Flávio Tavares: "Venci o vício, mas não curei"

Flávio Tavares, natural de Lajeado, veio para a Capital aos 15 anos a fim de concluir estudos. Não demorou a escrever para os jornais e só manteve-se afastado das redações enquanto esteve preso. Hoje, aos 83 anos, confessa que é muito difícil largar o vício do jornalismo.
Cleber Dioni Tentardini *
Como foi seu começo no jornalismo?
É preciso que se diga que eu nunca pensei em ser jornalista. Comecei duas faculdades, de Direito, na PUC, e de Biologia, na época se chamava História Natural, na UFRGS, e formei em Direito em 1960.
Estudou com Ludwig Buckup?
Não, ele já estava terminando o curso quando entrei. Meu amigo, sujeito fantástico. Quando estudante, ele foi preso em Porto Alegre por terrorismo. Na década de 50, havia um cara louco que estava soltando umas bombas na cidade e a polícia confundiu com o Buckup porque o revistaram de noite e encontraram em seus pertences uma fórmula de geologia e acharam que aquilo fosse um esquema para montar a bomba.
Chegou a trabalhar como advogado?
Nunca advoguei. Mas fui assessor jurídico de Departamento de Portos, Rios e Canais, hoje a Superintendência de Portos e Hidrovias, extinta pelo governo.
E quando começa a escrever em jornal?
Comecei a escrever pela minha atuação como dirigente nos movimentos estudantis, primeiro no centro estudantil do Julinho, depois da União Estadual de Estudantes Universitários. Nessa condição, fui convidado pela União Internacional de Estudantes para participar do Conselho Internacional de Estudantes, em Moscou, em 1954, e lá, fui convidado pela Federação Pan-Chinesa de Estudantes para visitar a China no quinto aniversário da revolução.  Na volta, escrevi para um jornal semanal chamado Hoje uma série de reportagens com o seguinte título: Fui hóspede do Kremlin. Aí o Sérgio Jockymann, que era o diretor do jornal, elogiou meu texto e disse que eu era jornalista. Eu gostava muito de escrever, aos 15 anos eu escrevia para um jornalzinho chamado Véritas, da Juventude Universitária Católica.
Já ensaiava os primeiros passos no jornalismo.
Depois fiz umas entrevistas para o Correio do Povo, que pagava. O P.F. Gastal tomava conta dessa parte da cultura no Correio. Depois quando surge a Última Hora aqui, no final de 1959, do Samuel Wainer, é feita a segunda revolução no jornalismo. A primeira tinha sido feita por Josué Guimarães no jornal A Hora, em 1953/54. A Hora era uma cópia gaúcha da Última Hora, que reproduzia até os colunistas nacionais da UH, mas depois foi comprada pelos Diários Associados. A Última Hora foi criada aqui em Porto Alegre para competir com a Folha da Tarde. A UH não tinha gráfica, nós imprimíamos num jornal católico, o Jornal do Dia, que era na rua Duque de Caxias. Várias pessoas da UH trabalhavam no Jornal do Dia, inclusive o João Aveline, comunista, mas que, nessa época, escrevia uma coluna sobre outros assuntos. E como era muito deficitário, então quem acaba mantendo o jornal católico era o nosso jornal de esquerda, nacionalista, que imprimíamos lá.

Nessa época, jornalismo já era uma profissão?
Bom, as pessoas viam o trabalho em jornal como um trampolim para o emprego público. E mesmo conseguindo, alguns continuavam no jornal. No Correio, por exemplo, policiais escreviam na editoria de Polícia. Na UH não, havia apenas um sargento do Exército que fazia matérias de Polícia.
E como fostes parar na Última Hora?
Fui convidado pelo Ib Kern, que estruturou a UH gaúcha. Eu trabalhava no Escritório dos Municípios, que hoje seria uma espécie de ONG, de um grupo privado, cujo dono era o jornalista José Bachieri Duarte, que estava licenciado do Correio do Povo. Nós atendíamos os municípios do Interior, a comunicação era difícil, a telefonia era precária. Eu não gostava, ficava atendendo prefeitos, então saí dali onde ganhava bem, para trabalhar na Última Hora, ganhando três vezes menos. Mas pouco tempo depois eu recebo aumento porque passo a ser chefe de reportagem.
Quando tempo ficou aqui?
O jornal saiu em 10 ou 15 de janeiro de 1960 e fiquei até janeiro de 1963, quando fui para Brasília, e passei a escrever na UH edição nacional. Havia uma sucursal, com nove ou dez repórteres para cobrir a capital do país. Minha coluna saía nas edições das seis capitais: Rio, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e Curitiba. E lá fiquei até ser preso em 1967. Em 1964, eu fui preso e logo solto com pedidos de desculpas transmitido pela Voz do Brasil. Depois do golpe, só restaram Última Hora do Rio e de São Paulo.
A redação da UH gaúcha foi destruída pela polícia?
Entraram, reviraram tudo, destruíram arquivos fotográficos, mas não quebraram muita coisa. As minhas fotos do Che Guevara não pegaram, ficaram intactas e hoje estão no arquivo do jornal Zero Hora. Pegaram as pastas do Brizola, do João Goulart, acho que não sabiam das fotos do Che. A ignorância era brutal. Uma vez, em 1967, em Brasília, a polícia pegou todos os meus livros que tinham uma foice e um martelo na capa, mas eu tinha deixado de propósito uns livros de propaganda anticomunista, que a Unidade de Inteligência dos Estados Unidos enviava aos jornalistas, com essas capas falsas. Levaram tudo, inclusive eu.
“As pessoas viam o trabalho em jornal como um trampolim para o emprego público. E mesmo conseguindo, alguns continuavam no jornal.”
Em 67, acabou a UH?
Não, a do Rio ficou, e a de São Paulo foi comprada pela Folha de S. Paulo, dois anos depois. Só deixei de escrever quando fui preso. Minha coluna se chamava Flavio Tavares Informe de Brasília, a coluna principal da página 4.
Não foste convidado pelo Ary de Carvalho para trabalhar no recém-criado jornal Zero Hora?
Não. Em 64 eu já havia saído da editora Flan, que publicava a UH gaúcha, e estava trabalhando em Brasília para a editora Última Hora. Acho até que o Ary de Carvalho não tinha interesse que eu viesse trabalhar aqui. Eu que vim de Brasília, em 64, com dois cheques para pagar os passivos trabalhistas e fechar a UH gaúcha. Porque eu, assim como o Nestor Fedrizzi e o Jorge Miranda Jordão, que era do Rio, e dirigia a UH gaúcha, tínhamos por volta de 12% de ações da Última Hora do Samuel Wainer. E houve gente que não recebeu, como o Carlos Bastos e o João Aveline.
Qual eram as grandes dificuldades
A telefonia local até era boa. Fazíamos entrevistas para página política através do telefone. Havia só duas linhas. Agora, a transmissão, sim, era ruim. Eu fico pensando hoje como dava certo. Notícias, fotos, eram enviadas por avião. Cortesia da Varig. Ou por telégrafo. Certa vez, uma manhã chuvosa em Porto Alegre, dia 24 de agosto de 1960, tomamos um avião às seis e meia da manhã para ir a São Borja, acompanhar o vice-presidente João Goulart, o governador Leonel Brizola e deputados em visita ao túmulo de Getúlio Vargas. Um DC-3 da Varig não conseguiu aterrissar na pista de terra, virada em barro, e o piloto tenta aterrissar na granja de Jango. O piloto não consegue frear, destrói cercas, vira a asa para quebrar e parar o avião, por 15 segundos eu achei que ia morrer. Paramos próximos a umas baias, o avião destruído. Eu peguei a minha laica soviética e fiz fotos, o Brizola pediu para eu não colocar no jornal o avião destruído. Mas eu era o único jornalista ali. Peguei um táxi às oito e meia da manhã e fui para o telégrafo, o jornal saía às duas da tarde. Mandei a notícia em linguagem telegráfica aqui para a UH gaúcha. Depois falei no telefone com o João Souza para receber a mensagem e escrever. O João Souza vinha da Folha da Tarde, antes da Tribuna Gaúcha. Bom, mas saiu a notícia: Avião com Jango e Brizola cai no…. No final da tarde, quando retornamos a Porto Alegre, aquele povo todo angustiado no aeroporto esperando a chegada dos líderes trabalhistas. No dia seguinte, a central da edição, que tinha ao todo 24 páginas, trouxe uma matéria especial com várias fotos do avião todo quebrado.
E quando decidiu deixar o Brasil?
Eu tive que sair. Em 1969, fiquei 30 dias preso e fui libertado junto com outros presos políticos em troca do resgate do embaixador norte-americano. Estava em vigor o AI-5, de dezembro de 1968. A situação se complicou. Eu estava respondendo processo na auditoria militar de Juiz de Fora porque havia ficado preso lá de agosto a dezembro de 67. O meu último artigo saiu na Última Hora do Rio.
E conseguiam escapar dos censores nas redações?
Eu não cheguei a pegar a fase dos censores dentro dos jornais. Eles entraram depois do AI-5. Apesar da ABI ser muito incisiva na defesa dos jornalistas, passou a não ter força, aí tudo era censurado, mas eu já estava fora.
Virou exilado político?
Não tinha como ficar e em Brasília era pior, pequena e um covil de dedos duro. Eu cheguei no México em 1969 e fui trabalhar como jornalista para cobrir o mundial de futebol em 70 para uma agência de notícias italiana, a Stampa Associata. Eu cobri os jogos no estádio Asteca. O Brasil eu vi jogar somente a final. Depois fui trabalhar para prensa latina, uma agência cubana, muito bem feita. E depois fui para o Excélsior. Era o maior. O jornal era uma cooperativa, então se ficava 30 dias, depois mais cinco meses e tu podias virar um cooperado. Ali, primeiro trabalhei na área internacional, depois fui para secretaria da redação, para fazer a primeira página. Eu tinha menos de 40 anos. Em 1974, eu pressionei o Excélsior para ir para Buenos Aires. O México era muito longe.
Longe da família.
E era tudo difícil, a comunicação era horrível. Exilado e isolado. Hoje, exílio seria só no nome. Com computador, internet, Skype, celular, whats. Nem quem está preso deixa de se comunicar hoje.
Vida nova em Buenos Aires
Aí eu vou para Buenos Aires em 1974 como correspondente do Excélsior. O Perón tinha aberto a Argentina para os exilados brasileiros. O Jango tinha saído de Montevidéu para morar em Buenos Aires. O Brizola ficou em Montevidéu para não se encontrar com o Jango porque estavam brigados. Bom, mas aí eu começo a trabalhar também para o Estadão, com um pseudônimo de Júlio Delgado, em referência ao mês em que eu comecei a escrever para o Estadão e ao meu estado físico. Eu estava muito magro mesmo. Meu nome não podia aparecer. Só no dia em que o Jango apareceu é que o Júlio Mesquita me ligou pra perguntar se eu iria assinar texto sobre a morte do ex-presidente. Eu disse que iria colocar o meu nome. O Estadão fez um editorial muito respeitoso, que surpreendeu porque o jornal havia ajudado a derrubar o Jango mas mudou depois. No Estadão eu tive uma experiência muito boa no jornalismo, quer dizer, nem todas, porque estive preso em Montevidéu por mais de seis meses.

Tu foste preso por ser jornalista?
Fui processado por espionagem. Fui acusado de descrever endereços de casas de tortura. Eu recebi informações de uma pessoa que, na verdade, era militar uruguaio. Foi uma montada uma farsa para prestar um serviço à ditadura brasileira e eu entrei. Então, eu passei 26 dias preso no Uruguai, sou um dos poucos sobreviventes da Operação Condor, eu e mais uns três. Fui sequestrado pelo Organismo Central de Operações Anti-Subversivas. Foram 26 dias de olhos vendados, algemado, sem banho. Fui submetido a um fuzilamento de mentira, fui torturado, só não tomei choque. Tomei choque só em 67, no Brasil, uma das piores coisas que existe. Depois, fiquei mais seis meses preso em Montevidéu. Foi montada uma campanha internacional pelo estadão por minha liberdade. O Geisel, que fazia uma visita à Montevidéu, foi pressionado para exigir que eu fosse expulso do Uruguai antes que ele chegasse. Então eu saí do país ao meio dia e Geisel, chegou às quatro da tarde.
Foi para onde desta vez?
Fui para Lisboa e continuei como correspondente do Estadão e do Excélsior, como editorialista político. Saía três edições do Excélsior durante o dia, uma pela manhã, últimas notícias, ao meio dia, e extra, à tarde. Hoje é impensável.
Trabalhou em outros veículos como rádio e tevê?
Antes de entrar para a Última Hora, em 1958 trabalhei como locutor comercial na rádio Gaúcha, de manhã e no final do dia. As rádios não funcionavam 24 horas como hoje. Em tevê nunca trabalhei.
“O impresso está ali e fica como documento. Imagina hoje se der uma pane no doutor Google? Todo mundo vai no Google, até eu.” Hoje, o impresso perdeu espaço, ficou velho.O jornal impresso é imorredouro. A minha geração pelo menos nota grande diferença entre o impresso e o jornal virtual.
O impresso é um documento.
Exatamente. As notícias no jornal virtual somem. O impresso está ali e fica como documento. Imagina hoje se der uma pane no doutor Google? Todo mundo vai no Google, até eu. Mas não me informo pelas redes sociais, não dá.
O Google virou a fonte.
Antes tu te informavas sobre determinado assunto entrevistando as pessoas, checando as informações, hoje o repórter pesquisa na internet.
E essa mania de assessor de imprensa pedir para mandar as perguntas pela internet?
Isso é um absurdo.

Pior, então, quando as respostas vêm pela internet.
Como o repórter entrevista alguém sem poder falar, se não pessoalmente, por telefone.
O rádio se adaptou aos novos tempos?
O rádio pela facilidade. As pessoas se informam dirigindo seus carros. Minha mulher, que é professora universitária de Direito, se informa bastante pela Voz do Brasil. Rádio e tevê são concessões do Estado.
Qual foi a melhor fase do jornalismo?
Acho que foi no governo Figueiredo. Não pelo último presidente do regime militar, mas porque foi um momento de despertar do Brasil. Entre 1979 e 81, fui ser editorialista do Estadão. Época em que os jornais faziam grandes reportagens. O Ricardo Kotscho fez aquelas reportagens sobre as grandes mordomias do serviço público federal. Os escândalos apareciam primeiro nos jornais, hoje os jornais copiam o que aparece na Justiça.
Vivemos hoje o tempo de um jornalismo declaratório?
Há uma mediocrização do jornalismo. Acabaram as grandes reportagens. O jornalismo tem muito medo hoje. Mas, mesmo assim, o jornalismo é o meio de informação em que a sociedade pode confiar. Não são as redes sociais.
Mas os jornais passaram a repercutir também o que sai nas redes sociais.
Pois é. Há uma vulgarização dos jornais porque os grandes temas sumiram e se deixou de aprofundar as notícias. Antes, as pessoas se alfabetizavam lendo os jornais. E se tomava conhecimento do que estava ocorrendo no mundo através de jornais como Estadão e o Correio do Povo, que se destacam nas notícias internacionais. E quem eram os redatores na década de 40? Mario Quintana, Décio Freitas, traduziam as notícias recebidas por agências norte-americanas.

Quem foi a personalidade mais difícil de entrevistar?
Políticos, de modo geral, nunca respondiam o que lhes era perguntado. E os economistas te respondiam com estatísticas que não revelavam nada. Acompanhei o Fidel Castro o dia inteiro em São Paulo e o entrevistei numa coletiva, no Ibirapuera. Fidel era difícil porque só respondia o que queria. O Brizola era meio assim também. O Jango tinha a mania de quando respondia olhando para baixo, estava falando sério mesmo, mas quanto te encarava é porque não queria responder.
Quando começou a escrever a coluna para o jornal Zero Hora?
Eu substituí o Décio Freitas, acho que foi em 2004, a coluna sai na edição de fim de semana.
Não trabalhou em O Globo nem na Folha de São Paulo?
Para O Globo fiz alguns trabalhos enquanto morava em Buenos Aires. E na Folha tinha um problema. Censuravam muito o que eu escrevia sobre o governo argentino porque achavam que ia ecoar aqui.  Uma vez o Frias me ligou perguntando porque eu escrevia ditador Pinochet e não me referia ao ditador Fidel. Simplesmente porque eu nunca escrevi sobre Cuba para a Folha. Mas eu nunca misturei a luta socialista com jornalismo. Eu acho que o jornal tem de fazer um debate aberto. Não serve para isso.
Em algum momento chegou a pensar em desistir do jornalismo?
Teve um momento em que decidi parar com o jornalismo para escrever livros. Venci o vício, mas não curei a abstinência. Conheci um grande escritor argentino, Ernesto Sabato, que me dizia para largar o jornalismo porque os repórteres modificavam o que ele dizia.
Memórias do Esquecimento foi seu primeiro livro?
Sim, esse eu tinha que escrever, sobre minha prisão, porque ia ficar louco. Foi minha catarse.
Foram quantos títulos até agora?
Seis. Memórias; O Dia que Getúlio matou Allende; Che Guevara que conheci e retratei; 1961 – O golpe derrotado; 1964 – O golpe; e As três mortes de Che Guevara.
*Publicado originalmente no Jornal da ARI
 

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Comentários

Uma resposta para “Flávio Tavares: "Venci o vício, mas não curei"”

  1. Avatar de Joel Segala
    Joel Segala

    Pois é bela história depois foi trabalhar na RBS criada e ajudada pela ditadura como a Globo e a Varig…

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