Naira Hofmeister
Pela primeira vez na história do Festival Internacional de Cinema de Gramado, o troféu Eduardo Abelin foi concedido a uma instituição, a Casa de Cinema de Porto Alegre. Há 20 anos, um grupo de cineastas acreditou num projeto que possibilitasse produzir cinema fora do eixo Rio-São Paulo.
Os quinze primeiros anos foram dominados pela produção de curtas-metragens e apenas em 2000, o primeiro longa (Tolerância, de Carlos Gerbase) foi exibido. O pulo do gato aconteceu em 2003, quando Jorge Furtado lançou O Homem que Copiava.
O filme inaugura uma parceria que virou constante nos outros dois longas do diretor: seu protagonista sempre é Lázaro Ramos. O último lançamento da Casa de Cinema de Porto Alegre – também exibido em Gramado – é Saneamento Básico, o filme, ainda em cartaz nos cinemas do Estado.
Entre diversos compromissos de divulgação, Jorge Furtado, Lázaro Ramos e Bruno Garcia – que também participa da produção – conversaram com a reportagem do JÁ sobre o papel da arte na construção de um mundo mais justo.
JÁ: O filme do Zico (Lázaro Ramos) é um sucesso na escola, principalmente pela cena sensual da Silene (Camila Pitanga) se banhando na cachoeira. Propõe um debate sobre educação?
Jorge Furtado: Se há alguma coisa que pode nos redimir da miséria total, dos senadores corruptos, da baixaria dos conflitos inventados pra vender jornal, é a arte, a beleza. O Brasil não é o país da roubalheira, sim a terra de Drummond, Chico Buarque, Noel Rosa. É impossível não se seduzir vendo a Silene (Camila Pitanga) numa cachoeira da serra gaúcha, ao som de Billie Holiday. Quem não se comove tem que procurar um médico. Qualquer um acha lindo!
JÁ: Mas existe uma crítica ao audiovisual educativo. E num momento em que se promove um debate sobre a TV pública brasileira…
Bruno Garcia: Precisamos cada vez mais da educação, mas o sistema necessita de uma reforma. A televisão é uma ferramenta multifacetada que pode servir pra muitas coisas inclusive para educar. Mas precisa discutir o tempo todo, coisa que se tem feito muito pouco.
Lázaro Ramos: Acho tão difícil tornar qualquer coisa educativa e atraente hoje em dia. Mudou tanto a cultura. Eu que não sou de outra época, mas sou, só consigo fazer uma coisa. Hoje o menino lê um livro, entra na Internet e joga videogame ao mesmo tempo.
Bruno: É isso que eu digo, é um desafio…
Furtado: Umberto Eco, no post scriptum de O Nome da Rosa, escreve sobre isso. Nos anos 60, se achava que a arte tinha que chocar, fazer alguma coisa que não coubesse na mídia. Era um quebra-quebra, o povo vomitava. O Chico (Buarque) no Roda Viva xingava todo mundo. O teatro era imundo, grosseiro. Era arte conceitual. Hoje a sociedade de consumo absorve tudo: punk, hippie, tudo virou grife. O conceito segundo Eco – e eu concordo completamente com ele – é criar algo que seja popular e de qualidade. Isso é o difícil. Coisas de qualidade já estão feitas! Basta ler Montaigne, Carlos Drummond de Andrade.
JÁ: Há quem diga que popular é sinônimo de ruim…
Furtado: Esse é outro conceito equivocado, também dos anos 60. Com poucas exceções como Van Gogh e Kafka – cuja arte expressa uma perturbação – todos os outros grandes artistas da história da humanidade (Shakespeare, Mozart, Cervantes, Charles Chaplin, Da Vinci, Beatles, Rolling Stones) foram muito populares. Porque a grande arte é reconhecida.
JÁ: Poderias citar um exemplo atual?
Furtado: O Auto da Compadecida, a maior comédia do teatro brasileiro, e que teve um sucesso extraordinário no cinema.
Bruno: O grau de popularidade foi tão alto que foi a primeira vez na história da humanidade que um produto passou primeiro na televisão e depois virou um filme.
Lázaro: Uma vez eu vi Jorge [Furtado] e Guel [Arraes] conversando sobre isso e me apaixonei por eles. E roubei uma frase, que eu uso como se fosse minha, mas é deles, o “Biscoito Fino para massas”.
Furtado: Isso é Mário de Andrade! A gente também roubou!
Lázaro: Isso me encorajou para fazer essa que é a arte mais popular hoje, as novelas. Pensei de que maneira eu iria atuar para conseguir passar todas as mensagens em que eu acredito, sendo popular.
JÁ: Qual é o comprometimento do artista com a sociedade?
Bruno: Total. E não só de um artista, todos nós somos seres políticos. Só não somos fomentados a compreender. O brasileiro sempre se vê como um preguiçoso, essa coisa macunaímica de ficar na rede reclamando que o país tá uma merda e tomando cachaça. Dia desses, eu fiquei puto comigo e lancei um manifesto na Internet. Vamos fazer uma marcha até Brasília!
Furtado: A política acaba seduzindo muita gente, mas quem sabe a gente não tenha que pensar menos em política. Há tanto espaço para a política… esses caras não merecem essa atenção toda!
Bruno: Nós nos distanciamos da Ilha da Fantasia (Brasília), mas o dinheiro é nosso, a gente é que vota.
Furtado: Nós vivemos tanto tempo numa ditadura que achamos que democracia iria resolver todos os problemas.
Bruno: E pelo contrario, né?
Furtado: O Renan Calheiros foi eleito, sabe!
Lázaro: Eu acredito muito pouco nas autoridades, por isso acho tão importante os artistas dialogarem com quem não está no poder. Tocar essas pessoas rende muito mais artística e politicamente falando.
Furtado: É o que a gente tem que fazer: teatro, cinema, literatura.
Bruno: Acho que sim, temos que fazer arte, mas às vezes eu me sinto um pouco distanciado como cidadão da coisa pública.
JÁ: O que falta para promover essa aproximação?
Furtado: Sem querer criticar a mídia, nós vivemos numa cultura onde a ofensa sempre vence. Se nós ficarmos três horas aqui conversando e eu falar mal de alguém, essa é a manchete. É claro que a notícia é um conflito, debate, só que na revista dessa semana, o escândalo da semana passada não existe mais! Já acabou! Ou vocês lembram quem é a Rosinete Melanias?!
Lázaro: Secretária…
Furtado: É, do Collor.
Lázaro: Agora tem outra… Também com um nome esquisito.
Furtado: Zulei… Zuleidu Veras.
Lázaro: E o Jacinto Lamas!! Esse nome é o melhor!
Furtado: Estar no meio da roda viva sem saber o que fazer cria um sentimento de imobilidade. Ou seja, a imprensa tem um papel importante, porque se não for oposição, não é nada. Mas falta também uma indicação do tipo, um deputado que NÃO é ladrão! Apontar maneiras interessantes de pensar a política, coisas positivas. Fazer crítica é fácil.
JÁ: Qual deve ser a medida de investimento público para cultura, por exemplo, e para questões de infra-estrutura, como saneamento básico?
Furtado: Não podemos cair nesse erro de dizer que só depois que todos tiverem saneamento básico é que vamos produzir cultura. A sociedade é uma coisa orgânica, tudo tem que ser feito ao mesmo tempo. Não dá para deixar Ouro Preto ruir, esquecer as Missões, fechar todos os jornais, editoras, o teatro municipal, porque não temos saneamento básico para todo mundo. Mesmo porque a arte faz com que as coisas se movam. Uma peça como Inimigo do Povo [de Ibsen]. Fala sobre um lugar turístico que não quer divulgar a contaminação da água para não perder visitantes. A cultura pensa o país, inclusive saneamento e educação.
JÁ: Mas tem aquela história de que esgoto não dá voto…
Furtado: Ah sim… porque tá embaixo da terra!
Bruno: O que é bastante discutível. Realmente é perigoso fazer coisas que não são visíveis, não estão na mídia. Mas há trabalhos que são reconhecidos pela população mesmo.
Furtado: Por outro lado tem aquela história de que 50% das casas têm saneamento básico e 95% têm televisão…
JÁ: Voltamos aí ao ponto de partida…
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