A prisão de Ezequiel Castanha, apontado pelo Ibama e a Policia Federal como “o maior desmatador da Amazônia”, levanta o véu da impunidade sobre crimes ambientais tais como extrair madeira de florestas públicas e vender terras griladas para criadores de gado.
Castanha foi preso no sábado 20 de fevereiro em Novo Progresso, município paraense de 25 mil habitantes situado na beira da BR-163, que liga Cuaibá (MT) a Santarém(PA).
Se Castanha é o chefe da maior quadrilha, conforme a classificação do Ibama e da PF, é de esperar que logo sejam divulgados os nomes dos outros desmatadores, os lugares onde atuam e a quem entregam o produto (madeira) de seus roubos. O crime é antigo, secular. Não é difícil desvendá-lo. Basta que se queira fazê-lo. Sempre foi praticado na esteira de abertura de estradas.
Se não for uma cortina de fumaça para desviar a atenção da Operação Lava jato, que investiga a quadrilha de empreiteiros que vinha atuando na órbita da Petrobras, a prisão do “maior desmatador” faz uma ligação direta entre as duas pontas de dois fenômenos – a destruição da floresta amazônica e a crise hídrica no Sudeste.
ciência prova relação
Não se trata de uma especulação leiga: quem ligou as pontas foi o cientista Antonio Donato Nobre, especialista no estudo da floresta amazônica e autor do estudo O Futuro Climático da Amazônia, publicado em outubro de 2014.
Agrônomo com doutorado em biogeoquímica, Nobre é o único brasileiro a fazer parte do Painel Internacional de Mudanças Climáticas da ONU. No estudo de 42 páginas, ele afirma que a única solução para evitar o colapso hídrico na parte mais rica do Brasil é iniciar um intenso processo de reposição florestal.
Ele mesmo reconhece que, antes de qualquer coisa, é preciso superar a ignorância (climática, florestal, econômica) que permeia as relações da maioria dos brasileiros com a vegetação.
Como denunciou o ecologista José Lutzenberger nos anos 1970, “há muita gente no Brasil que gosta de botar fogo no mato”, fruto de um atavismo que precisa ser reciclado, pois persiste no imaginário popular e na ideologia governamental a ideia de que o mato é um obstáculo ao progresso econômico.
Durante a ditadura militar (1964-85), o Banco do Brasil financiou as derrubadas para a implantação de pastagens na Amazônia e no que restava da Mata Atlântica, no sul da Bahia.
Os conceitos, ideias e descobertas de Antonio Nobre e seus amigos cientistas sobre o papel da floresta amazônica no equilíbrio climático do continente têm sido objeto de artigos, entrevistas e reportagens. Destacamos abaixo trechos de recente entrevista que o jornalista Marcelo Csettkey, baseado no Rio, fez com Nobre.
“Destruição de florestas garante clima não amigável”
O que de fato acontece que põe em risco o abastecimento de água e energia elétrica nas cidades e capitais do Sudeste?
NOBRE – Os sintomas do desarranjo climático estão aí. Como na crônica da morte anunciada, experimentamos já agora muito do que fora previsto desde mais de 20 anos por vários estudos feitos na Amazônia. E da observação desta nova realidade chegamos à conclusão cientifica: remover árvores leva a um clima inóspito. Com a destruição continuada das florestas é garantido o destino de clima não amigável, especialmente sob o estresse aumentado das mudanças climáticas globais.
Éramos felizes e não sabíamos, pois a Amazônia foi e, apesar do desmatamento, ainda é, grande provedora de serviços ao clima. Sabemos agora que a região centro sul da América do Sul recebe a maior parte de suas chuvas a partir de vapor bombeado pela grande floresta. Tal explicação permite compreender por que essa rica região produtiva não é deserto, como são outras regiões na mesma latitude.
O clima é variável, assim é provável que, apesar destes anos alarmantemente secos, ainda voltem as chuvas. Não sabemos exatamente como essa transição para uma aridez possa se dar. Mas sabemos que, quando vier, toda a região se verá permanentemente privada do elo mais importante do ciclo de água doce em terra: o suprimento pelas chuvas. 2014 já é um exemplo do que poderemos esperar.
O que provoca o surgimento de uma enorme massa de ar seco, um “paquiderme atmosférico”, em cima da Região Sudeste?
NOBRE – O fenômeno é decorrência direta da remoção de florestas (também na própria região Sudeste), o que impede a convergência de umidade do oceano para o interior do continente, permitindo a estacionamento dessa massa de ar quente e seco, típica de deserto.
Tem também a alça de ar da circulação de Hadley, aquela do ar ascendendo úmido no entorno do Equador e baixando seco nas latitudes médias – a explicação clássica para o cinturão de desertos nessas latitudes – que poderia estar recebendo vitamina energética do próprio aquecimento global.
Liguemos as pontas: tire as florestas e os efeitos da circulação alterada pelo aquecimento global têm campo livre para atuar e eventualmente ali se fixar. Se essa nova circulação e seu clima associado vieram para ficar, se já não for tarde demais, a única possibilidade é recolocar na paisagem o elemento-chave para um clima amigo: restaurar as florestas.
Quais as medidas mais eficientes para se impedir a catástrofe climática anunciada?
NOBRE – Nesta altura e a curto prazo não parece provável ou mesmo possível impedirmos a calamidade climática que nos bate a porta. Mas creio que podemos, se fizermos um genuíno esforço de guerra na restauração extensiva das florestas, atenuar muito os efeitos e quiçá logremos recuperar o espetacular sistema de condicionamento climático que operava no “berço esplêndido”.
Como a destruição da Floresta Amazônica pode interferir no clima mundial?
NOBRE – Simulando a morte e desaparecimento da floresta, alguns estudos estimaram o efeito da liberação massiva do carbono estocado na Amazônia sobre o clima e os prognósticos que geraram indicam sério agravamento do aquecimento global.
Outros estudos avaliaram o efeito do desaparecimento da floresta sobre a circulação atmosférica, transporte de vapor e mesmo no balanço de energia, e indicaram que o clima próximo e distante pode ser impactado via perturbação no funcionamento dos oceanos.
A grande floresta amazônica, descobriu-se ter papel importantíssimo na regulação climática local, regional e mesmo global. Eliminá-la será uma catástrofe impensável para a humanidade.
Nos últimos cinco séculos houve devastação sistemática de fauna e flora no Brasil que, apesar de enorme, alterou pouco o clima do país. O que provocou a mudança drástica?
NOBRE – A grande floresta amazônica, como sabemos hoje, exporta serviços ao clima para uma maior parte da América do Sul. A destruição da Mata Atlântica certamente teve efeito ruim sobre o clima local, especialmente na perda da regulação hidrológica fina e da capacidade de atenuação de extremos climáticos.
Mas nos séculos passados essas regiões continuaram recebendo umidade suficiente da Amazônia para não terem se aridificado. A destruição sistemática e acelerada da floresta amazônica nos últimos 40 anos começa a destroçar a proteção que oferecia. Estamos matando a galinha dos ovos de ouro.
Qual o impacto da destruição de árvores na diminuição dos “rios aéreos” que, tudo indica, tem provocado a crise hídrica crescente?
NOBRE – A crise hídrica atual parece resultar da atuação de vários fatores. Aquecimento global, mudança da circulação atmosférica, impedimento da progressão da umidade amazônica e enfraquecimento dos fluxos de vapor nos rios aéreos são alguns destes fatores.
Quanto e de que forma exatamente contribui cada um deles, ainda não sabemos. Mas sabemos que todos estes fatores têm sido impactados por atividade humana. O desmatamento é a face mais visível da tragédia: somente de corte raso foram três estados de São Paulo (~763 mil km2).
Degradação florestal, uma área maior ainda (~1,2 milhão de km2). Somadas, estas áreas de impacto já ocupam mais de 47% da área original de floresta na Amazônia brasileira. Tanta destruição já está produzindo impacto.
Qual a importância das árvores na formação das nuvens? De que forma as árvores são vitais para se gerarem as chuvas de que tanto precisamos para viver?
NOBRE – As árvores transpiram grandes quantidades de água bombeada do solo, o que resfria a superfície e fornece matéria-prima principal para a formação de nuvens. Elas também emitem compostos voláteis, os cheiros que, como gases que se precipitam na forma de poeira finíssima, atuam na nucleação de nuvens e promoção de chuvas.
Com a condensação do vapor fornecido pelas árvores, ocorre um abaixamento da pressão na atmosfera sobre a floresta, o que determina a sucção dos ares úmidos sobre o oceano para dentro do continente.
Há alguma possibilidade de tombar-se a Floresta Amazônica como patrimônio da Humanidade, tentando impedir assim sua destruição pela ignorância humana?
NOBRE – Creio ser mais factível e prático empreender esforços para eliminar a ignorância humana. Somente uma sociedade consciente consegue fazer frente a interesses menores e destrutivos que surgem e são defendidos por elites poderosas.
O exemplo das hidrelétricas na Amazônia é sintomático. Nos anos 80, depois de absurdos como Balbina e outras represas, pensou-se que nunca mais voltariam a cogitar novas obras deste tipo na Amazônia. Mas passaram-se décadas e o lobby das hidrelétricas voltou à carga, desta vez recebendo suporte de um governo oriundo de movimentos populares e até de parcela da sociedade que passou a justificar a geração de energia para atender à crescente demanda nacional.
Até a proteção das reservas indígenas e outras áreas de conservação inscrita em nossa carta magna estão sob ataque eficiente dos interesses menores que dominam o Congresso. A meu ver, somente tombar a floresta, como se faz com valores culturais reconhecidos, não conseguirá barrar tais ataques.
Foto: Everton Pimentel/Ibama
O desmatador Castanha, a Amazônia e a crise hídrica
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