Felipe Uhr
A defensora Luciana Artus Schneider, desde abril de 2016 é dirigente do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (Nudeam-DPERS). Ela recebeu o jornal JÁ para falar sobre a falta de políticas públicas habitacionais e sobre as desocupações que, na sua visão, estão cada vez mais desorganizadas.
Qual é o déficit habitacional hoje em Porto Alegre?
A moradia é um direito constitucional social que está no artigo sexto da Constituição lado a lado com saúde e educação. Quem tem direito a moradia? Todo mundo. A constituição garante, não só para quem é hipossuficiente financeiramente. Déficit habitacional é quando pessoas que não tem onde morar, mas não se trata necessariamente de moradores de rua. Pode ser quando, com muito sacrífico, pessoas estão pagando um aluguel. Ou quando em um determinado lugar vive uma família com 10 pessoas onde ali há um pai ou um vô que não consegue alugar um local para si.
A par disso nós temos que pensar em políticas públicas para suprir esse déficit. Não tem como o município dar moradia a todos, então para quem ele vai dar? Para quem não tem condições. Aqui, em Porto Alegre, registrado formalmente pela Prefeitura foi feito um cadastro através do Programa Minha Casa Minha Vida realizado em 2009 no Mercado Público. Como foi feito? Havia um cadastro, onde todo mundo que precisava de casa chegava ali e se cadastrava. Nesse cadastro, foram incluídas 50 mil pessoas, foi quando o município se assustou com esse número e congelou o cadastro. Desde lá pouco mais de 2 mil famílias foram encaminhadas para moradia popular. Se imagina, hipoteticamente falando, que se esse cadastro fosse reaberto, ultrapassaria hoje 250 mil famílias.
Mas esse cadastro não foi aberto para pessoas da Região Metropolitana?
Em tese, a pessoa deveria apresentar comprovante de residência em Porto Alegre…
Qual avaliação das políticas públicas realizadas de lá para cá pelo Estado?
O que existe em Porto Alegre e nos municípios do Rio Grande do Sul é uma falta de planejamento nesta área. É uma falta de política pública a curto e a longo prazo. O que existe é o município administrando recursos do Minha Casa Minha Vida, que são poucos, e cada vez menores. Qual é a política do município? É, a gente vai dando um jeito da maneira que as coisas vão acontecendo. Não existe se quer um diagnóstico. Existe um cadastro que foi fechado e não foi reaberto pois não se sabe o que fazer com ele.
E qual foi a atuação do Governo do Estado nesse período?
O Governo Estadual tem políticas de regularização fundiárias voltadas para terra do Estado ou terras devolutas. Por exemplo, há em Santa Maria umas terras ocupadas por muitas pessoas, o Estado tem feito a regularização fundiária desses locais mas a política pública de moradia é de responsabilidade do município.
Não poderia haver uma atuação das três esferas (Municipal, Estadual e Federal) em relação à moradia?
A Constituição Federal distribuiu competências. E aqueles assuntos destinados ao Município ficaram apenas para o Município resolver. Como? Com repasses de verbas do Estado e da União. E assim tem que ser porque eu não posso admitir que o Estado ou a União façam o regramento único que não se adapte a realidade de cada município.
Segundo o MP, teriam mais de 40 mil imóveis vazios em Porto Alegre? É o que nos chamamos de vazios urbanos e eles não estão atendendo a função social da propriedade. Existe na constituição uma regra que orienta os municípios mas isso não ocorre na prática. É o IPTU progressivo. Por exemplo, se você tem um terreno no centro que não atinge sua função social, hoje o IPTU dele é de 2%, ano que vem vai ser de 10% no outro 20% do valor venal do imóvel. Em 10 anos atinge o 100% e ele vai ter o perdimento daquele terreno para que o município utilize em pró de moradia popular. Isso teria de ser feito através de legislação municipal que hoje não existe aqui, em outras cidades sim. Por questões políticas isso ainda não foi regulamentado em Porto Alegre.
O que determina se um imóvel cumpre ou não sua função social?
Como eu te disse, não existe um diagnóstico profundo sobre habitação em Porto Alegre. Se imagina 40 mil imóveis, quase 10 mil na região central, mas isso é hipotético. Realmente, não basta o prédio estar vazio. Por exemplo, este prédio do Hotel Açores (ocupado desde julho pelo Lanceiros Negros), ele foi diagnosticado pelo movimento como um espaço que não estava cumprindo sua função social. Ele não tinha nenhuma placa de vende-se ou aluga-se na frente do imóvel por exemplo. Ele estava desocupado há muito tempo o que indicava que ele estava abandonado. Claro, com a ocupação do prédio, as donas do prédio estão tentando comprovar que isso não é verdade, que o imóvel estava à venda, mas tudo isso é uma questão de prova. Se houve comprovação, é outro caso. Mas por exemplo o prédio em que estava os Lanceiros Negros anteriormente, num prédio do Estado abandonado há 10 anos. Quando houve a ocupação, o Estado disse que já tinha uma destinação para aquele imóvel. Outro exemplo, a Ocupação Mirabal que ocupa um prédio na Duque, que é do Movimento Salesiano do Colégio Dom Bosco, ele estava há três anos desocupado e quando houve a ocupação o colégio alegou que tinha um projeto para ele em março. Quer dizer essa história vem muito depois que é feita a ocupação que é realizada para chamar atenção da existência de um vazio urbano. As ocupações estão começando a ter uma outra função que é trazer essa discussão pra sociedade: “Esse prédio não estava sendo usado, então usem”.
Há diversos movimentos de ocupação mas pelo menos dois tipo de ocupação, os que estão no centro e o que hoje estão nas zonas mais afastadas. Quais as diferenças?
Então, nas periferias existem ocupações que são apoiadas por movimentos sociais organizados mas não é regra. Aqui no centro, a Mirabal, a Saraí e os Lanceiros Negros são ocupações muito bem organizadas que visam principalmente chamar atenção dos vazios urbanos, do déficit habitacional e de uma discussão para que sejam realizadas políticas públicas voltada a habitação popular. As ocupações periféricas, em regra estão voltadas exclusivamente para moradia. São pessoas que não tem onde morar e que ocupam um terreno vazio, ali constroem sua barraca, depois uma casinha e vão se estabelecendo naquele lugar. É o que a gente chama de ocupação consolidada. São ocupações que estão em terrenos públicos ou privados por 5,10, 15 ou 20 anos pois não tinham onde morar. Ninguém mora em ocupação por que quer não é bom morar em ocupação.
Existem por volta de 500 ocupações irregulares na cidade, muitas em processo de regularização…
Bom, hoje há uma nova legislação que trata da ocupação do solo urbano, entrou em vigo há 2 semanas ela é resultado de uma Medida Provisória, a 759, que já vinha tramitando há quase um ano e que trás novos institutos que falam da legitimação da posse , da regularização fundiária e que o objetivo maior é regularizar aquela ocupação onde está, pois há também um contexto histórico de trabalho e de apego a região. Já se viu que tirar as pessoas de um lugar e acomoda-las elas em outro são políticas falidas. Um exemplo disso são os empreendimentos Minha Casa Minha vida lá no extremo sul da cidade, na restinga, hoje tomados pelo tráfico e as pessoas foram expulsas. Regularizar uma ocupação onde ela está seja em uma área pública privada é sempre a alternativa que tem mais chance de dar certo que em tese é melhor pra todo mundo e é uma diretriz trazida por essa nova legislação. Essa legislação prevê a regularização de uma ocupação consolidada, que hoje não tem tempo determinado, ela pode estar há dois anos ali. É preciso analisar a condição de cada ocupação. Por exemplo, a Romeu Samarini (Ferreira), as pessoas compraram em uma imobiliária os terrenos, estão morando lá há 20 anos. Compraram de gente que estava fraudando, foram pessoas enganadas mas que compraram aqueles terrenos. Aqui, em Porto Alegre, a Procuradoria do Município , por meio da PARF (Procuradoria de Regularização Fundiária) faz regularização de ocupações consolidadas e já faz há muito tempo. No ano passado eles ganharam o prêmio Inovare por esse projeto de regularização fundiária. A nossa luta é que se amplie esse programa, inclusive para que haja regularização em cima de terrenos particulares já que essa é uma política voltada pra terrenos públicos.
De que forma a Defensoria Pública avaliou a reintegração de Posse da ocupação Lanceiros Negros realizada em junho deste ano.
A reintegração à força é sempre a última alternativa, ela tem de ser evitada a todo custo porque ela sempre vai ser danosa mesmo que de tudo certo e nessa dos Lanceiros deu quase tudo errado. Depois dessa experiência frustrada, a Defensoria em conjunto com o Ministério Público elaborou uma recomendação para cumprimento de reintegração de posse forçada. E a gente mandou para o Comando da Capital ( CPC) e para os outros órgãos participantes. A primeira questão que a gente recomenda é a realização de uma reunião preparatória, onde todos os atores vão ter que estar presentes, inclusive com o juiz que deferiu essa liminar de reintegração de posse. Os ocupantes também deve estar presentes pra pensar junto de como isso vai acontecer na hora. O conselho tutelar, o promotor de justiça, o defensor público, enfim todos os atores. Outra coisa importante, os ocupantes devem ser previamente avisados da data e horário do desalojamento. A remoção não pode ser cumprida no período noturno, isso é inconstitucional. No inicio do processo de remoção deve ser informado ao Conselho Tutelar a presença de crianças, porque geralmente tem. Tem de ter um plano de atendimento médico para idosos, portadores de deficiência e doentes. A atuação da polícia deve se restringir à proteção e segurança dos oficiais de Justiça e dos ocupantes. Os policiais envolvidos devem estar devidamente identificados pelo nome, eles não estavam no dia da Lanceiros. Tem que ter um contingente de policias do sexo feminino, não pode ter só homens. Tem que ser respeitada a integridade psíquica, física e patrimonial dos desalojados. Se houver resistência, na hora da desocupação, as pessoas que participaram da reunião preparatória tem ser chamadas para uma negociação pacífica. Esse negócio de pé na porta não dá certo, isso é uma violação dos direitos humanos.
Houve uma resposta sobre essas recomendações?
Eles receberam… A gente está fazendo uma interlocução entre as instituições para que essa demanda seja atendida.
Essa decisões judiciais (das reintegrações) são vista de que forma?
Referimos isso para o Judiciário, que era preciso trazer o Município e o Estado para dentro da discussão através de uma audiência de mediação sob pena de nós seguirmos de reintegração em reintegração cada vez mais danosas porque as ocupações vão se adensando, tornando as operações mais forçosas. É uma matemática que não fecha. As pessoas não são fumaça, elas não vão desaparecer, depois da reintegração elas irão pra outro lugar. Enquanto não houver uma politica pública de moradia é um problema que vai seguir necessitando de uma solução. O judiciário, aqui do Rio Grande do Sul, já foi de vanguarda, nessa questão de judicialização dos direitos fundamentais sociais. Têm decisões paradigmas aqui como na questão da saúde e de educação, como a de vagas em creche e que valem para todo Brasil. E a gente vê um movimento contrário quando ele analisa o direito social à moradia. Há um retrocesso nas decisões que tendem a ser as mais gravosas no país. Essa questão da moradia não tem sido encarada pelo judiciário em todos os seus aspectos. A propriedade privada tem prevalecido absolutamente em relação a função social da propriedade.
"Falta um diagnóstico profundo sobre questão habitacional em Porto Alegre"
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