Juíza incrimina estudantes e repórter por ocupação da Secretaria da Fazenda

A juíza da 9ª Vara Criminal do Foro Central, Claudia Junqueira Sulzbach, acolheu a denúncia contra os dez maiores de idade presos no episódio da ocupação da Secretaria da Fazenda do Estado, em 15 de junho.
Com a decisão, os dez se tornam réus no processo por dano qualificado e desobediência. Entre os réus estão o repórter do Jornal JÁ, Matheus Chaparini, e o cineasta independente Kevin D’arc, de São Paulo, que filmava em diversas cidades do país para um documentário sobre as ocupações.
Na ocasião, foram detidas 43 pessoas, a maioria estudantes menores de idade. Os menores foram liberados no Deca (Departamento Estadual da Criança e do Adolescente). Os maiores chegaram a ser levados ao Presídio Central, no caso dos homens, e ao Madre Pelletier, no caso das mulheres. Eles permaneceram detidos por cerca de 14 horas.
No caso dos 33 menores de idade, a Promotoria da Infância e da Juventude do Ministério Público arquivou o inquérito.
Chaparini estava no local a trabalho, cobrindo a ocupação para o jornal JÁ. Os vídeos gravados pelo repórter mostram que ele se identifica como profissional de imprensa diversas vezes, o que é ignorado pelos policiais.
O boletim de ocorrência feito pela BM enquadrou-o como manifestante, o delegado que fez o inquérito manteve esse entendimento, assim como o promotor e, agora, a juíza. Isso tudo apesar das manifestações — do próprio jornal JÁ, do Sindicato dos Jornalistas, da Associação Riograndense de Imprensa, Federação Nacional dos Jornalistas e outras entidades da sociedade civil — atestando que o repórter estava no exercício de sua profissão.
E, apesar, do vídeo de onze minutos em que ele, fora da cena, registra as agressões dos policiais militares aos estudantes que ocupavam o saguão da Secretaria.
 
Histórico
O inquérito policial, concluído pelo delegado Omar Abud,  seguiu a orientação expendida em várias manifestações públicas do secretário de Segurança e, até, do governador.
Disse o secretário, e repetiu o governador em entrevista, que o repórter Matheus Chaparini, que fazia cobertura para o JÁ, foi preso “porque não se identificou como jornalista”.
Em decorrência disso,  foi arrolado e denunciado junto com os estudantes que ocuparam o prédio da Secretaria da Fazenda, no dia 15 de junho.
O repórter gravou com o celular o vídeo de onze minutos e fez mais de uma centena de fotografias registrando o que ocorreu  no interior do prédio público ocupado pelos estudantes em protesto.
Num trecho do vídeo, inclusive, são claras as diversas tentativas do repórter de se identificar ao comandante da operação.
Mesmo assim, as autoridades – do governador ao delegado – insistem na versão de que o “repórter não se identificou” e que, portanto, “estava  junto”.

"Pra mim, tu tá junto", disse o policial ao repórter, e o prendeu  | Ramiro Furquim/Jornal Já
“Saí pra trabalhar, acabei no presídio”, resume o repórter | Ramiro Furquim/Jornal Já

Criminaliza-se a ação dos estudantes para intimidá-los e inibir as suas manifestações de protesto.  O indiciamento do repórter que “estava junto” tem o objetivo claro de desqualificar o material produzido por ele e que revela a truculência da operação policial dentro de Secretaria da Fazenda, onde os estudantes foram agredidos com spray de pimenta no rosto e arrastados à força para fora do prédio.
No dia seguinte,  inclusive, o secretário da Segurança anunciou uma investigação que, em 30 dias, esclareceria os fatos ocorridos durante a operação de desocupação.  Depois, não se falou  mais no assunto.
Colegas do repórter acusado acompanharam a cena pela janela / Arquivo JÁ
Colegas do repórter acusado   acompanharam a cena pela janela 

Segundo o delegado Abud, uma evidência de que o repórter não estava trabalhando é o fato de que estava “entre os invasores” enquanto os demais jornalistas estavam todos no lugar determinado pela polícia.
As imagens nos noticiários de televisão, mostram claramente os repórteres fora do prédio,  tentando ver através das grades das janelas da Secretaria da Fazenda.
Fica evidente que todos queriam estar lá dentro. O repórter do JÁ conseguiu entrar porque cobria desde o início o movimento dos estudantes.
O site do JÁ cobre as ocupações de escolas desde o princípio. O repórter tinha um contato entre eles e foi avisado da ocupação no início da manhã. Chegou, encontrou uma porta aberta, entrou.
Reprodução do registro da conversa entre o editor e a equipe que cobria a ocupação.
Reprodução do registro da conversa entre o editor e a equipe que cobria a ocupação.

O caso provocou vários atos e debates públicos, manifestações orais, escritas, publicadas. Quando o processo chegou à 9ª Vara Criminal, a cargo da juíza Cláudia Junqueira Sulzbach e do promotor Luis Felipe Tesheiner, uma comissão foi ao gabinete da juíza interceder em defesa dos estudantes e explicar que, por óbvio, um jornalista não pode ser arrolado como participante de um movimento que está acompanhando como repórter.
Encabeçava a comissão o representante do Comitê em Defesa da Democracia e do Comitê de Resistência Constitucional, advogado Mário Madureira, que interveio em favor dos indiciados acompanhado do presidente do Sindicato dos Jornalistas, Milton Simas, e da coordenadora do movimento Escola sem Mordaça, Russel Dutra da Rosa, e da advogada dos estudantes, Jucemara Beltrame. (Dias antes, estavam os advogados em frente à sede da OAB reclamando da omissão da Ordem diante do desrespeito, por policiais, às suas prerrogativas profissionais, naquele e noutros conflitos sociais, impedindo-lhes o acesso a clientes e até levando empurrões e gás de pimenta no rosto, também).
Em agosto, quando recebeu a denúncia encaminhada pelo MP, a juíza (de vermelho), desceu para ver a apresentação preparada pelos estudantes / Foto Thaís Ratier
Em agosto, quando recebeu a denúncia encaminhada pelo MP, a juíza (de vermelho), desceu para ver a apresentação preparada pelos estudantes / Foto Thaís Ratier

Então, pediram à juíza que fosse ao térreo encontrar os estudantes, que haviam sido impedidos de subir, assim como os fotógrafos que registravam o episódio. Ela foi, e acompanhou até o fim uma performance teatral montada por eles, reproduzindo a truculência policial durante a  desocupação da Sefaz, expondo suas demandas e questionando as razões da acusação. A apresentação culminou com a entrega de flores à juíza. Porém, ao final, um rapaz mais empolgado com a receptividade da magistrada, começou a pular e gritar: “Ocupa, ocupa tudo”, no que foi acompanhado por uns poucos. Um silêncio sobreveio e, sem mais, a juíza voltou ao seu gabinete.
 
Da ocupação ao Presídio Central: o relato do repórter
2016.06.15 - Porto Alegre/RS/Brasil - Repórter do Jornal Já é preso durante cobertura de ocupação da Secretaria Estadual da Fazenda. Foto: Ramiro Furquim/Jornal Já
2016.06.15 – Porto Alegre/RS/Brasil – Repórter do Jornal Já é preso durante cobertura de ocupação da Secretaria Estadual da Fazenda. Foto: Ramiro Furquim/Jornal Já

É uma espécie de caixote de lata, pintado de preto pelo lado de dentro. Num dos lados, um banco, do outro, uma barra para prender algemas. Cabem ali duas pessoas, talvez três. Mas quando fui encaçapado na parte traseira do camburão da Polícia Civil, já éramos quarto.
Assim que a porta fecha, o ar fica escasso e quando a viatura anda, cai a total escuridão sobre os detidos. Ao todo, éramos dez, em três espaços do mesmo veículo.
Da Secretaria da Fazenda, no centro de Porto Alegre, fomos para a Delegacia da Criança e do Adolescente (DECA), onde ficaram os menores de idade. Dali, seguimos para a 3ª Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento, onde me identifiquei como jornalista e informei meu veículo. Em seguida fomos novamente embarcados.
Após uma parada de meia hora no presídio feminino Madre Pelletier para deixar as três jovens presas, seguimos para o Presídio Central, o lar gelado que nos aguardava.
Na chegada, o clima é de pressão psicológica. Braços cruzados na altura do peito e cara na parede é o procedimento padrão.
Ao fundo, soam algumas piadas homofóbicas, comentários sobre uma briga violenta, que não se confirmou, e o torturante ruído de um faca sendo raspada na parede.
Fomos os sete identificados, revistados nus e encaminhados a uma cela do Jumbo, o setor de triagem do Central.
Nossa presença gerou um alvoroço entre os vizinhos da cela ao lado, mas o policial que nos conduzia esclareceu: “Não é duque!”
Duque é como são chamados os estupradores, que costumam ficar separados dos demais. Havia dois “duques” na cela que nos aguardava, um cubículo muito frio,  incluindo o banheiro, infecto.
Fomos presos pela Brigada Militar durante a ocupação da Secretaria da Fazenda por estudantes.
A intenção do grupo de estudantes era conseguir uma reunião para negociar com o governador.
O saldo foi a prisão de mais de 40 pessoas, a maioria menores de idade, quase todos estudantes, além deste repórter e do cineasta Kevin Darc, que prepara um filme sobre as ocupações escolares Brasil afora.
A ocupação foi decidida em reunião no início da manhã no Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Os estudantes ocuparam o prédio em torno das 8h.
Às 9h chegou ao prédio o secretário adjunto da Fazenda, Luiz Antonio Bins. Vinte minutos depois, o secretário entrou no prédio acompanhado pelo comandante do policiamento da capital, Mário Ikeda.
Rapidamente chega o Batalhão de Operações Especiais da Brigada Militar. Inicialmente eram oito viaturas e cerca vinte homens, vários mascarados e sem identificação na farda. Os agentes isolaram uma larga área ao lado do edifício, onde  comandante do 9º BPM, tenente-coronel Marcus Vinicius Oliveira. falou com a imprensa.
Ao fim das perguntas dos jornalistas, um estudante ponderou: “Não podemos esquecer que são menores de idade, né?”, ao que o comandante respondeu: “Só sei que são invasores”, e um mascarado exaltado encerrou o assunto: “Eu sei que são menores, ninguém aqui é retardado!”
Às 10h20, os estudantes pintavam uma faixa com o texto “Sem violência, lutamos pela educação”, quando escutaram apitos e tambores se aproximando da entrada da avenida Mauá. Eram estudantes, professores e militantes que vieram prestar apoio à ocupação.
Até aí, tudo transcorria relativamente bem, apesar da presença cada vez maior do Choque.
Às 10h25, os estudantes se reuniram com o tenente-coronel Mário Ikeda. O diálogo foi rápido e os estudantes ganharam um prazo de dez minutos para desocuparem o local. E foi aí que começou o problema.
Os estudantes decidiram ficar no prédio. Eles questionavam a falta de uma ordem de reintegração de posse e exigiam a presença de advogados e do Conselho Tutelar no local, o que só foi permitido depois de iniciada a ação da Brigada Militar. Os jovens sentaram no chão e se deram as mãos, como forma de defesa.
Os brigadianos arrancaram um por um os estudantes, carregados pelas pernas, braços ou pela roupa. O cheiro do spray de pimenta  encheu o ambiente.
O capitão Trajano, que orientava a remoção dos ocupantes, chegou a esgotar um tubo inteiro, direcionado para o rosto dos estudantes, e solicitou mais um. A cada investida da tropa, ouviam-se os gritos de desespero das meninas e meninos. Os policiais estavam bastante exaltados e o capitão precisou conter seus homens pelo menos duas vezes.
Além de lançar o spray diretamente no rosto dos adolescentes, uma menina teve o pé pisado por um policial, um rapaz relata que levou dois socos na cabeça e outro disse que foi arrastado na escadaria de saída do prédio. Há um caso mais grave, de uma moça que relata que um grande hematoma no seu peito foi ignorado no exame de corpo de delito. Outro problema era a ausência de uma mulher para a realização dos exames.
Permaneci na Secretaria até a retirada do último estudante, quando decidimos, eu e o cineasta Kevin Darc, sair do prédio. Neste momento, também fomos presos. Nos identificamos e a resposta do capitão foi: “Pra mim tu tá junto.”
Na saída, um homem vestido à paisana e com o rosto escondido por uma toca ninja arrancou o celular da minha mão.
Enquanto brigadianos tentavam me empurrar para fora do prédio, consegui pegar o aparelho, mas não evitar a prisão.
Ao meio-dia teve início uma peregrinação que foi até a sede do Deca (Departamento Estadual da Criança e do Adolescente), 3ª DPPA, no bairro Navegantes,  depois Palácio da Polícia, 3ª DPPA novamente, Madre Pelletier e, por fim, Presídio Central.
 

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