando cocaína lá dentro. Eles estranharam que o vídeo tivesse chegado até mim.
Um dos filmes brasileiros que mais repercutiu nos últimos anos foi o Carandiru. Por mais que seja ficção, é um livro sobre a história de um presídio baseado em um livro-reportagem. Vocês tiveram alguma preocupação de não ser tachado de Carandiru do Sul?
Tatiana: Não, nunca foi para nós referência. É um filme legal. Os próprios presos, quando estavam gravando brincavam ‘tem que fazer um filme tipo Carandiru.’ Mas ficção é uma coisa completamente diferente de documentário. Está mais para uma grande reportagem do que para um filme de ficção.
É o teu primeiro documentário?
Tatiana: Não, já dirigi dois outros curtas e agora fizemos o longa. Tem uma fala de um preso para o outro, ele dizia ‘a mulher aquela é cineasta e quer fazer um filme. De certo ela vai fazer um curta, aí se der certo vira um filme’. A gente brinca que deu certo e virou filme.
Central, o filme: a rotina na pior prisão do Brasil
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