Elmar Bones
Eram 15 horas do domingo (03), quando entrou em operação a nova unidade da Celulose Riograndense, em Guaíba.
O primeiro fardo de celulose vai se materializar dois dias depois, tempo em que se completa o circuito da produção – da entrada da madeira (cavacos de eucalipto) até a saída da pasta de celulose na ponta final do processo industrial.
Quando estiver operando a pleno, em setembro, será uma das maiores e mais modernas fabricas de celulose do mundo, capaz de produzir dois milhões de toneladas por ano.
Ao preço de hoje, em torno dos 700 dólares a tonelada, terá um faturamento de 1,4 bilhões de dólares por ano.
Um projeto exemplar no capitalismo brasileiro: investimento privado, sem isenção de imposto, relações de trabalho evoluídas, integração com a comunidade.
E, no entanto, tudo começou com um fracasso.
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O projeto de uma grande fábrica de celulose à margem do Guaíba foi apresentado aos gaúchos em 1971, sem chance para discussão.
Era um projeto privado de um grupo norueguês, Borregaard, com financiamento do governo militar brasileiro.
Dizia-se que a grande fábrica ia funcionar como uma alavanca para a industrialização do Rio Grande do Sul. Era o grande projeto que o regime militar devia ao Estado.
Mais tarde se soube que a fábrica entrou em funcionamento sem qualquer estudo de impacto ambiental.
Um relatório técnico alertava para o risco de poluição das águas que abastecem Porto Alegre e toda a região metropolitana, mas foi engavetado.
Quando o cheiro de enxofre exalado da chaminé na outra margem do lago passou a tomar Porto Alegre nos dias de vento sudeste, os moradores da capital gaúcha se assustaram.
Passaram a dar ouvidos aos militantes do movimento ambientalista, que tinha à frente José Lutzenberger e sua aguerrida Agapan.
O pior não era o cheiro, insistia Lutzenberger. O pior era o que estavam lançando na água que abastece a cidade: resíduos de madeira num caldo químico altamente tóxico. Estudos da universidade identificaram indícios de dioxinas na deformação em peixes.
A campanha dos ambientalistas ganhou a adesão da Associação Médica , da Ordem dos Advogados e do Correio do Povo, o jornal mais influente do Estado na época.
Jair Soares, então secretário da Saúde, obteve na Justiça autorização para fechar a fábrica, até que ela colocasse filtros para eliminar o mau cheiro e reduzir a descarga no Guaíba.
Fato inédito na história do Estado, em pleno regime militar, 1973.
José Lutzenberger que fundara a Agapan dois anos antes, mendigando notinhas nos jornais para suas reuniões, tornou-se uma referência nacional.
A Celulose Borregaard virou símbolo do mau comportamento empresarial. Reabriu, foi fechada outra vez três meses depois.
Nesse meio tempo, revelados detalhes do negócio, com excessivos benefícios fiscais, ficou insustentável a situação dos noruegueses.
O governo mais uma vez injetou dinheiro para que o Montepio da Família Militar, um condomínio de coronéis, comprasse a fábrica. Um general assumiu a presidência e empresa passou a chamar-se Rio Grande Celulose Ltda (Riocell).
O “general desodorante”, diziam, que faria sumir o mau cheiro que seguia assolando a cidade quando soprava o sudeste.
A indústria, no entanto, tinha dois pilares. Um processo produtivo bastante moderno e eficiente (menos na parte ambiental) e um modelo de gestão bem avançado, com um corpo técnico altamente qualificado.
Foram os técnicos que perceberam: por mais força que tivessem os generais na época, a questão das emissões de gases e de lançamento de organoclorados nas águas do Guaíba tinham que ter soluções técnicas.
Em 1984, quando já pertencia a um terceiro dono, a Klabin, a empresa havia resolvido a questão dos gases. Naquele ano estava inaugurando uma Estação de Tratamento de Efluentes, na qual havia investido 3,5 milhões de dólares.
José Lutzenberger foi o único do movimento ambientalista presente à inauguração. Ali conversou com ao engenheiro Aldo Sani, superintendente da fábrica.
O circuito de recuperação das águas estava resolvido, atingira níveis satisfatórios. Mas havia os resíduos sólidos, os restos de madeira contaminados que ficariam empilhados a céu aberto – uma fonte de contaminação do solo e das água.
Ali, Lutzenberger se sentiu desafiado. Ele já discutia com seus seguidores da Agapan sobre como e quando passar da crítica à prática, do discurso à ação.
Aceitou o desafio. Suas pesquisas permitiram à empresa chegar hoje a quase 100% de recuperação dos resíduos sólidos, transformados em solo orgânico e adubo. É um caso exemplar de crítica construtiva, uma das muitas lições que o “caso Borregaard” tem ensinado ao Rio Grande do Sul.