Elenco e equipe técnica do filme conversou com a imprensa em Bento Gonçalves, onde acontecem as filmagens (Foto: Naira Hofmeister/JÁ)
Naira Hofmeister
Saneamento Básico, o filme, é explicitamente político, tema que em outras obras de Jorge Furtado aparecia com menos destaque. Militante histórico do PT, o diretor viu Lula chegar ao poder com o apelo da mudança e não atender à expectativa criada. Viu dinheiro ser desviado para o bolso dos poderosos enquanto o povão amargava na fila no INSS, e se perguntou qual o valor da arte num país onde não há dinheiro para obras básicas.
Resolveu transformar as inquietações em arte. Trabalhou dois anos no roteiro de Saneamento Básico, o filme, quarto longa-metragem de sua carreira. Concentrados num hotel em Bento Gonçalves há cerca de um mês, elenco e equipe técnica pararam as filmagens no sábado à noite, 6 de agosto, para conversar com a imprensa.
Obra de tratamento de água funciona como metáfora da colisão entre cultura e necessidades essenciais (Fotos: Divulgação/JÁ)
Saneamento Básico, o filme, narra o envolvimento de uma pequena comunidade no interior do Rio Grande do Sul com a obra do esgoto local. Os moradores de Linha Cristal ouvem da sub-prefeitura da cidade que não há verbas disponíveis para sua realização. Em compensação, o Governo Federal liberou R$ 10 mil para o desenvolvimento de um filme, dentro de um projeto de incentivo à produção cultural em cidades pequenas, que não recebeu nenhuma inscrição.
Em comum acordo com a primeira-secretária, a comunidade decide fazer um vídeo sobre a obra de canalização do Arroio Cristal, para utilizar a verba na construção. No entanto, ao longo da produção, os moradores vão sendo surpreendidos pelo envolvimento com o vídeo e repensam seus critérios de julgamento, tendo que decidir entre finalizar o curta-metragem ou a obra de saneamento básico.
“A política sempre foi uma preocupação minha e, se esse filme tem uma tese, é um pouco esse paradoxo entre o registrar e o fazer: arte ou transformação real? Sempre existe uma contradição nos países subdesenvolvidos sobre o investimento na cultura. Como um país que não tem saneamento básico vai fazer cinema? Mas claro que essa é uma contradição boba: é preciso fazer tudo ao mesmo tempo”, opina Furtado.
A ironia política
Mesmo assumidamente mais politizado, Saneamento Básico, o filme, ainda intercala a crítica com uma história um tanto ingênua, como em suas produções anteriores. O diretor acredita que é fruto do inconsciente coletivo, que o roteiro apenas reflete uma vontade pública de tratar a questão: “Tem uma frase do Jorge Luiz Borges, que diz que o autor não deve interferir excessivamente na sua própria obra. Os gregos já sabiam disso, o escritor é apenas a manifestação de uma voz que ele desconhece. O meu primeiro impulso eu tento deixar, não julgar moralmente”, explica.
Jorge Furtado dirige Camila PItanga, que encarna Silene na trama
Furtado faz questão de salientar que, ao contrário do que nos faz crer a mídia, sua angústia com os rumos do país não se restringem ao governo Lula: “Minha memória é muito boa: os recentes acontecimentos políticos não têm nada de recente. Infelizmente no Brasil, a história de desvio de dinheiro público é muito antiga. Pero Vaz de Caminha, na carta dele, pede emprego pro príncipe. Quer dizer: o Brasil começou já assim, né?”.
O comentário é um misto de bom humor com ironia, e o filme que dele resultou não será diferente: “Saneamento Básico tem essa qualidade de ser uma comédia ingênua e ao mesmo tempo, um filme terrível”, atesta Fernanda Torres, uma das protagonistas da trama.
A idéia de manter-se na linha cômica levou Furtado a buscar na tradição da Commedia dell’Arte os arquétipos das personagens. “O interessante do teatro da Commedia dell’Arte é que sobreviveu durante séculos com seis, sete personagens, com os quais é possível realizar toda a dramaturgia necessária”, explica.
Fãs assumidos do trabalho de Furtado, os integrantes do elenco, composto majoritariamente por estrelas da televisão brasileira, confessaram o envolvimento com o sistema de trabalho da técnica clássica de teatro. “A Commedia dell’Arte faz com que em muitos momentos a gente se sinta como uma trupe de teatro, essa estrada nos proporciona o companheirismo, um sentido de entrega para o trabalho”, descreve Bruno Garcia.
Camila Pitanga concorda com o colega. “Muito do tom da interpretação acontece por estar no meio desse grupo, observando. As cenas de grupo me ajudaram a encontrar esse tom cômico, que não é de uma comédia rasgada, mas de uma comédia áspera, ácida, com temas críticos”. Já Fernanda Torres tem uma impressão mais pessoal sobre as filmagens: “A minha mãe estava grávida de mim, quando fez um trabalho com Commedia Dell’Arte, isso me tocou profundamente”.
Além dessas duas características, o diretor inova também na narrativa: esse será seu primeiro filme que não tem off, o narrador, e nem um personagem central. “Os três outros longas erram narrados por um protagonista masculino, que tinha como objetivo conquistar a mulher amada. Isso é meio impulso de escritor: saía escrevendo sempre na primeira pessoa”.
A linguagem tradicional do dramaturgo também será alterada pela parceira com Jacob Solitrenick, que assina a fotografia de Saneamento Básico. “Jacob é excelente fotógrafo e um grande câmera. Em quase todo o filme utilizamos película em 16mm só em planos mais abertos que a gente usa 35mm”, revela.
Com um orçamento considerado baixo para o cinema – R$ 5 milhões entre produção montagem e distribuição – a película não tem cenas gravadas em estúdio: “Optamos por fazer tudo em locações, que acaba sendo um super-personagem: em qualquer lugar se acha um enquadramento diferente, uma iluminação bacana”.
A arte da mudança
No enredo de Saneamento Básico, Marina, vivida por Fernanda Torres é a líder comunitária que pressiona a prefeitura para que inicie a obra. “Na verdade, ela quer resolver sua vida pessoal com o esgoto, já que o marido tem uma micose que não se sabe se é resultado do esgoto ou de uma pulada de cerca”, conta Fernanda. “Com o passar do tempo, Marina se torna a principal responsável pelo desvio das verbas da obra para o filme”, ri. Wagner Moura faz Joaquim, cuja “melhor definição é ser o marido da marina”, brinca o ator.
O casal protagonista é vivido por Fernanda Torres e Wagner Moura
Filha de Otaviano, vivido por Paulo José, Marina é o oposto da irmã mais nova, Silene, encarnada por Camila Pitanga. “Ao contrário da irmã, que é idealista e empreendedora, a Silene, é empreendedora para si mesma, ela quer o sucesso, e vê no filme a oportunidade de ir embora daquela cidade”.
Outro que quer subir na vida e utiliza a produção como escada é Fabrício, papel vivido Bruno Garcia. Assim como Lázaro Ramos, que da vida à Zico, Fabrício entra na trama em função da necessidade técnica da produção.
O curioso nas personagens, segundo seus intérpretes é que, se no início da história, cada um adere ao projeto do filme por uma razão pessoal, o destino vai fazer com que se envolvam com o curta-metragem. Dessa relação com a arte, surgem finalmente as respostas que procuravam.
Otaviano, um homem duro e que esconde suas emoções, se redime: “O mais importante momento, é quando ele chega para filha, chora e reconhece que ela fez uma obra, e a parabeniza, com muita emoção”, lembra Paulo José.
Paulo José é um dos destaque do elenco, no papel de Otaviano, um velho rabugento
“Mesmo sendo uma comédia, o filme não debocha dessas pessoas. Talvez se eu tivesse naquela cidade, naquele lugar, teria os mesmos erros e tropeços que essas pessoas. É bom rir da gente mesmo e do patético”, diagnostica Camila Pitanga. Fernanda Torres adota a mesma linha: “Acredito que o amor é a única revolução que falta fazer, porque já se esgotaram as crenças na política, na religião. E eu acho que o filme é sobre isso”. “O bonito do filme é que fala de vidas transformadas pela arte”, resume Wagner. Furtado, poeticamente, finaliza com uma frase de Dostoievski: “A beleza salvará o mundo”.
Se a arte tem poder maior do que a política para transformar uma realidade, talvez o novo filme de Jorge Furtado faça as platéias refletirem. Mas que, no Brasil, ela depende praticamente de incentivos políticos, o próprio filme é testemunha: Saneamento Básico só se realizou graças à Petrobrás, que bancou, através de uma premiação, os R$ 3 milhões que o projeto necessitava para sua produção. A distribuição, a cargo da Columbia do Brasil já tem previsão de R$ 2 milhões investidos. A data de estréia do longa, no entanto, ainda não está definida.
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