Francisco Ribeiro
Aos 86 anos o professor, escritor e tradutor, Donaldo Schüler, lança o seu mais novo trabalho, Literatura grega: irradiações (Ateliê Editorial). Trata-se de um ensaio de quase 300 páginas sobre a literatura oral e escrita da civilização fundadora daquilo que entendemos por Ocidente. Tradutor de James Joyce, Schüler sintetiza, sem perder profundidade, a influência de uma literatura que se espraiou pelo mundo, e cujos traços são encontrados na poesia, no romance, no teatro, e até em prosaicas cantigas folclóricas gaúchas como o tatu e a chimarrita. Ou na prosa de escritores brasileiros como Erico Verissimo e João Guimarães Rosa, autores que assim como Homero também são grandes contadores de histórias.
Schüler, um excelente scholar, sabe que mexer na mitologia e na literatura grega pode transformar-se num interminável entreabrir de gavetas de narrativas que se interligam umas as outras. A começar pela Teogonia, de Hesíodo, e suas histórias de deuses, semideuses e suas relações com os mortais, como os personagens de Homero, reais ou fictícios, meros joguetes dos caprichos dos filhos de Zeus. Na lógica da época de Homero o homem, por mais que tente, não foge ao seu destino, já previamente traçado, trágico na maioria das vezes. Cobiça e vingança são os grandes motores.
O que não impediu o surgimento de histórias e aventuras incríveis, como aquelas descritas na Iíiada e na Odisseia. Da primeira, as inesquecíveis proezas de Aquiles, algoz de Heitor, o não menos nobre e valente príncipe troiano, irmão de Paris, o raptor da bela Helena. Tróia, reino de Príamo, e das mulheres Hécuba, Andrômaca, Cassandra, personagens que ganharam protagonismo e vida complexa na dramaturgia. Também extraordinárias são as histórias contidas na Odisséia, vividas por outro herói da guerra de Tróia, o ardiloso Ulisses, na sua longa volta pra casa. Narrativas seminais, fontes de inspiração para o teatro grego clássico de autores como Eurípides e Sófocles. Uma dramaturgia poderosa cujo legado fará sentir-se nas línguas e nas penas de William Shakespeare e Jean Racine, e do nosso Nélson Rodrigues. São irradiações da cultura e da língua de um povo que há três mil anos chama o sol de hélios.
Ítaca, a ilha, reino de Ulisses. Lugar mágico, a referência que não o faz perder o sentido de sua vida, voltar ao lar onde está sua mulher, Penélope, e o filho, Telêmaco. Perspectiva que lhe que faz recusar a generosa oferta de imortalidade e juventude eterna prometida por Calipso. Ulisses, mesmo no paraíso, chora no rochedo, diante do mar, de saudade de casa. Se o lamento, falsamente impotente, é uma espécie de resistência, naquela recusa estaria, segundo o filósofo francês Luc Ferry, a origem da filosofia, a procura de uma sabedoria laica.
E filosofia é o que não falta no ensaio de Schuler. Dos pré-socráticos a Platão, Aristóteles, até os modernos Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre. Deste último, protótipo do intelectual engajado, as perguntas: por que escrevemos? E para quem escrevemos? Questões que estão na gênese de Literatura grega: irradiações, e que Donaldo Schüler partilha com os leitores nesta exclusiva entrevista ao JÁ.
JÁ – Quando surgiu a idéia de escrever este livro?
DS – Trata-se de uma reflexão antiga. Eu comecei a lecionar em 1964. Foi um período, até 1968, mais ou menos livre, de muita agitação no teatro e na universidade. Mas, com o Ato Institucional Número 5 (AI-5) as coisas começaram a mudar. Dava-se ênfase na época à função social dos cidadãos. Então, indaguei-me qual seria a minha função social como professor de literatura grega. Na verdade a Grécia funda o Ocidente. De certa forma somos todos helenizados por causa desta herança grega, forma de pensar e de refletir. E com a globalização, na medida em que os povos forem se ocidentalizando, entra em vigor também este modo de pensar grego.
É um livro para iniciados?
Cabe a pergunta de Sartre: para quem você escreve? É um livro para todos. Não se trata de um trabalho dirigido a especialistas com um vocabulário, jargão, que só eles entendem. Procurei escrever de uma forma bem acessível. Mas isto não deve prejudicar os problemas que são colocados em discussão. Quero me comunicar com pessoas que têm a mesma preocupação, refletir sobre a narrativa. É um convite para aqueles que querem conversar, debater.
Como a literatura grega se reflete no Brasil?
Na grande literatura, Machado de Assis, por exemplo. Mas também percebi o reflexo dela em alguns dos meus trabalhos, examinando a poesia feita no Rio Grande do Sul, nas cantigas do nosso folclore como as do tatu e da chimarrita, cujos modelos vieram da Europa, mas se desenvolveram autonomamente aqui. Letras do tatu falam de um sujeito marginalizado que luta para sobrevivência e que conta as suas dificuldades aos que passam. É um herói popular. A Ilíada e a Odisséia têm uma mesma origem. Uma literatura oral que depois vai se tornando escrita. Também tem muita semelhança com o sistema métrico que se encontra no cordel nordestino. Algumas das narrativas têm características épicas. A gente percebe esta poeticidade épica que nasce do próprio povo. São esses os fenômenos que, uma vez refletidos, permite o estabelecimento de relações, semelhanças.
O tempo e o vento, romance do Erico Veríssimo, caberia em algum canto de Homero?
Claro. Em 1948 estava em discussão temas que envolviam, por exemplo, o contador de histórias e o sujeito que trabalha com a palavra. João Guimarães Rosa versus Clarice Lispector, ela com o novo romance francês – gente como Alain Robbe Grillet – que não contava mais história. Muitos passaram a desprezar o contador de histórias. Érico Veríssimo dizia que era um contador de histórias. Era autêntico. Cheguei a falar com o Erico sobre isso. E ele ficou do lado de Ulisses, como um contador de histórias. O mérito dele é esse, escreveu uma história da qual não existe documentos. O início de O tempo e o vento é puramente ficcional, mítico, é Homero. Nós nos reconhecemos naquelas origens que são puramente ficcionais. Um passado puramente inventado.
O mesmo ocorre com a Ilíada e a Odisséia, muitos lendo como se fossem fatos históricos.
Isso é um problema milenar. Eu poderia dizer que toda a História é ficção. Essa coisa, a partir do século XIX, quando nasce a historiografia, de narrar às coisas como elas efetivamente o são, isso não acontece. Trata-se de uma questão de perspectiva, tese, de escrever algo diferente. Não se deve fazer diferença entre o mito e uma sociedade científica como a nossa. O Claude Levi – Strauss, antropólogo, já escreveu sobre isso. Ele disse que os homens são racionais desde o momento em que apareceram. Esta é a característica principal do Homo sapiens. Pode-se voltar para as cavernas, 40 mil, 50 mil anos atrás e verificar que há representações de gente que pensava.
E que ficcionava?
Exato. Historiografia? Ora, fora Homero, naquela época, não existe nada. O que se tem de importante, enquanto narrativa? A luta do homem contra as suas dificuldades. Nisto eu me encontro. Agora os fatos, ele pega banalidades e as transforma.
Heródoto, o pai da História, faz a mesma coisa. Dá pra dizer que ele, sobre a guerra do Peloponeso, escreve um romance histórico para os padrões de hoje que, tecnicamente, aproxima-se de Guerra e Paz, do Tolstoi, que também pega fatos históricos e ficcionaliza. Hoje valorizamos muito a verificação. Deixamos de nos exprimir e isso põe em risco a nossa humanidade. Espero que um astrônomo, por exemplo, diante de um universo, talvez, de bilhões de galáxias, narre-o de um jeito que eu possa participar. E não com cálculos matemáticos que jamais possa decifrar.
O sr é muito familiarizado com a obra de James Joyce, tendo, inclusive, traduzido Finnegans Wake. Neste seu ensaio há referências a Guimarães Rosa. Ele seria uma espécie de fusão entre Homero e Joyce?
Rosa numa entrevista disse que não conhecia James Joyce na época em que escreveu o Grande sertão: veredas. Mas têm aproximações flagrantes. Tem a questão da época, das vanguardas, do contato, através do modernismo brasileiro, com autores como Joyce, Ezra Pound. Quer dizer, mesmo que não tenha havido contato direto, lido, vivia-se na época, sentia-se as coisas de uma determinada maneira. E ele, certamente, não ficou imune.
Uma das indagações, hoje, é sobre o desaparecimento da narrativa.
Em seu lugar entrou os dados e, com a internet, milhões deles. Muita gente, principalmente os jovens, anda na rua com um aparelho na mão, e o que recebem? Dados. As pessoas não conversam mais, recebem informações pelas redes sociais, e que acabam se atrapalhando pela abundância. Se não tomar cuidado, elas apenas passam de imagens a discursos soltos que não se conectam uns com os outros. A narrativa serve justamente para ligar uma coisa à outra. Quem fez isso pela primeira vez no ocidente foi Homero. Arte de narrar é o que estamos fazendo agora, conversando. A narrativa popular começa aí, quando um grupo de pessoas se reúne em torno da fogueira e começa a contar coisas que são reelaboradas, que são únicas. Enfim, nós não somos unidos pelos dados, que atrapalham, mas pelo discurso, pela palavra. Nosso problema é o excesso de informação. Os teóricos também estão refletindo sobre a sociedade do cansaço.
Como assim?
Pense no homem em geral. Somos uma sociedade do cansaço. Por quê? A sociedade atual, de mercado, é de competição e estabelece metas cada vez mais elevadas, sempre superiores ao que o indivíduo pode realizar. E a robotização pode chegar a um ponto tal em que o homem seja eliminado. Estamos todos nivelados nesta situação. Chego em casa, cansado, e sento na frente do televisor e fico recebendo imagens até dormir. Seria melhor sentar, tomar um chimarrão e conversar. Esse foi o ponto de partida desta literatura grega que atingiu tal requinte.
O chimarrão?
(risos) Não, a conversa.
Mas tinha o vinho, o fogo, pão e azeitonas. Muito bom, assim, poder sentar e deitar conversa fora, filosofar e depois escrever, construir narrativas – misturando deuses, mitos e homens – que serão lembradas através dos tempos, como os feitos de Aquiles e, principalmente, da viagem de Ulisses..
Isso, encontrar a nossa Ítaca. O ócio contra o negócio. Não podemos deixar que o negócio nos destrua. Qual o sentido da vida de um indivíduo que luta para sobreviver? Fazer algo para o qual uma máquina ainda não foi inventada? Como me humanizo? Diante da minha mulher, dos meus filhos, netos, amigos, etc. Mas, note-se bem, não sou um saudosista. Meu melhor momento é este. Se exige de mim que eu reflita o momento que estou vivendo. Não posso negar as vantagens da Internet. Mas devo saber o que fazer com isso. Tempos atrás eu precisaria ir para Londres consultar livros que só existiam lá. Hoje com o computador tenho acesso a tudo.
Exceto a imortalidade, a sociedade de consumo tenta nos oferecer o mesmo que Calipso a Ulisses.
Fazemos isso via academia de ginástica, remédios, cosméticos, cirurgias. Uma luta pelo rejuvenescimento. Ulysses, mesmo no paraíso, escolhe a dor, a morte. Isso é uma advertência para quem busca o paraíso: por quanto tempo agüentaríamos viver nele? A morte nos estabelece o limite dentro do qual nós vivemos. Nós somos a única espécie animal que conhece a morte, É um conhecimento, vou desprezar isso? Chegamos a Heidegger que no Ser e tempo fala que vivemos para a morte. Escrevi um livro de quase 300 páginas, este, e que poderia ser de três mil se vivesse mais 50 anos. Também é preciso aceitar a idade que se tem. Nasce-se todos os dias. E a cada dia se é outro. Enfim, tenho 86 anos pela primeira vez na vida. É uma descoberta. Não dá pra ficar pensando no que seria se tivesse 40. Ou querer procurar profissionais que reduzam até 60. Repito, não tenho nenhuma saudade. Meu momento é este, agora, com todas estas confusões.
E também não é preciso levar os gregos tão a sério, não é?
Não. Fazem piadas sobre eles próprios, críticas a sua própria cultura. Numa viagem a Grécia, o nosso guia, cuja mãe era espanhola, contava o seguinte causo, umas das diferenças entre a igreja ortodoxa grega e a católica romana. Na ortodoxa as noivas têm que casarem virgens. Se aparecer uma noiva que não é virgem ela tem que dar uma volta em torno da igreja para cada homem que transou. Tem noiva que fica correndo em torno da igreja. Aí os convidados ficam com pena dela e emprestam uma bicicleta. Isto é fantástico, Homero puro, e nos conduz a Zorba, o grego que, apesar de toda aquela desgraça, consegue dançar.
Donaldo Schüler e a literatura que moldou o Ocidente
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