A atual celeuma em torno do conflito índios x agricultores precisa ser encarada por uma força-tarefa dos três poderes, sob pena de se conflagrar o Brasil inteiro. Todo mundo dá palpite sobre quem merece ficar com as terras, mas ninguém se dá conta de que à luz da Constituição de 1988 tanto os índios quanto os chamados colonos têm razão.
“Nós acampamos aqui porque queremos adquirir essa terra que foi dos nossos antepassados”, disse um cacique indígena de meia idade, em 2001, ao explicar a um jornalista porque sua família havia armado barracas de plástico no meio de uma plantação de pinus no oeste de Santa Catarina, onde os conflitos por terras se arrastam há décadas.
O verbo “adquirir” tinha um sentido não monetário: a ideia indígena era obter a terra gratuitamente graças à Constituição de 1988. E assim tem sido em várias regiões. Em contrapartida, há reservas indígenas sendo invadidas por aventureiros da agricultura na Amazônia Em alguns casos, trata-se não de invasão, mas de arrendamento das terras indígenas pelos brancos.
A atual celeuma em torno do conflito índios x agricultores precisa ser encarada por uma força-tarefa dos três poderes, sob pena de se conflagrar o Brasil inteiro. Todo mundo dá palpite sobre quem merece ficar com as terras, mas ninguém se dá conta de que à luz da Constituição de 1988 tanto os índios quanto os chamados colonos têm razão.
Ao garantir aos indígenas o direito à terra dos seus antepassados, nossa lei maior criou um conflito com o direito à propriedade de todos os que – colonos, agricultores, posseiros, grandes empresários — obtiveram certidões ou títulos por doação de governos, posse ou compra no mercado imobiliário. Registre-se que a Lei de Terras do Brasil é de 1850. Antes prevalecia a legislação portuguesa com suas cartas régias, sesmarias e titulações variadas.
Início dos conflitos
Há um claro conflito entre o direito natural dos índios (artigos 231 e 232) e o direito de propriedade (artigos 5 e 170) dos “brancos”. Na essência esses artigos se contradizem. Eles armaram uma bomba que agora começa a pipocar em todo o território nacional.
Foi irresponsabilidade dos constituintes de 1988: no apagar das luzes dos trabalhos constitucionais, quando só pensavam na volta para casa, os deputados aprovaram a toque de caixa o capitulo VIII (DOS INDIOS) com apenas dois artigos (231 e 232), fechando os olhos para o risco de um conflito com os artigos anteriores (5 e 170), referentes ao direito de propriedade.
Por tabela, estão no mesmo barco os descendentes de quilombolas, favorecidos pelo artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias. Porém, como os descendentes de escravos rebelados ocupam glebas restritas, seus direitos são pouco contestados, mas ainda assim há conflitos explícitos chegando às páginas da mídia.
Com os índios é diferente: além de ser muito mais numerosos do que os quilombolas, eles reivindicam áreas imensas, algumas ocupadas há décadas por agricultores “brancos”.
E assim, 25 anos depois da Constituição Cidadã, chegamos ao atual cenário. Os índios, cuja população não chega a 1 milhão de pessoas (menos de 0,5% da população brasileira), teriam direito a cerca de 11% do território, onde poderiam exercer o seu “modo de vida” à antiga.
Essa discrepância entre a ampla área das reservas indígenas e a restrita população nativa tem sido especialmente explorada pelos defensores dos agricultores, que somam milhões. É a bancada ruralista contra a bancada ambiental-indigenista numa reedição da batalha em torno da reforma do Código Florestal.
Em face disso, tem aflorado a seguinte questão: será justo sacrificar uma maioria de trabalhadores da terra/produtores de alimentos em favor de uma minoria mais afeita ao lazer do que ao labor?
Há índios que ainda vivem como seus antepassados: caçam, pescam, dormem em cabanas, cultivam alguma roça e circulam por vastas reservas, onde recebem assistência gratuita do estado – saúde, educação, alimentação, infraestrutura de comunicação etc. São tutelados e tratados como carentes, mais ou menos de acordo com a chamada Doutrina Rondon, o militar que entrou no século XX apregoando o tratamento humano aos índios.
Em contrapartida, há índios que vivem como “brancos”: têm educação, sabem fazer negócios e possuem objetivos materiais semelhantes aos dos antigos colonizadores do território brasileiro. São os chamados índios civilizados. Eles têm cacife para dispensar a tutela da Funai e a proteção da Polícia Federal (leia-se Ministério da Justiça), mas não o fazem porque são solidários com seus irmãos indígenas e não vêm motivo para abrir mão de direitos assegurados pela Constituição.
Não há dúvida de que todas essas questões precisam ser mediadas pelo Judiciário, em conjunto com o Congresso e o Executivo – não com base na contraditória legislação vigente, mas por meio de um novo e genuíno espírito de negociação. Sem acordo ou pacto não se vai sair do impasse criado há 25 anos pela Constituição.
O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO
TÍTULO II
Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
CAPÍTULO VIII
DOS ÍNDIOS
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º – As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º – É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§ 7º – Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.
O explosivo conflito pela terra
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